sábado, 31 de maio de 2014

SOBRANCELHAS DOURADAS

E ela que parecia uma flor aberta, solta, dançando faceira no ar, atravessou a rua sorrindo: “ – moço, sou nova neste lugar. Estou perdida. Não conheço ninguém por aqui. Nem sei o nome desta rua. Trocou de calçada de braços abertos, levantados como se fossem asas, assim, do jeito que fazem os amigos quando faz tempo que não se encontram. Veio, e veio decidida e se abraçou inteira no Joca que ficou imóvel tal um poste fincado no chão. Aquele abraço ficou durando mais tempo, do tempo que duram os abraços. Quando deu por si, o Joca também estava abraçado na guria. E era tão bonita, tão frágil, tão carente, tão cheirosa, com a pele tão macia, com os cabelos tão finos que voavam por iniciativa própria sem um vento que não existia. E possuía as sobrancelhas tão espessas e douradas e tão arqueadas que tornava exótica a sua beleza, fazendo um belo conjunto com seus lindos olhos azuis. Dois detalhes que enriqueciam mais e mais, aquele rosto de anjo despencado lá das alturas do céu.

Então ela disse com a voz fininha, aveludada: “ - sou a Sheila e estou tão sozinha que só me resta você. Me dê um tempo, porque agora só vai sair da minha boca, palavras que não vem do coração. Me leva, deixa eu dormir um pouco e logo saberás, que sou um presente enviado para alegrar a tua vida.” E continuou: “ – não me julgues por hoje. Apenas acredite em mim. É tudo que eu preciso, e você também. Nosso encontro não é uma mera obra do acaso. É o destino, o bom destino batendo em nossas almas. Vamos, me tire daqui! Necessito descansar!

Tinha a pele fina e muito clara. As veias azuis das mãos e dos braços se mostravam salientes, agitadas, denunciando a olhos vistos o sangue que por elas corria. Os cabelos louríssimos misturados com mechas quase brancas, longos, até pouco abaixo dos ombros, mais o modo de olhar, meio que com os olhos fechados, e uma tatuagem em forma de cruz ao lado do pescoço, davam-lhe um certo jeito de mistério. E a boca, que mesmo quando séria parecia estar sorrindo, trazia para os seus lábios de um tom vivo rosado, tal poderosa sensualidade, que provocou nos instintos do Joca, irresistível vontade de beija-la. Segurou a Sheila pela cintura, andaram duas quadras dentro da noite que já amadurecia, e entrou no prédio, abriu a porta do apartamento e tirou duas cervejas da geladeira e preparou um sanduíche para ela.

Depois ela tomou um banho quente e deitou nua no amplo sofá da sala. E dormiu com o corpo virado para a janela por onde brilhava a lua cheia, que passava enfeitando a escuridão. Respirava macio, tão suave que mal movimentava o peito com o ar que chegava e saía dos seus pulmões. Parecia a estátua viva da deusa da beleza dormindo. O Joca sentou sobre o tapete na frente do sofá, com as pernas dobradas em pose de meditação e pensou em voz alta: “ – Nooossa Senhora!! Isto que estou vendo é a mais pura imagem da criação de Deus. É a imagem da perfeição. Se Deus fosse mulher, esta mulher seria Deus.

Olhou os dedinhos dos pés, frutinhas que dava vontade de comer. Viu as pernas brancas tal uma nuvem recém-nascida, lisas e torneadas e quase passou as mãos. Fixou os olhos no ventre firme ainda não inaugurado e sentiu a força que vem da terra virgem. Notou os seios duros e os mamilos arrepiados e quis ser criança de colo outra vez. Por fim, não mais resistiu permanecer naquela contemplação e passou os dedos repetidas vezes na fenda sagrada que agita o mundo. Ela abriu levemente as coxas e se ajeitou inteirinha à sua disposição e ele a beijou inteirinha, desde os dedinho dos pés até o final da testa. A seguir retornou ao início, e demorou fazendo assim, agora com ela participando, se oferecendo inteira para ele. Depois ela segurou firme a cabeça do Joca, suspirou fundo e gemeu bonito de escutar. Prosseguindo, ele deitou por cima dela e se esgotaram de tanto fazer amor. No melhor momento, desta vez ela deu longo grito e mordeu, ferindo o lábio inferior do rapaz. Suados caíram em profundo sono.

Final da manhã o Joca acordou sozinho no sofá. Procurou a Sheila no quarto, no banheiro, na cozinha, na área de serviço, dentro do ropeiro, atrás das cortinas; nada da guria. Revirou os bolsos das calças atrás das carteira com o dinheiro que tinha, não estava, nem o relógio, nem a aliança de noivado que muito pouco usava, nem os dois celulares, nem o computador portátil, nem o livro do Quintana e aquele outro do Bukowski, nem o rascunho do último conto que estava escrevendo. Desaparecera também toda uma quantia de pequenos objetos de valor, mais um soldadinho de chumbo de quando era guri, e a coleção de moedas e uma fotografia na noiva.

Antes de sair para a rua, leu, no lado interno da porta escrito com lápis de sobrancelhas dourado, em letras enormes: “ – tchau, otário.”

A EXPERIÊNCIA

Ele chegou para o Joca, botou a mão no bolso e disse: “ - Pega este dinheiro e vai te divertir. Que sábado à noite todo homem precisa de uma mulher!” E o Joca ainda não tinha completado 15 anos. Ele voltou a dizer: “ - ali tem a Casa Verde. Vai lá e procura uma mulher chamada Marli. Diz que fui eu quem mandou. Ela é bonita, gostosa e sabe das coisas.

Mal caiu o sol, o Joca vestiu um roupa boa e avisou a mãe que ia na casa do Flávio, ler uns gibis da sua coleção junto com outros amigos. Foi. Mas foi para a Casa Verde. Já era noite. Envergonhado, de passo curto, chegou. Abriu a porta e levou um choque com as luzes coloridas que enfeitavam o salão. Respirou fundo e sentiu um gosto de pecado na boca. As mãos estavam frias, molhadas de suor. A música, um bolero, tocava alto, que doía nos ouvidos. Os homens bebiam, dançavam e conversavam animados com as mulheres. O ambiente estava alegre e festivo. Veio uma velha de vestido longo muito vermelho até ele e disse: “ - menino!! Aqui só entra gente maior de idade. Se a polícia aparece é incomodação na certa. Ela pode fechar a minha casa!” “ - Mas foi o Sananduva quem me mandou. Queria falar com a Marli!” - Disse o Joca.

“ - Se foi o Sananduva quem te mandou, então pode ficar. Vem comigo.” Foram até uma salinha com um sofá, mandou ele sentar e saiu. Logo entrou uma mulher alta, enorme, um mulherão de longos cabelos pretos toda sorridente. Muito jeitosa pediu para o Joca levantar. Ficou com o rosto na altura dos peitos da Marli, que o abraçou bem apertado, que lhe deu um calor estranho que vinha de dentro, como se feito na alma, que revirou seus intestinos. Depois ela falou com um sorriso sacana desenhado no rosto: “ - trouxe dinheiro, meu machinho? Que aqui o amor é pago. Vai aprendendo desde já, benzinho, que nesta vida não existe amor gratuito!”

Entraram no quarto que tinha no ar um perfume adocicado e ela tirou a roupa. Tinha a pele muito clara e uma pentelheira escura que parecia uma farta peruca crespa. Tímido, o Joca parou em pé na frente da Marli. Ela sentou na cama, segurou-lhe pela cintura e o puxou para perto de si. Desabotoou a camisa, baixou a calça, olhou admirada, de alto a baixo o corpo do menino: “ - gosto tanto quando pego um franguinho! Vou ser tua madrinha, sabe? Põe o dinheiro na mesinha!” - Falou.

Abriu as pernas e deitou o Joca sobre si, como se ele fosse uma criança. Acariciou suas costas, suas pernas e seu rosto. Passou os dedos nos seus lábios e mexeu nos seus cabelos. Com a mão direita ajeitou ele dentro daquela fenda quente e úmida. O Joca ficou com o rosto entre as tetas enormes, meio molengas da Marli.

Ela falou macio, tão bom de ouvir, pressionando e afrouxando as mãos sobre as coxas do Joca: “ - primeiro para baixo, agora para cima, para baixo, para cima. Assim! Isso! Continua! Assim, bem assim. Está aprendendo rápido meu machinho! Não para, porque está ficando bom. Aiii, como está gostoso. Vem queridinho, rápido, mais rápido, faz agora com bastante força, assim, assim, não para.” e deu um longo suspiro. Ela suspirou apertando o Joca, comprimindo ele inteiro contra o seu corpo. Imediatamente a Marli sentindo que chegava a vez dele aumentou o ritmo do vaivém, até que o Joca começou a tremer e uma espécie de arrepio, ou fosse lá o que fosse aquilo, tomou conta do seu ser. Assoprou um gemido longo e fino, e terminou.

Ela saiu da cama com uma das mãos entre as pernas, sentou numa bacia grande de alumínio com água pela metade. Lavou a parte usada que secou com um paninho branco felpudo e se vestiu. O Joca já estava arrumado. Antes de saírem ela deu um beijo demorado na boca do guri: “ - nunca beijo cliente meu. Só o meu macho. Mas tu é tão bonitinho!”

A seguir, ela pegou o dinheiro de cima da mesinha e enfiou no bolso da calça do Joca: “ - guarda, para passear com a tua namoradinha . Já tem uma menina que tu gosta, não é menino? Só vou te cobrar da próxima vez em diante. Vai lá e mostra para ela que agora tu já sabe lidar com uma mulher! Usa teu conhecimento, que experiência deste tipo, não é coisa para ficar guardada!”

A noite estava clara e a lua era a mais linda que já nasceu. O Joca chegou em casa. A mãe examinou de longe sua fisionomia: “ - estás diferente. Parece que pegaste pose de homem. Na casa do Flávio lendo gibi é que tu não estavas!”

Foi dormir com o dinheiro embaixo do travesseiro. Amanhã, domingo, convidaria a Giovana para passear no parque de diversões: andar na roda-gigante, girar com o cavalinhos do carrossel. Ia ser tão bom passear ao lado da Giovana, segurando a mão dela, comendo maçã do amor.

E, também, precisava contar tudo para o Sananduva. Sem dizer que teria que encontrar uma maneira, com urgência, de repassar toda aquela experiência para a Giovana.

O POETA E O JUIZ

O Silva foi meu colega no ginásio e no científico quando o ensino secundário e médio assim se dividiam. Sete anos na mesma turma. Era o Silva, filho de influente político, o colega mais feio e burro que eu tinha. Procurava sentar no meu lado e cansei de lhe dar “cola” nas provas mensais. Redação, ele praticamente copiava as minhas por inteiro.

Quando digo feio, era porque o coitado era feiíssimo. Não só o mais feio da sala como do colégio inteiro. Orelhas de abano e narigudo, cabeça pequena e pescoço longo meio torto para um lado, pernas em forma de tesoura aberta e pés enormes, desproporcionais, virados para dentro; quase fanho e estrábico, com os olhos cravados no nariz. E os braços quando caídos, passavam as mãos para um pouco abaixo dos joelhos. Comprido e desajeitado; parecia uma girafa atrapalhada com o próprio corpo.

Apesar da ajuda de alguns colegas, ninguém compreendia como ele passava de ano. Por exemplo: nunca conseguiu, nas aulas de geografia, decorar as capitais do Brasil, das Américas, da Ásia e da Europa. Em história, datas e nomes de personagens importantes jamais gravou na memória. Em português não aprendia os tempos verbais. Esportes, dessas atividades, por motivos óbvios, fora dispensado. Apenas para ficar nessas dificuldades. Mas o fato é que, dando um jeito daqui, outro dali, como por um mistério, o Silva sempre passou de ano acompanhando a turma até o final.

Ah, não posso esquecer de dizer, que ele me pedia emprestadas as poesias de amor que eu fazia. Mais tarde descobri que passava todas elas a limpo e as oferecia para a Berenice, quando surgia uma oportunidade de ficar a sós com ela, que estava uma serie mais adiantada que nós.

Depois me formei em direito, mas me dedicava mesmo era com as amadas e com os versos e os textos que precisava escrever. E da nossa turma do colégio cada um tomou o seu rumo, e nunca mais reencontrei ninguém.

Aconteceu que em dias recentes compareci em juízo como testemunha de um acidente de trânsito, quando certa noite, um amigo que estava comigo, ao atravessar a rua fora atropelado por um automóvel.

Iniciada a audiência, fui chamado a depor. Olhei aquele juiz careca, pescoçudo, orelhudo, narigudo, cabeça pequena, quase fanhoso e braços gigantescos sobre a mesa e não acreditei no que vi: ali estava o Silva de meritíssimo juiz, sentado naquela cadeira com espaldar alto, com a cruz de Jesus pregada na parede, acima da sua cabeça com os olhos ainda vesgos, presidindo os trabalhos.

Falei o que havia visto e o que sabia sobre o caso. Respondi perguntas, tais como se chovia ou não na hora do acidente, se o calçamento da rua era de asfalto ou de paralelepípedos, se a iluminação era adequada ou insuficiente, se o condutor do carro aparentava sinais de embriaguez, e mais outras perguntas tolas que já esqueci.

Terminado meu interrogatório, dispensadas as partes, fui até ele, e disse: “ – há quanto tempo, Silva! Fico contente que tenhas te tornado juiz de direito!”

Ele me reconheceu, me abraçou um tanto comovido, e de primeira comentou sobre as “colas” que eu lhe passava. A seguir, me agradeceu os poemas de amor que eu emprestava para ele copiar.

Me falou que estava casado, aliás, muito bem casado com a Berenice, aquela nossa colega do colégio, que deve ter cedido aos encantos dos versos de amor que o Silva lhe dedicava, dos quais, desconfio, que ela jamais imaginou que fosse eu o autor daquelas peças de puro romantismo. Me disse que a Berenice também se fizera juíza e que tinham quatro filhos e que era vovô de três netinhas lindas e que nada lhe faltava e que era o homem mais feliz do mundo.

Falou e sorriu com aqueles dentes curtinhos e espaçados e perguntou sobre a minha vida e como eu estava. Perplexo com o êxito daquele que parecia ter tudo para não dar certo, senti um amargo na boca e menti. Olhei firme dentro dos seus olhos e menti. Menti com todas as forças de convencimento que o mentiroso consegue arrancar das entranhas da alma; menti, que eu também era o homem mais feliz do mundo. Ele sorriu novamente um sorriso sincero e afetuoso; me abraçou mais forte desta vez dizendo, que o abraço de dois homens felizes é o melhor abraço do mundo. Mais um pouco e nos despedimos. Saí e fechei a porta da sala de audiências. Sentei num banco no corredor com o coração pegando fogo e um nó preso na garganta, e chorei as lágrimas dos meus desencontros e das certezas que eu tinha, que de certo quase nada possuíam.

E eu, o inteligente, o poeta dos versos de amor, agora aqui escrevendo sobre a feiúra e a burrice do Silva. Me olho no espelho, dou um grito e um beliscão no pescoço. Preciso saber se não estou delirando.

Vai ver que esta é a sina que eu carrego: de escrever sobre a vida e o comportamento dos outros, das dores dos amores perdidos e do que espio por aí. Mais os meus fantasmas e essa imaginação sempre fervendo, que não me deixa dormir.

sábado, 10 de maio de 2014

AS MOCINHAS DOS ARRABALDES

Por ser um incorrigível observador e um tanto piegas diante dos padecimentos humanos, me dá uma dor nas segundas-feiras, dessas mocinhas pobres dos arrabaldes. Sinto uma angústia ao vê-las fazendo fila para preencher uma vaga de balconista, nessas lojinhas de quinquilharias do centro da cidade. Fico com medo que elas não consigam o emprego. E experimento um sentimento ruim, tanto pela escolhida quanto pelas rejeitadas.

Paro e olho pobrezas e me vem um nó na garganta. Seus vestidinhos desbotados bem passadinhos. Seus sapatinhos esfregados na última hora com água e sabão. Suas blusinhas emprestadas da vizinha. Suas pinturinhas no rosto de uma maquiagem barata e um batom que não reforça contentamento nenhum. Seus cabelos ainda úmidos penteados com pente grosso. E umas pulseirinhas e uns aneizinhos e uns brinquinhos com umas pedrinhas antigas, sem brilho. Disfarces miseráveis que não escondem a origem e o despreparo de todas elas.

Noto que seus semblantes são parecidos. Filhos da mesma penúria. Desmaiados do mesmo mal. Vítimas da mesma dor. E, na fila, na calçada, olham para cima, para o nada; nem notam a criança suja que passa pedindo uns trocados. Parecem até vazias, sem esperança; que tudo nesta vida, tanto faz. Se perderem o empreguinho, não perderam nada, porque tudo já está perdido. Estarem ali, é como se esperassem, indolentes, uma esmola, um prato frio de uma comida qualquer.

Uma delas que demonstra vergonha por ter nascido, olha fixo para os pés, com os ombros curvados e os braços presos nas costas. Essa, já perdeu a coragem de olhar o mundo e as outras pessoas. Não mais se encanta com o milagre da flor que nasce. Nem sequer se interessa com suas concorrentes ao empreguinho.

Continuo fixado nela. É bonitinha, até. Vinte anos, se tanto, e já tão derrotada, tão morta, tão desesperançada; tão assim, indiferente com sua causa pessoal, prestes a desistir totalmente de si. Está naquela fila, só por estar, cumprindo uma obrigação ou uma ordem. Decerto, em casa, sua mãe lhe disse: “ - Põe uma roupinha, te arruma guria, e vai ser balconista de lojinha nesta vida. Vai, guria!”

Prefiro ver revolta e indignação ou alegria na atitude das pessoas. Mas quando elas, dizendo melhor, essas mocinhas, escandalosamente jovens, se mostram resignadas com a falta de sorte, renunciando os belos sonhos, apáticas, adoecidas, com a desilusão marcando forte suas expressões, quase morro junto com elas.

Eu, ali, como um espião da vida alheia, amargurado mais do que devia, senti uma vontade de gritar, de discursar para elas todas: “ - olhem gurias, olhem a vida em volta. Olhem as outras moças que passam e fiquem com inveja delas. E busquem nessa inveja a força para saírem de onde estão. Ou fiquem, se agarrem neste empreguinho, porém, não para sempre. Trabalhem durante o dia, e estudem à noite. Cansem, chorem de cansaço, mas não desistam jamais. Ah, e não sejam mães antes do tempo. Porque depois vem a recompensa; se vai embora a longa noite e o sol volta a brilhar.”

pensei e não disse nada, e me fui rua fora. Desiludido, sentindo que a minha alma estava igual a delas, derrota. Porque sei, que aquelas mocinhas, em todas as demais segundas-feiras de suas vidas, cada vez, mais e mais, vão estar sempre numa fila, esperando, como se fosse, um pratinho de sopa fria.

Sempre foi assim, desde o início dos tempos. No entanto, não podemos esquecer, que o ser humano ás vezes é maravilhoso e também, surpreendente. De vez em quando, uma mocinha dessas que está numa fila, sai do buraco, e dá um pulo para cima. Mais uma estrela no céu!

A MORTE DE UM SORRISO

Eu era muito jovem, dezessete anos, se tanto, quando conheci a Vera num baile no Libanesa. Fiquei encantado com ela toda, que tinha sempre um sorriso pronto, fácil e bonito no rosto. Estávamos bem no início dos anos setenta, e ela, além de cursar filosofia, militava contra a ditadura militar como membro de uma organização de esquerda. Tinha quatro ou cinco anos mais do que eu, que na época ainda não compreendia bem o que estava acontecendo.

Saíamos com certa frequência durante coisa de seis meses. Bebíamos cerveja, fumávamos e fazíamos amo não menos que duas vezes por semana. E ela sempre sorrindo para mim. Sorria com os olhos também. Quando sorria todo seu corpo junto. E eu gostava tanto de vê-la sorrir. Aquela alegria me atingia, me iluminava por inteiro. Seu sorriso era uma luz que acendia sua fisionomia.

E falava que a situação do país precisava mudar. E que se fosse necessário pegar em armas, não relutaria em fazê-lo. Que o seu grupo estava preparado para tudo, inclusive para o pior. Morreria pelos seus ideais. E tinha um porte, uma dignidade, uma energia, um destemor que me fascinava. Possuía uma força no olhar que parecia dardos apontados quando revoltada, falava sobre perseguições, prisões, torturas, desaparecimentos, mortes, praticadas pelos órgãos de repreensão, mais a falta de liberdade e a censura instauradas com o golpe militar de 1964. Nesses momentos, brotava da sua alma toda a indignação que sentia. Seu coração batia mais forte, seus gestos se alargavam, sua voz saia clara e decidida; renascia a guerreira. Após ia se acalmando, se acalmando, se tornando delicada outra vez. A seguir, segurava as minhas mãos e voltava a sorrir. Então eu beijava seus lábios macios ainda quentes, que junto com seus dentes perfeitos, desenhavam a boca que todo homem gostaria de beijar.

Depois nunca mais me encontrei com a Vera. Sumiu. Dela, ninguém sabia. Passou o tempo e fui esquecendo dos nossos encontros. Vez por outra me vinha na lembrança o seu corpo, seu cheiro de flor recém-desbrochada, das nossas tardes dedicadas ao amor, dos seus discursos políticos e me lembrava do sorriso mais lindo da cidade.

Tarde de um dia nublado e frio, encontro com um amigo numa esquina da Rua da Praia. Estamos conversando quando alguém bate no meu ombro e diz com uma vozinha adoecida: “ - Juca, me paga um café que eu estou morrendo de fome!” olhei para trás e custei a perceber que quem falava comigo, ali, magra, esquelética, suja, maltrapilha, enrolada nuns panos velhos era a Vera. Por instantes pensei que estava delirando. Não estava.

Deixei o amigo e fui com ela até uma lanchonete. Ela caminhava com muita dificuldade, puxando uma das pernas e tossia sem parar. Mal conseguia trazer a xícara e o pão até a boia de tanto que tremia. Ela tentou disfarçar com um sorriso. Não conseguiu. Apenas lhe veio uma lágrima pesada que se espatifou no balcão.

“ - Que te aconteceu menina?”, perguntei. Faltando os dentes superiores, respondeu: “ - Joca, eles me quebraram toda. Fui estuprada, levei choques elétricos na cabeça e na genitália, batiam sem parar; me torturam tanto que nem sei como estou viva. Fiquei um ano presa. Saí ontem da cadeia!”

“ - Eles quem?” Quis saber.

“ - Os milicos”, me disse. “ - Mas não contei nada. Não falei quem eram os meus camaradas de militância!”

Apesar do estado lastimável, a Vera ainda mantinha inteira toda a sua dignidade. Menos o seu encantador sorriso que desapareceu. Esse, eles mataram dentro dela.

UMA RUGUINHA NO CANTO DA BOCA

Por conta das histórias que escrevo sobre relacionamentos, noite dessas, numa festa de aniversário de um amigo, a esposa de um dos convidados, deu um jeito, e me perguntou como eu reconhecia uma mulher que traía o marido.

Já que não esperava por tal inquietação, parei por um instante o que fazia, larguei o copo na bandeja do garçom e atirei: “ - uma ruguinha no canto da boca!” Ela, espantada, devolveu: “ - uma ruguinha?! Como pode uma simples ruguinha ser tão denunciadora?” tive que ir mais longe: “ - minha cara senhora! Claro que existem outras pistas deixadas por olhares, expressões no rosto, gestos, palavras, um certo enfado dormindo no corpo. Mas o recibo final sobre a existência de infidelidade por parte da mulher, ela assina de forma cabal e definitiva, com uma quase inexpressiva ruguinha no canto da boca, que passa despercebida para quem não é atento nesses íntimos segredos. Ah, mas não é uma ruguinha qualquer. É ela, de outra natureza, muito diferente das suas parentas, aquelas rugas de expressão.

Ela me olhou, sei lá se admirada ou surpresa e antes de voltar para junto das outras mulheres, me disse: “ - tenho medo de ti!” “ - Estou acostumado”, respondi. “ - Quer dizer então, que toda mulher que trai, tem uma ruguinha no canto da boca?”, insistiu. Dei de ombros e fiquei quieto.

Depois ficamos em grupos, bebendo e conversando. Resolvendo os problemas do mundo e falando futilidades, que é o que mais se fala nessas ocasiões. As mulheres também, logo ali falavam agitadas de filhos, maridos, profissões, academias de ginástica; das suas alegrias e aflições.

Vez por outra eu notava que a mulher aquela, olhava em minha direção, assim como quem está diante de uma perigosa cobra venenosa. Cheguei a pensar: “ - Senhor, me transformei numa ameaça para esta mulher!”

Voltei ao assunto da vez na roda que eu estava. E já impaciente eu olhava na direção que ela estava. E ela parecendo perturbada continuava me buscando, interrogativa, desconfiada. Mas havia um mistério se descortinando, um secreto entusiamo em toda a sua pessoa. Está bem, confesso: “ - ela realmente demonstrava um certo interesse. Precisava ir adiante.” Pronto! Falei o que não queria e o que muito menos devia ter falado.”

Não mais de uma hora após a primeira abordagem, ela voltou rápida para me perguntar: “ - não enxergaste nenhuma ruguinha no canto da minha boca?” Olhei para os seus olhos enigmáticos e falei: “ - só uma bem fininha, ainda recém-querendo se formar, bem no cantinho direito da boca.”

Antes de ir em direção ao toalete, ela me disse, safadinha: “ - bem que eu já estava notando. Mas vou fazer uma cirurgia plástica!”

“ - Não vai adiantar. A ruguinha volta no outro dia.”

“ - Será?”

“ - Então experimenta. Eu se fosse você, não botava dinheiro fora!”

Ela ficou coçando o canto direito da boca com a ponta do dedo indicador, toda indecisa.

Nisso se aproximou um sujeito, o marido, que quis saber sobre o que conversávamos. Ela pulou na frente e disse: “ - literatura meu bem. Estamos falando dos meus autores prediletos!”

Ele retornou para o seu grupo de amigos. E nela, a ruguinha ficou mais forte.

A PENÚTIMA VIAGEM

Meu pai estava com setenta e dois anos e um câncer vinha lhe consumindo. Três semanas antes de baixar o hospital para morrer, pediu que o levasse para um passeio de carro. Claro, na hora me prontifiquei. Ele caminhava com certa dificuldade, trôpego, mais as dores que só aliviavam abaixo de tratamento específico e forte medicação.

Nos encaminhamos até a garagem, quando ouvi dele, que havia uma condição: pois que iria dirigir, tanto na ida como na volta, daquela viagem sem tempo e destino certo.

Surpreso, quase disse que não. Então pensei que não podia lhe negar o que seria um dos seus derradeiros pedidos. Embarcou, deu partida no motor e saímos aos solavancos rua afora. Nervoso, fazia força, precisando me passar tranquilidade. Era uma tarde de domingo e a cidade estava vazia e um sol preguiçoso amornava o dia e a nossa cumplicidade estava muito bem amarrada. Que fosse feita toda a sua vontade. Assinei o recibo em branco. Afinal, só eu, seu único filho, só eu e mais ninguém, podia lhe alcançar aquele sorriso.

Então pegamos uma estrada de mão dupla que se ia rumo ao litoral. Meu pai começou a acelerar. E foi gostando da velocidade que atingia. Sorriu bonito e apertou mais o pé olhei para o velocímetro e estávamos passando dos 120 quilômetros por hora. O seu rosto estava radiante, invadindo por raro contentamento e não parava de acelerar. Sempre com mais intensidade. Dei mais um espiada e o carro atingia os 140. Logo ele que sempre foi moderado na direção cuidadoso até um excesso em tudo que fazia. Naquele instante parecia um menino fazendo sua primeira travessura.

Já havíamos andado mais de meia hora naquela velocidade. Foi quando eu disse: “ - pai, diminui, porque deste jeito vamos ser multados. E não vai ficar bem, um respeitável senhor levar uma bronca da polícia!” - Respondeu: “ - agora, como está minha vida, com esta doença desgraçada, que me importa!” E acelerou, acho que por protesto, até perto dos 150. Eu não via a hora que iria acontecer algum imprevisto. Mas tinha o dever emocional e afetivo em honrar a parceria.

A seguir, retirou o pé do acelerador. Havia um retorno logo adiante e voltamos em direção à casa. Em seguida parou no acostamento, se ajeitou melhor no banco, tomou um comprimido que tirei do bolso da camisa e perguntou se eu estava gostando da aventura. Querendo lhe agradar, disse que estava adorando. Que devíamos continuar naquele ritmo.

Tornou a acelerar com a mesma impetuosidade anterior, e eu, quieto, aflito, procurando demonstrar normalidade, ouvi meu pai dizer: “ - como é bom dirigir! Como é bom dirigir!” Antes de chegarmos, muito cansado, estacionou na frente de uma sorveteria e pediu que eu lhe trouxesse um pote com três bolas de chocolate, e ouvi ele dizer, valorizando o momento: “ - ah, como é bom um sorvete! Meu Deus, como é gostoso um sorvete! Virei o rosto. Não queria que ele visse uma lágrima minha, que junto com outras não pude evitar.

Andávamos mais cinco quadras e chegamos. Do pátio, fomos abraçados até a cama. Deitou, e antes de dormir, com um sorriso de amigo me agradeceu com os olhos molhados.

Depois de alguns dias, meu pai foi hospitalizado. Naquele lugar, dentro do prazo estipulado, embarcou nas asas da morte, para, sozinho, começar sua última viagem. E eu, nunca mais gostei de sorvete de chocolate