quinta-feira, 22 de novembro de 2012

MINICONTOS

REVOO

O ano andava em outubro e florido estava o jardim.
Um bando de borboletas se misturaram com as flores.
Depois revoaram, e também permaneceram numa colorida confusão.
Não sei se ficaram as borboletas plantadas nos cabinhos ou se foram as flores que voaram, batendo as pétalas; fazendo no ar outro jardim.

MÍNIMO MISTÉRIO

Na calçada, estirado no chão, pisoteado, falecido, um antigo grampo de cabelo com uma mecha verde que se mexia, pelo vento que fazia.
Que cabeça insensata o extraviou?
Ou ele se atirou lá de cima?

LEMBRETE

Hoje não acordei bem. A alma inquieta batendo insistente nas paredes do corpo.
Então, bebo um trago forte. Relaxo. Acendo um cigarro.
A fumaça mensageira, saindo de mim, leu o meu pensamento, e sobe alfabetizada sobre a minha cabeça, escrevendo a palavra, saudade.

DESINVENTAR

Depois que de ti DESFIQUEI, de ti, pra sempre me DESLEMBREI.
Te DESVI. De ti me DESAMEI, te DESOUVI, te DESRESPIREI, te DESENGOLI. Enfim, de ti me DESSENTI, te DESPENSEI; DESMORRI. Agora, DESCOBRI e DESCREVI que quase DESVIVI. Que felicidade, quando de ti, DESINSISTI e te DESINVENTEI.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

OS OLHOS DO DR. SPHAUDSEN

Conheci bem Theobaldo Justino Sphaudsen. Advogado competente. Um puro sangue nos confrontos forenses, além de mostrar-se um ser humano espetacular quando não estava incorporado pelos efeitos do álcool. Apresentava-se brilhante nas audiências nas varas criminais e lotava os salões dos tribunais do juri com estudantes de direito e curiosos, que se acotovelavam para assistir a sua performance feita de surpreendentes estratégias, sempre adornada por uma firme e vibrante oratória. Para um réu, ser defendido por Sphaudsen era um privilégio, sinal forte de absolvição, pela reunião dos variados dotes de sabedoria, persuasão e de presença solene que era depositário. E na vida social tinha um sólido conceito por ser dono de um grande coração, que atirava as suas bondades para o mecenato, para a filantropia, para a humanidade. Que invejável imagem desfrutava este homem, apesar de algumas secretas contradições pessoais. 

Toda vez que encontrava com aquele homem alto, forte, culto, educado, de porte majestoso, voz metálica, trajado com esmero eu olhava aqueles olhos sem brilho, imprecisos, que davam a impressão de serem feitos de um frágil cristal prestes a se quebrar, e pensava: que fio, deste instrumento chamado Theobaldo Justino Sphaudsen havia se rompido. Tinha a absoluta certeza que ali, naquele corpanzil, naquela imponência, alguma coisa tocava desafinado. Um som estranho saia por aqueles olhos dúbios. Coisa mínima, quase imperceptível, mas o suficiente para me causar estranheza, um convencimento que ele era um sofredor apesar das aparências dizerem o contrário. Era uma convicção perigosa, temerária, mas eu a tinha. 

Todos elogiavam o seu comportamento, a sua personalidade, os seus feitos. Sabíamos que falávamos de uma pessoas rara, dotada da melhor alma, da melhor inteligência, de um talento maior, dono dos melhores propósitos. De um ser humano que oferecia para a vida uma espécie de pagamento, uma retribuição material por viver de maneira tão esplêndida. Devolvia, tal um dízimo espontâneo as dádivas que fora merecedor. 

Mas, mesmo assim, eu sabia que faltava um elo, um dente na engrenagem para o Dr. Sphaudsen ser tão completo, tal como todos imaginavam. Alguma coisa não se encaixava. Aqueles olhos fugidios ao invés de mostrarem esperteza, para mim indicavam uma fraqueza, um desencontro que afligia a sua alma. 

Certa ocasião com um grupo de amigos e nossas namoradas fomos numa festa, destas, digamos, alternativas, livres, onde havia gente de todas as tribos, de todos os conhecimentos, de todas as atividades, de todas as idades, de todos os sexos. Gente bonita, avançada, de atitudes inovadoras, com disposição para buscar toda espécie de prazer mundano. 

No início, até me senti um pouco deslocado com tanta diversidade. Depois me separei da minha turma e fui circular pelo interior da mansão com a minha companheira, no meio daquela “fauna” humana que festejava a vida, bebendo, conversando animadamente e dançando ao som de músicas tocadas por famoso animador. 

Andamos, bebemos. Um “oi” aqui, outro “oi” ali, e assim fomos passeando entre a multidão, até que encontramos uma antiga conhecida de cabelos pintados de azul, vestida de princesa, com umas saias sobrepostas cheia de babados, com as unhas pintadas cada uma de uma cor, bebendo uma poção vermelha. Falamos, e com ela junto, continuamos o passeio no meio daquela multidão. 

Sentamos os três num degrau da escada defronte a uma sala escura, e ela só falava em disco voador, ETs, vida após a morte, a fragilidade da vida humana, da inevitabilidade do destino, enfim que já nascemos predestinados e mais outras maluquices. 

Na verdade, essa moça, a Suzi, havia sido estagiária, há uns anos atrás no escritório do Dr. Theobaldo, e dele, tinha impressões semelhantes as minhas. Inclusive, enquanto conversávamos, afirmou ter visto circulando pelos salões lotados da festa a figura do notável jurista, esguelhando-se dissimulado próximo as paredes. Assunto que não dei atenção, por achar inteiramente improvável tal aparição. 

Mas, assim, como para comprovar, que com frequência a vida imita as tramas inventadas nos enredos de um romance, a coincidência atirou na frente dos nossos olhos a silhueta do Dr. Sphaudsen, que num canto da sala em frente, no lusco-fusco que ali fazia, beijava enlouquecido um rapaz. Nos cutucamos incrédulos, eu e a Suzi, e continuamos olhando aquela inacreditável cena, e vimos a seguir, o Dr. tirar a calça, deitar de bruços no sofá, e ser possuído pelo garotão. Depois levantou-se, traquejou-se, tirou um maço de notas do bolso do paletó e foi rápido em direção a porta de saída. Ainda pude ver, quando de relance, uma luzinha branca mostrou um sorriso mastigado, meio eufórico, meio criminoso, enquanto ele passava por nós, agarrado numa garrafa de uísque. 

Outro dia, no fórum, encontro o Dr., e perguntei se a festa daquela noite estava boa. 

Me respondeu, olhando com os olhos covardes para o gesso branco do teto: “ - Que festa Dr.. Nunca vou a festas. Sou um homem caseiro, voltado para a família, para a profissão, para a religião, e preocupado em ajudar os necessitados e um obediente fiel da retidão e dos bons costumes. 

Respondi, olhando aquela falsificação: “ - Claro, Dr. Sphaudsen. Devo ter me enganado”. 

Como existem misteriosos e inconfessáveis desejos escondidos atrás de uma grande e sofredora personalidade, depois pensei.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A FESTA

Fui convidado para uma festa numa mansão toda iluminada e de muros altos na beira do mar. Só gente rica. E uns que queriam ser importantes. E também uma espécie de ratos de festa que andam atrás de visibilidade e de algumas sobras do grande queijo. Coisa de pobre querendo se dar bem na vida. Muita gente usando roupas de grife, relógios poderosos e sorrindo sem motivo. 

Os homens falavam de automóveis, barcos, jatinhos e negócios de todas as espécies: os lícitos e os nem tanto. E havia uma diferença que dividia as mulheres, acho que meio a meio: uma metade acompanhava os seus maridos e companheiros e a outra parte trabalhava, distribuindo simpatia forçada, sorriso falso e o corpo pra quem chegasse. E uma equipe com mais de quinze garçons servia espumante qualificado, uísque de renome e um pó branco que brilhava sobre as bandejas de prata bem polida. 

Na medida que a noite avançava, mais a vontade todos ficavam; mais bêbados, mais loucos e mais irreconhecíveis. Todo mundo pegava todo mundo e se atiravam a fazer sexo onde desse: nos quartos, na piscina, nos sofás, nos tapetes, nos gramados, nas cadeiras, nas mesas da cozinha e das salas. 

Ninguém mais pertencia a ninguém. Os maridos deixaram as suas esposas para os outros e buscaram as moças remuneradas. Tinha até marido de bom nome sendo mulher de outro renomado, e mulher de nome falso beijando mulher com sobrenome. Muito marido trocou a esposa por um rato jovem da festa, coisa que algumas senhoras também acompanharam. E também algumas esposas com esposos que não eram seus. O que mais sobrava era esposa mais antiga, mais isso elas davam um jeito entre elas mesmo. 

Foi quando olhei em direção ao bar e vi duas mulheres, uma novinha e outra quarentona me olhando, sorrindo um sorriso caçador que dizia: vem cá meu bem! Fui. Cheguei. E quando fui dizer o meu nome, uma abraçou a outra e se beijaram com fúria, com as mãos apertando, alisando as pernas uma da outra por baixo das saias sem calcinha. Uma delas, pela aliança que usava era esposa de alguém. A outra, não sei. 

Fiquei excitado com aquelas duas mulheres se agarrando na minha frente e entrei no jogo. Beijava uma e a outra. Enquanto beijava a boca da loira, a loira mais antiga beijava o meu pescoço. Ali mesmo tiramos a roupa e transamos os três. Eu com elas e elas entre elas. 

Depois não vestimos as nossas roupas. Estavam os outros todos em pelo, fazendo sexo, se amassando, bebendo, agarrados nas bandejas de prata, e a boca era pra todos os usos. 

Olhei pra um enorme tapete no chão e ali por cima tinha umas doze ou mais pessoas: homens e mulheres fazendo o que precisavam nos corpos alheios. Entramos, eu e as duas naquela confusão, e ali me liquidei, naquela perdição. 

Cansado, levantei, tomei mais uns copos de uísque e na penumbra vi que as flores brancas: os cravos, as rosas, os lírios dos vasos de cristal estavam todas mortas. Nem quis saber o motivo. Fui então procurar minha roupa. Não encontrei. Por todos os lados só havia roupas dos outros, aos montes. Me agachei e peguei um terno preto de um tecido caro e macio. Vesti a calça, um paletó e uma camisa. Serviram. E fui embora de pés descalços, levando uma garrafa de champanhe que falava francês. Abandonei aquela usina de sexo com o corpo perfumado, impregnado com os cheiros destilados e recebidos por conta daquela desenfreada luxúria. 

Já estava quase amanhecendo. Entrei assoviando em casa, e o terno que eu usava era de uma grife famosa, e a camisa também. 

Pensei: alguém vestiu a minha roupa que não valia muita coisa. Apalpei, e achei no bolso interno do casaco um cubano de raça pura, abri aquela champanhe e fui pra sacada. Fiz um brinde para o sol que atirava os seus primeiros raios nascentes que iluminaram o meu rosto e me deram força na alma, como se dissesse: aproveitaste bem, não é Joca? 

Sorrindo, em pensamento respondi: nem tanto meu rei. Hoje em dia, pra mim, qualquer bocado já é um grande banquete.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

OITO TORNOZELOS (II) (Miniconto)

Maria mãe tinha quatro filhas: a Maria um, a Maria dois, a Maria três e a Maria quatro. Nenhuma se parecia com ela nem com as outras. Só os tornozelos eram semelhantes. Parecidos não, iguais. 

Um dia tocou o telefone, e a Maria mãe sozinha em casa atendeu: uma filha sua havia sido atropelada. 

Foi até o necrotério. Levantou a aba do lençol que cobria os pés da moça; chorou profundamente e disse: morreu a Maria dois. Agora, lá em casa, somos apenas oito tornozelos.

A SOMBRA ASSASSINA (I) (Miniconto)

Através da porta de vidro fosco se via os vultos de um casal fazendo sexo. Depois, desatinados, vieram os gestos de uma violenta discussão. Os corpos se empurravam. Então, aparece na sombra da mão da mulher, a figura de uma faca que entra profunda na escuridão do peito do homem. 

Cai a silhueta do sujeito, e uma viscosa tinta preta escorre por baixo da porta.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

ÚLTIMO TANGO

Lá para as bandas da fronteira, muito adiante de Caçapava, nos arredores de Bagé, no bordel da Polaca; era onde a rapaziada se iniciava nos prazeres e nos desejos da carne, e os mais velhos davam prosseguimento nas soluções de suas inquietações sexuais. 

Loira pintozona, a Polaca, mulher em torno dos quarenta anos, esguia, com finos cabelos amarelos que se amarravam em um coque em cima da cabeça, o que aumentava o seu belo vulto; pele branca, meio rosada, com lábios graúdos e atrativos, e um par de seios quase de fora, mal e mal seguros pelo sutiã, um pouco mais alto que a borda do decote das blusas que invariavelmente usava, de maneira que umas delicadas e graciosas filigranas de rendas decoravam o contorno daquele colo exuberante. 

A cada mês, ela trocava no mínimo, meia dúzia de suas meninas. Sempre tinha carne nova na casa, o que atraia, e deixava em alvoroço todo o macharedo das redondezas. Em certas ocasiões, se notava, da mesma família, três gerações de homens: avô, pai e filhos, se fartando naquelas moças que jamais ultrapassavam os 30 anos de idade. 

E, lá em cima do palco, puxando um bandonion, tocando um tango preguiçoso, o Carlito, um castelhano melenudo, muito bom de música, mas brabo como uma cascavel, muito corajoso, sempre com uma adaga atravessada na guaiaca. Tocava, bebia uns goles de samba, e cuidava atento, com os olhos bem compridos, todos os passos da Polaca pelo salão, que de uns tempos para cá vivia protegida sob os seus braços, abrigada, na sua fama de valentão. 

Todos se divertiam no cabaré da Polaca, e quando alguém mais insolente queria partir para a briga, aparecia o Juvenal, um mestiço de quase dois metros de altura, forte e mal encarado, para colocar as coisas nos seus lugares; devolver os comportamentos para dentro dos conceitos de ética, das leis próprias que reinam nesses lugares. 

Vinha gente de longe para conhecer as meninas em flor, que só na Polaca se via, bem ao contrário das outras zonas da região, que mais pareciam uns asilos, de tanta puta velha que abrigavam. 

O segredo da Polaca era a novidade, a pouca idade das macias e cheirosas peles das suas mercadorias. Além de estarem sempre bem arrumadas, dentro de saias minúsculas, usando perfumes provocantes; simpáticas e carinhosas, boas dançarinas, ótimas parceiras de copo e, principalmente, safadas sem limites, quando se atiravam em cima das quatro linhas forradas por macios lençóis de seda. 

Numa noite de sexta-feira, já querendo ser madrugada, sem lua e nem estrelas, um breu de tão escura, chega um grupo de três rapazes, bem levantados; desconhecidos na casa. Dois deles frangotes ainda, por certo trazidos pelo outro, com ar de mais cancheiro. Entram e sentam num sofá de canto, e vem duas moças pra junto deles, e começam a beber. 

Um dos três, o mais velho, um sujeito com cara de encrenqueiro, ombros largos, testa saliente, cabelos claros e muito decidido, olhou a Polaca passar rufando os guizos de sua minissaia, e atraído por aquela formosa mulher levantou-se, e deu uns passos em sua direção. Bateu no seu ombro, e com energia a puxou para junto do seu peito, enfiando a cara no rosto da mulher, procurando a sua boca. 

Só se escutou um urro gutural, que parecia saído de uma fera gravemente ferida: - “com esta aí, no! Tira las manos desta mujer, otário!” – gritou o Carlito já em pé, com o bandonion atravessado na barriga. 

Pois não se assustou o atrevido com o berro desesperado do Carlito, e apertou mais forte ainda a Polaca junto ao seu corpo, e gritou bem forte, bem alto: - “Toca castelhano, toca uma marca só pra eu dançar com esta vagabunda. Fecho a casa e banco as despesas de todos, mas toca, filho da puta, uma música de corno pra eu bailar bem agarrado no corpo desta puta. Toca logo, desgraçado!” 

Só se escutou o barulho do bandonion ser atirado ao chão, e só se via os olhos esbugalhados, os corpos de todos parados, imóveis, suados, fixos na cena que diante deles se desenvolvia. 

Então, o Carlito deu dois passos para a frente, com os olhos em brasa, puxou aquela adaga de sessenta centímetros de lâmina, com o esse tinindo de bem polido, e enfiou até o cabo nas costas do sujeito, e viu caírem os dois na sua frente. Estava tão cego de raiva o Carlito, que colocou força demais na sua adaga. 

Voltou para o palco, ainda atônito, sem o juízo certo para avaliar o estrago, ajeitou o bandonion em cima das pernas, tomou uns golaços de samba, e tocou um daqueles tangos bem trágicos, e ao invés de cantar, deixou sair boca afora:” – Dança, dança agora esta, seu hijo de una puta, e paga toda la despesa de la casa!”

terça-feira, 23 de outubro de 2012

TUDO MEU. TUDO MEU

Lá pelos idos da metade do século passado, numa estância em Verde Vale, tão vasta que não conhecia os limites de suas divisas, lotada de cavalos, ovelhas e tanto boi gordo que nem podia contar, vivia o Juvenal, que fazia um sorriso abobado quando montava o cavalo tubiano e parava bem no alto de uma coxilha, com as botas estirando firme os estribos, firmando as rédeas com a mão esquerda, enquanto que com a direita aberta sobre a testa, fazia aba contra o sol, dando um giro completo com a montaria, atirava as vistas, até o olhar morrer nas lonjuras dos horizontes, pensando orgulhoso: tudo meu. Tudo meu! 

A seguir voltava pra casa, retirava a cama do lugar e deslocava uma tampa de madeira, e arrancava de dentro do buraco um panelão de ferro atulhado de pequenos sacos de lona, com coisa de quilo, cada, lotados até a boca de libras esterlinas, moedas do melhor ouro, que valiam quanto pesavam; e pensava: tudo meu. Tudo meu! 

Morava, o Juvenal, numa casa de leiva, mista com tijolos e tábuas rudes, coberta em parte com capim Santa-fé e o restante com telhas de barro, moldadas sobre as coxas dos negros que ainda estavam acostumados com as subserviências da escravidão. 

Na verdade, este rancho estava muito aquém do que podia; com piso de chão batido, um velho fogão a lenha, umas panelas desgastadas pelo uso, uns pratinhos lascados de porcelana, algumas canecas amassadas de alumínio, mais uns cachorros magricelas, latindo de fome, amarrados num pé de cinamomo. E lá dentro, a miserável da mulher e uma ninhada de filhos: os machos, já nascendo barba na cara, e as fêmeas na idade de usar batom; tratados a laço, grito e judiaria, como se não corresse em suas veias a seiva colorada de sua raça, e sim o sangue machucado dos cativos, e pensava: tudo meu. Tudo meu! 

Os rapazes envergonhados dentro das calças remendadas e pés no chão, e as filhas moças se arrebentando de desejos, com uns vestidinhos puídos de chita, com as estampas desbotadas. Todos embaixo das ordens do seu chicote. 

Nem um boi carneava, nunca, pra botar gosto de carne na boca daquela gente. Carne, mesmo, só de caça e de pescaria, quando os filhos, um negro com mais outros traziam pra dentro de casa. E aquilo fazia uma festa. 

A mulher, dona Tancinha, de família de nome antigo, também domesticada, dava dó, quase não se via. Quando chegava gente, a coitada se escondia lá nos fundos, de vergonha pelos pés descalços, dos panos surrados em que se enrolava, e dos dentes, e dos brincos que não tinha. 

Que homem mesquinho, o Juvenal, que só amealhou, e da vida nada viveu, e que não deixou, por ruindade, ninguém da sua volta viver. Sujeito de alma escura, tal como uma vela ordinária que nunca se presta pra fazer luz. 

E uma tosse antiga foi se chegando mais pra perto, se acostumando, gostando de ficar mais forte, até atirar peito afora uns pedaços de sangue no terreiro. 

Amedrontado, percebeu que a parca estava chegando, e resolveu enfrentar a fera daquela doença endemoninhada que lhe roía o respirador. Apelou não para a ciência dos homens, mas para um Deus que não conhecia. E em silêncio fez promessas para que o Criador não levasse a sua vida ao território do impenetrável mistério. 

Deitado na sua cama, espiando através de uma brecha no sapé, viu os céus da noite se taparem de luto, com umas nuvens negras de fumo se reboleando lá por cima,e se deu por mais fraco ainda, tendo a certeza que coisa muito ruim se aproximava. 

Foi quando deu por si, e resignado, bateu com força nas portas sagradas, e entregou de volta sua triste alma ao Senhor, numa despedida, porque se via no fim. E com o ânimo enfraquecido, com aquela culpa que ataca os moribundos mesquinhos, topou sumir, com a determinação dos que desejam desaparecer definitivamente de cima da terra. 

E para lacrar o desfecho, recaindo na arrogância, só tinha um pedido ao Criador: requeria, que no momento extremo, após o último suspiro, quando encerasse a sua agonia final, o seu nome fosse incluído no rol dos Santos. Se Santos deveras existissem. Caso contrário, aceitaria, até, entrar na listagem daqueles que apenas poderiam ser perdoados. 

Chamado pela morte, porém, um pouco antes de partir, Juvenal se lembrou de raspão, do dia em que veio ao mundo. E chorou. Chorou por conta das durezas do seu destino. Dos fados malditos que sempre carregou, da sina malvada que sempre soube que trazia consigo desde pequeno, tatuada no espírito. Chorou por todos aqueles que logrou e judiou para ter os seus sacos de moedas de ouro entocados embaixo do traseiro. Chorou pela falta de amor,e da trilha de afeto que o seu coração feito de palha seca, jamais percorreu. Chorou por ser mais pedra do que gente. 

Se recordou, nos seus momentos derradeiros, das vezes que tentou trapacear a morte, quando recorreu aos templos de todas as marcas, dos de discursos corretos e dos pilantras, que vendem por todos os preços, fé, salvação e milagres de cura. Lembrou-se, de quando tentou reafirmar, ou fazer surgir, nesses lugares, através de rezas e preces, abaixo de lágrimas forçadas e gritos de bicho, aquela crença que desconhecia, e que tanto necessitava. Precisava, a qualquer preço, para se livrar de tamanho fardo, solidificar as suas convicções, trabalhar a sua alma, para que pudesse ser favorecido por uma providencial obra divina. 

Chegou a acreditar, ainda que com uma ponta de interesse, que o tempo que castiga é o mesmo que suaviza e cura as cicatrizes. Que o mesmo látego que fere, queima e arde, é o mesmo que traz o bálsamo refrescante que fecha e termina com as feridas. 

Que terrível engano, Juvenal! 

Então, lhe sobreveio um instante de lucidez, que trouxe junto um estranho sentimento na alma e sentiu uma reviravolta nos intestinos, um estremecimento na pele do rosto que lhe repuxou os nervos do pescoço, desmanchou e torceu a posição natural dos lábios, e lhe deu o gosto de um rubro sangue que escorria quente e azedo das gengivas, que desceu queimando garganta abaixo, embaçando os olhos com umas névoas fumegantes, jamais percebidas. Era o último aviso. Chegara a hora de embarcar na nave sinistra, que o levaria para um, dos dois mundos desconhecidos. 

Sabia que estava partindo, embora ainda não aperfeiçoado, ainda desprovido do facho de luz, da doce resignação que ilumina as almas daqueles que aprenderam a pedir perdão. 

E num último momento, preso apenas por um tênue fio de consciência, antes de arrebentar o cordão que une esta com a outra vida, apoderou-se de tão grande delírio, que viu diante de si, três anjos agourentos da guarda de honra do diabo, que com suas asas negras ruflavam violentamente,e fabricavam um vento indomável que zunia e acendia, cada vez mais forte, e cada vez com mais energia as labaredas do inferno, que tomavam conta do seu corpo, como se lenha queimando fosse. 

Assim, já se vendo inquilino da casa dos mortos, atingido, também, pela inclemência de uma noite gelada de um inverno tenebroso, desencarnou solitário, com a cara virada pra lua, que brilhava poderosa através da brecha do sapé. 

E, sem ter encontrado uma solução que reparasse a memória antiga, se foi o Juvenal, sumindo pouco a pouco, se afinando, perdendo substância, se transformando em fagulhas incandescentes, em chispas desprendidas das labaredas que o consumiam, que brilhavam como um enxame de faíscas que produziam estridentes estalidos enquanto subiam para o alto. Só restando no terreiro um amontoado de tábuas e sapé fumegantes. 

E não muito longe dali, os seus sacos de moedas de ouro se abriram e pagavam as festas e celebrações de alforria para a desforra dos seus herdeiros, que nem em longínquos pensamentos, cogitaram, nem por um breve átimo do mais minúsculo dos instantes, de prantearem, com uma mísera meia gota de lágrima, a sua morte.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

O PADRE E O PECADOR

Estava passando por uma fase muito complicada, o Bonifácio. Ultimamente, de uns anos para cá, dedicava-se com afinco numa vida desregrada, dissoluta, pecadora. Pecava demais, o devasso do Bonifácio. Eram tantas as transgressões aos dez mandamentos que ele já sentia vergonha de um dia ter sido batizado. Carregava uma culpa tão pesada que fazia sua cabeça entrar ombros adentro. 

Precisava, o Bonifácio, encontrar uma urgente solução para viver em paz. Foi quando lembrou-se do padre Ambrósio, tido na cidade como um bom homem, porém rigoroso com as coisas da fé, mas que entendia e perdoava feito um bom pai, os desvios dos seus filhos. 

Então decidiu. Iria até a igreja e pediria clemência para as suas travessuras pecaminosas, antes que caísse sobre ele a implacável cólera divina. Se não recebesse o perdão dos céus, só lhe restaria ser assado numa grelha sobre as chamas incandescentes do inferno. E isso não seria bom. Com certeza, não seria a melhor alternativa. 

Numa quarta-feira resolveu que aquele seria o dia ideal para se confessar com o padre Ambrósio, para afastar-se definitivamente dos poderosos castigos do além e sair de dentro dos braços imundos do demônio. 

Tomou um banho, fez a barba, penteou o cabelo e vestiu a melhor roupa; um terno preto, misto de lã e poliéster, uma camisa branca de puro algodão e sapatos pretos de verniz. Perfumou-se como se fosse pra boemia. Antes de sair, parou diante do espelho, palitou os dentes, ajeitou o cabelo com as mãos, alisou as sobrancelhas com as pontas dos polegares, deu um sorriso, e gostou do sorriso que deu, e se foi em busca de um providencial alívio espiritual. 

Assistiu um pedaço da missa, meio sem jeito, com um certo desconforto pela falta de hábito. Tomou coragem e foi para a fila do confessionário, onde só compareciam as velhas e os velhos. Gente que há muito tempo não pecava. Nem em pensamento. De certeza, eram tão puros quanto o Deus pra quem pediam indulto por pecados nunca cometidos, nem imaginados. Estavam ali por costume e pra mostrarem que ali estavam. 

Quando chegou a sua vez, ajoelhou-se no genuflexório com o rosto grudado nas treliças, através das quais o padre ouve as confissões do seu rebanho, abriu a boca, acompanhando o ditado do confessor, de uma antiga oração de apresentação para o Criador, e rabiscou, cochichando no ouvido do sacerdote a sua infinita coleção de pecados, quase todos, mortais. Os veniais, aqueles pecadinhos insignificantes, nem valia a pena contar. Esses modestos escorregões sumiriam sem nenhuma importância, diante daqueles poderosos, que lhe consumiam as estranhas da alma. 

Pode ver o Bonifácio, por entre as finas ripas de madeira cruzadas, que o rosto do padre Ambrósio se espantava, se ruborizava diante de tão escabrosas confissões, que de vez em quando deixava escapar: “ – credo, meu filho. Você fez mesmo tudo isso?” 

Ficou apavorado, o antigo sacerdote, com os pecados do Bonifácio, afinal nem se recordava de quando ouviu pela ultima vez coisas tão feias, até porque, estava acostumado a somente escutar aqueles pecados que nem eram pecados, umas bobagens que saiam das bocas das velhas e dos velhos, que só iam na igreja por carência, por solidão, pra preencher o tempo vazio e morto de suas vidas tristes. Pecador mesmo, daquele tipo, digamos, profissional, fazia muito tempo que não via na sua frente. 

Terminada a longa confissão, o secretário de Deus aqui na terra, proferiu para o Bonifácio, a mais longa sentença de sua vida como clérigo: setenta e cinco padre-nossos, cento e vinte ave-marias, quarenta e dois credos, além de vinte e cinco voltas inteiras no rosário, e de troco, noventa e cinco santo-anjos. 

Levantou-se do confessionário e pensou que todos ali presentes sabiam da enorme pena recebida e foi envergonhado, cabisbaixo para o seu lugar. Ajoelhou-se, tirou uma caderneta do bolso do paletó e um lápis meio sem ponta para anotar as rezas imputadas. Para não se perder nas contas. Assim, rezava e anotava. Anotava e rezava, compenetrado, até que olhou para os lados e viu que a igreja estava vazia. Todos já haviam retornado para suas casas. E faltava muita oração, muitas mesmo, para acabar com o longo estoque da punição recebida. Coisa muito cruel, - pensou. 

Acabou não aguentando tudo aquilo. Era muita humilhação todo aquele rol interminável de orações, mesmo para um pecador contumaz. O padre fora duro demais com ele. Aquilo era reza pra perdoar os pecados da cidade inteira. 

Decidiu ir embora e voltou para a noite, que recém estava começando embaixo de uma lua cheia. Parou no bar de costume, pediu cerveja e cachaça. Porém antes do primeiro gole, fez o sinal da cruz, pediu consolo por ser um mau filho, e que dali pra frente, fosse o que Deus quisesse, ou o que o diabo receitasse, mas enfrentar aquele padre carrasco, nunca mais. 

Depois, já invadido pelos efeitos do álcool, o Bonifácio resolveu, que de outro modo, a sua maneira, pagaria as suas dívidas. Achou melhor, ao invés de rezar todas as rezas do mundo, voltar pra casa, e lá sim, cumpriria os castigos, as expiações, enfim, quitaria a sua sanção divina, convivendo em tempo integral aquela esposa imensa, que passava dos cento e vinte quilos, com todas as suas malévolas brabezas. Não haveria maior punição para ele. 

Voltou para casa resignado e apresentou-se diante da sua feiosa, hostil e amarga mulher, e com a voz pastosa falou: “ – me castiga. Vai, me castiga. Preciso demais usufruir da graça que virá, nascida deste suplício.

E assim, mais um homem se ferrou.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

UMA NOITE EM PARIS

Tarde da noite, saí do hotel onde estava e fui atrás de diversão, de bebida e de mulheres. Entrei num cabaré, um sobradinho cor-de-rosa bem enfeitado com quinze mulheres fazendo força para serem alegres, quatro ou cinco brutamontes com cara feia e uns babacas com muito dinheiro para gastar. 

E uma puta, logo que entrei, faleceu no meio do salão. Tinha uma rosa vermelha enorme de papel crepom presa logo acima da orelha esquerda que se desmanchava, e escorria pescoço abaixo, manchando com aquela tinta cor de sangue os taquinhos de madeira. Que coisa estranha isso aqui – pensei. 

Mas era tudo festa. Todos se divertindo naquele cabaré francês, onde uma gaita chorona, choramingava uma música boa para dançar bem agarrado, de se apertar noutro corpo e de beijar uma boca bonita. 

Foi quando apareceu um bailarino espanhol, dizendo que já havia sido campeão em todas ‘las monumentales plazas de toros españolas’, acompanhado de sua amante, que batia feito uma louca, espremendo as castanholas que quase se partiram no meio. E todo mundo aplaudiu. 

Então, subiram no pequeno palco uma francesa, e mais outras bailarinas faceiras e bem pintadas com vestidos coloridos e esvoaçantes dançando o can can da Belle Époque, ao som da gaita, cornetas e trompetes e atiraram as pernas para cima de mim, bem na minha frente, onde eu estava sentado. Cheguei a sentir o delicioso bafo de suas intimidades entrando pelas minhas narinas. Dei um grito de tão feliz e me agarrei na bunda de uma delas, uma loira que dançava sem calcinha e beijei tudo o que eu podia. 

Logo, retornou o bailarino espanhol, agora vestido de toureiro, com chapéu, capa e espada e desafiou um toureiro de verdade, para uma luta que teria como prêmio, a amante de quem ganhasse o duelo. Porém, o toureiro de verdade estava tão bêbado que não topou o desafio. Pois, aproveitou-se da ocasião o bailarino espanhol e levou para um quarto, a amante do toureiro de verdade, que já dormia, babando por cima de um sofá num canto escuro do salão. 

Em seguida chegou um casal de noivos arrumados para o casamento junto com os padrinhos e uns convidados. Achei que entraram na casa errada. Ela de véu, grinalda, toda de branco e ele bem arrumado, com uma casaca preta que brilhava, prontos para casar, e os padrinhos e os casais de convidados do mesmo jeito, bem ajeitados. Então dançaram todos, beberam como uns loucos e se misturaram com as putas, os cafajestes e os clientes e desistiram de casar. Descobriram aquilo que desconheciam, e gostaram. A noiva desmaiou de tanto trepar com um garçom em cima da mesa da cozinha. 

Aí, foi então, que chegou um guarda e mandou todo mundo embora, ou ficassem quietos e fossem dormir naquelas camas com colchões fedorentos, cheio de pulgas e chatos, percevejos e esperma envelhecido, dos quartinhos lá de cima. 

Quando já estavam obedecendo o guarda, chegou um padre maluco com uma batina suja, muito apertada no corpo e umas asas de anjo grudada nas costas e arpergiu uma água perfumada que dizia ser benta e perdoou todo mundo. Que bosta. Pararam de trepar as putas, os imprestáveis, os noivos, os padrinhos, os convidados, os clientes e os trouxas que ali estavam; surraram o pobre do padre. Até o guarda apanhou. 

Caídos no chão, bêbados, loucos, machucados, doloridos, arrebentados, sem roupas, pediram mais bebida para um outro garçom que mal caminhava de tanta droga cheirada e muita bebida forte. Deitados, sujos, vomitando, deslizando naquela nojeira pegajosa se abraçavam comemorando a boa vida. As putas borradas de batom vermelho, cansadas, de pernas abertas, se esparramavam onde dava. Os bêbados, os drogados, os políticos, os ladrões, os desqualificados em geral, mais os clientes, soltavam boca afora uma gosma amarelada, malcheirosa de álcool, droga e cigarro. E deixaram a noite andar. Afinal, os bêbados, os drogados e os ladrões; ninguém se acha pecador. 

Como sempre se vê, todo bêbado é um animal territorialista. Escolhe um boteco de quinta categoria, um bar qualquer ou um cabaré e ali se estabelece. Faz desses lugares a sua casa, e pensa que está vivendo. Nem sabe, o desgraçado, que está produzindo carniça para o demônio com os seus anjos de asas pretas. Perderam ontem, perdem hoje e vão perder sempre, essas almas agonizantes, de tantos amores não realizados. Que só se masturbam de tão infelizes, de tão crianças, que no fundo soluçam, choram por um colo quentinho que lhes fizessem dormir, enfim, em paz. 

Levantei os olhos daquele chão triste de morte que a alegria deixou quando foi embora e olhei para um outro canto do cabaré, numa penumbra, e lá avistei uns dançando e alguns sentados, comendo batata frita com cerveja e mijando no chão, e outros vindos da turma dos caídos, ajeitando a frente das roupas; e vi toda uma gente; um grupo de velhos e velhas com as peles brancas, mortas, que nem tinham mais forças pra levantar os braços diante da música francesa. Nem gritavam mais uiuiuuuu, comemorando. Mas não se entregavam. Até gostei daquilo. 

E uma gorda careca pulava de pés descalços balançando aquela barriga de porca com as tetas balofas desnudas, que desciam e subiam suadas como uns balões enlouquecidos. E no seu lado tinha uma jovem com cara de cavalo, mas com umas pernas fenomenais, junto com a sua mãe, braba, deslocada do lugar, de queixo caído. Pensei em ir lá falar com ela, mas a mãe dela estragou tudo; disse para a filha não me olhar mais. Nesse instante, uma francesa daquelas velhas lá do canto, toda enrugada, com o rosto tapado de base que derretia, e com o cabelo azul, me abraçou e me achou bonito e quis me beijar na boca. 

Quer saber? Puta que pariu, vou voltar pra o hotel. Não quero mais saber desta merda de noite francesa, neste cabaré de gente maluca. Amanhã vou procurar coisa melhor. 

Passei numa espécie de lanchonete, que nem era uma bem uma lanchonete, com o dia já amanhecendo e comprei três croissants e doze cervejas em lata. Entrei no hotel, subi pelas escadas até o primeiro andar, sentei numa poltrona do quarto e abri duas latas de uma só vez, e escrevi o que vocês acabaram de ler. 

Os croissants, bem, abri a janela e atirei os três na rua pra um cachorro que latia baixinho de tanta fome. Depois fiquei olhando triste para um cópia barata de Lautrec, que reproduzia cenas do cabaré Moulin Rouge; de uma época bonita que passou e nunca mais voltou. Como deveria ser feliz quem viveu naqueles tempos... Daí, fui enfraquecendo lentamente e dormi recostado na poltrona, com um sol forte que batia no meu corpo, bem agarrado na última lata de cerveja.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A MULHER INFLÁVEL

Fazia muito tempo que o Joca não via o Alfredão. Mais de uma década. Nem sabia que ele havia se separado da Joana, sua esposa de toda uma vida e mãe dos seus filhos que agora moravam no exterior.

Pois o Joca encontrou o danado saindo de uma loja de artigos eróticos agarrado numa caixa de papelão, embrulhada com esmero em um papel brilhante, especial.

Se abraçaram e falaram sobre a vida. Dos bons tempos que já se tinham ido, devorados pela inclemência faminta do tempo.

– ­Esta aqui é a loira. – ­­Falou de repente, sorrindo. Apontando para a caixa.

– Como assim? Uma loira aí dentro? Perguntou o Joca, surpreso.

– Sim. Já tenho em casa mais duas: uma ruiva que se chama Aurora e uma morena que é a Margarida. E esta, a loira, vai se chamar, Clara. A Clara Rosa.

– Do que tu estás falando, homem? Que loucura é essa?

– Mulheres infláveis, respondeu o Alfredão. – Agora, com essa nova aquisição me tornei um Sultão, dono de um harém. E começou a desfiar os seus argumentos nada ortodoxos.

Sabes, Joca, depois que me separei da Joana, por praticidade, não saio mais com mulheres de carne e osso. Resolvi montar um time, só dessas, e estou encantado.

– Joca, – continuou o Afredão, – essas mulheres infláveis são um espetáculo. É a invenção do século. São bonitas, esbeltas, sexies, perfumadas. Não são atacadas pela maldita TPM, jamais alegam dores de cabaça, estão sempre disponíveis, não brigam, não são agressivas, não ficam de mau humor, não engravidam e não dão despesa. É só o investimento inicial, e pronto. Depois, é só lavar e estão novas e silenciosas, quietas no canto delas. E tem mais: a tecnologia chinesa esta tão avançada que elas fazem movimentos surpreendentes com o corpo; com a boca e as partes íntimas.

– Nossa! Falou o Joca desconsertado. – Teu caso é gravíssimo; muito grave, Alfredão.

– Que nada. Essas mulheres são carregadas com umas baterias que permitem que elas façam contrações maravilhosas. O beijo então, é quente e úmido. São até melhores que as mulheres legítimas. Melhores que a Joana, isso eu garanto. Falou convicto o Alfredão.

– Que exagero!

– Tudo é vantajoso, continuou convincente. – Para cada uma, acompanha um kit com óleos especiais, fragrância aromática, o que as torna pra lá de verdadeiras.

– Para, Alfredão. Pode parar. Gritou forte o Joca. – Tu estás me dizendo que tens relacionamento um envolvimento com elas? Que gostas desta estranha situação?

– Gosto não. Estou apaixonado! Nunca fui tão feliz em toda minha vida!

– Como assim? Quis saber, o Joca.

– Queres ver? – Agora chego em casa e elas já estão quentinhas me esperando. Nuas, lindas, sensuais, sorrindo embaixo da penumbra do meu quarto. Depois, inflo esta loira da caixa e a coloco entre as outras duas. É uma loucura meu velho. Quando acordo no outro dia, nem acredito nas estripulias que fizemos juntos.

– Vou te internar, Alfredão. Que palhaçada. Não dá pra acreditar numa história dessas. Isso é misoginia. – jogou duro o Joca.

– Miso, o quê? – Que nada cara. – Prosseguiu o Alfredão. – Tudo isso é uma questão de costume. Tem mulheres que compram consoladores, vibradores, aqueles brinquedinhos de borracha, que são somente um pedacinho do homem, e se satisfazem, não é? Pois eu compro a mulher inteira, com todos os seus atrativos. Não compro uma pecinha isolada, e sim todo o conjunto, para a cena ficar bem real.

– E tu sabes de uma coisa, Joca? Acho que com o tempo de convivência elas vão adquirindo uma espécie de sentimento bom. De companheirismo, de afeto. Vão tomando gosto pela coisa. E o principal, acabaram as brigas lá em casa. Sumiram as desavenças.

Louco de faceiro, o Alfredão atirou aquela caixa com a loira sobre os braços do Joca e mandou ele esperar um pouco. Entrou novamente na loja e saiu de lá com mais três caixas: uma delas com uma mulher loira, outra com uma morena e a terceira com uma ruiva, e disse: são tuas. Leva e experimenta. Pegou a sua caixa com a loira dentro que estava com o Joca e se foi rua afora gritando: depois me telefona. Depois me telefona me contando.

Ficou o Joca feito um retardado mental, olhando aquelas três caixas de papelão embrulhadas pra presente, ali nos seus pés, em cima da calçada. E antes que a vergonha aumentasse chamou um táxi, colocou os volumes no porta-malas e rumou para casa. Chegando, subiu rápido para o seu apartamento. Parecia que os vizinhos que cruzaram com ele no hall de entrada do prédio sorriam debochados. Que sabiam do conteúdo daquelas caixas.

O Joca entrou no quarto e colocou as mulheres encaixotadas no lado da cama e abriu uma delas, a da loira, e inflou, encheu com uma bombinha pertencente ao kit, até ela ficar durinha, lustrosa, bonita, exuberante, cheirando a juventude. Depois colocou a mulher inflada na cama, cobriu-a com um lençol novo de seda e foi para a rua tomar um vinho. No bar de sempre tomou cinco garrafas e retornou quase de madrugada, bêbado, sem saber direito onde estava. Tirou a roupa e deitou-se. Quando deu por si, tinha no seu lado aquela linda mulher loira, nua; de pele macia, sedosa, perfumada, convidativa.

De tarde, quando acordou feliz da vida, realizado, o Joca deu um beijo carinhoso no rosto da mulher, agradecendo pela noitada.

Ligou para o Alfredão, e esse aos berros no outro lado: – eu não te disse! Eu não disse! Vai ficar melhor com as três juntas. Vai ser inesquecível. Vai, Joca, tira da caixa as outras duas. Vai cara, desembrulha logo! – provocou.

O Joca sentou-se na poltrona ao lado da cama e ficou matutando: – acho que está noite vou abrir outra daquelas caixas. Agora tem uma coisa, pensou: – se eu descer e tomar cinco ou seis garrafas de vinho, volto e abro as duas de uma só vez, e aconteça o que acontecer, transo com as três, e ai vamos ver como é que fica. Depois é só dar um nome para cada uma delas, pra gente ficar bem íntimo mesmo. Mas, pra não trocar os nomes e evitar problemas com elas, vou chamá-las, todas, de bichinha.

E pra não perder tempo, se foi o Joca, bem excitado em direção bar, tomar a primeira das seis garrafas de vinho.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O PERFUME DA MULHER

Foi numa noite fria de inverno, ocupando uma mesa num cantinho do bar, usando pouca roupa, que se resumia a um conjunto de saia e blusa e uma sandália baixinha, inadequadas para a estação, tomando um copo de vinho sem raça, que vi aquela mulher. 

Estava desamparada, distante e triste. Respirava pela boca, abrindo e fechando os lábios como um delicado peixinho fora d’água, agonizando, esperando a hora da morte. 

Tirei o meu casaco e coloquei sobre os seus ombros e chamei o garçom. Veio três travessas com carne suculenta, arroz e ovos fritos fumegantes e salada, e uma garrafa de vinho bom e ela sorriu forçado e depois exclamou: “ – que merda, essa vida!” 

Não respondi, nem ela falou mais. Ficamos comendo e bebendo aquela garrafa de vinho, e outra, mais uma e mais outra, até que ela me olhou e sorriu novamente. E sorriu bonito desta vez. E como era bonita aquela jovem mulher com os dentes brancos e os lábios bem desenhados. Como foi gostoso quando ela deitou a cabeça no meu ombro. Pareceu um bichinho abandonado buscando uma lasquinha de aconchego. 

Com os olhos verdes da cor das esmeraldas que nunca usou me olhava como se quisesse dizer alguma coisa, ou perguntar. Não disse e não perguntou. Eu quieto, só olhando pra ela pensando na sorte que tive, e tomando vinho e fazendo carinho nas suas mãos e nos seus dedinhos pálidos, delicados e compridos. 

Troquei de lugar e sentei ao lado dela, abracei o seu corpo com os dois braços e passei levemente o meu rosto na sua face e pude ver por cima do degote da blusa aqueles seios firmes, tamanho médio, perfeitos; com os mamilos rosados e empinados com os bicos endurecidos, vibrantes de tão vivos, se arfando necessitados querendo furar o tecido da roupa pra encontrar uma toca quentinha pra se abrigar. 

Tomei mais vinho e ela também e nos beijamos como se estivéssemos apaixonados e senti um especial e delicioso aroma que somente algumas raras e felizardas fêmeas liberam. 

Então passei a mão entre as suas coxas e senti aquela pele fina e aveludada, um pouquinho eriçada pelos arrepios que o frio e a excitação lhe provocava. E com a audácia necessária, enquanto nos beijávamos violentamente sob aquela quase meia-luz levei a mão até a sua mais guardada intimidade, invadindo a calcinha que a protegia. E lá chegando no paraíso encontrei um pequeno conjunto de penugens suaves; pelos curtos e macios, tais os fios do mais precioso algodão, umedecidos e perfumados com as essências sedutoras que nunca uma outra flor conseguiu exalar. 

E veio de lá, impregnado nos meus dedos a fragrância da sua mais secreta umidade. Néctar que ela me oferecia. A seguir coloquei minha cadeira de frente com a dela e passei as minhas pernas por fora das suas e juntamos os nossos corpos e nos beijamos como dois enlouquecidos. E foi tão forte e tão bom aquele beijo que os nossos corpos estremeceram, e sem pensar nos levantamos e continuamos a nos beijar, com as nossas carnes latejando, e o sangue feito um rio feroz correndo selvagem nas nossas veias. Nossas bocas corriam pelos lábios, pescoço, nuca, ouvido e ombros numa afobação que parecia que não se tinha tempo pra ser tranqüilo. E nossas mãos seguravam, esfregavam e apertavam as nossas intimidades, prontas para explodirem. Cada mão tocava nas partes que precisava. 

Fiquei com o rosto perfumado com o extrato tentador vertido da pele da sua face. Nunca tinha acontecido de conhecer uma mulher com um cheiro natural tão agradável, e uma boca tão doce e uma pele tecida por tão delicados fios como se fossem recém retirados do mais nobre casulo de seda. 

E mais imaginei. Muito mais. 

Paguei a despesa e saímos rua fria afora rumo ao meu apartamento. 

Ficamos trinta dias encerrados. Noite e dia. Dia e noite, gastando tudo que um tinha para oferecer para o outro, eu e a Janete. 

Naquela noite fria de inverno conheci a mulher com a pele mais suave e agradável ao tato, que exalava um perfume mais provocante por todas as partes do seu corpo, principalmente através daquelas mais desejadas. Essências e licores vindos de fontes especiais que à poucos afortunados é dado o direito de usufruir. 

No dia que fechou um mês de tantas e inesquecíveis horas a fio de prazer acordamos diferentes. Nos olhamos sem desejo, sem vontade, neutros. Nos esgotamos. Entendemos tudo sem falar nada. Me arrumei, ela também. Colocou a roupa do primeiro dia, e sem combinação nem ensaio dissemos os dois ao mesmo tempo: vamos embora! 

E não precisou levar o meu casaco. O inverno já havia terminado. Ela se foi. Mas mesmo assim, os cheiros e o gosto daquela mulher deixaram vestígios permanentes, que até hoje, muitos anos depois, ainda me invadem as narinas e se misturam na boca, adocicando a minha saliva.

sábado, 22 de setembro de 2012

A INICIAÇÃO

Isso aconteceu numa noite muito escura. No céu sobreviviam acesas apenas meia dúzia de estrelas e o gancho inferior de uma lua que minguava lentamente, se aprontando pra morrer. Só umas lamparinas abastecidas com graxa animal iluminavam aquele local no meio de um campo deserto. E a luz trêmula das candeias fazia brilhar os corpos suados e untados de óleos das negras e dos negros que ali me esperavam com os rostos pintados de uma intensa tinta escarlate. Um negro enorme, forte como uma fera, com uma cicatriz que dividia a testa, o nariz, a boca e o queixo ao meio, me empurrou para o meio de todos eles. Então, eles se aproximaram e com umas tiras de couro me bateram até não poder mais. Caí no chão embarrado, quando comecei a ouvir a batida de tambores e eles vieram dançar na minha volta. Uma negra alta, jovem e bonita, com cara de braba me ergueu do chão e me fez dançar também. E me abraçou e me beijou e me deu a entender que era mulher do mais valente guerreiro daquela tribo, e se insinuava, passando a idéia que gostava de mim. Eu fiquei com medo mas não adiantou nada. Ela me segurava, me apertava contra o seu corpo e continuava me beijando, me lambendo, mostrando que me queria. Pelo menos assim compreendi, pelo jeito sensual que falava. Aí apareceu, o negro guerreiro, marido dela. Separou nós dois, passou a mão fazendo um afago no rosto da negra e me derrubou com um grande soco no queixo. E me encheu de pontapés por todo o corpo. Foi quando cessaram os tambores, e ele parou. Olhei para cima e vi aquele grupo de homens com o corpo reluzindo armados com lanças perigosas, e do meio deles, bem na minha frente, apareceu uma majestosa figura negra que deveria ser o chefe, com uma máscara de couro colorida que lhe tomava a metade do corpo, da altura da testa até a cintura, com os braços cheios de fitas e penas, e as pernas também. Parou diante de mim e determinou que me levantassem. Falou umas frases curtas e de forte efeito sonoro, que eu não entendi, e apontou para uma charneca. E para lá os seus súditos me levaram e me atiraram naquele banhado fedorento. Fiquei lá com o corpo submerso, só com a cabeça de fora por toda a noite, e também todo o outro dia, quando eles sumiram, todos. Eu fazia força pra sair e não podia. Quanto mais me mexia, mais me atolava. O barro exercia uma força centrípeta sobre o meu corpo, comprimindo e anulando o meu esforço físico. Anoiteceu novamente e eles voltaram. Uma multidão deles. Me retiraram daquele pântano imundo e pagajoso e pra comer me deram uma tigela de barro queimado com uma espécie de mingau, e eu todo embarrado com o corpo coberto com aquela lama preta, retinta. Me levaram para uma grande cabana coberta de capim e tocaram os tambores novamente e dançaram sob os olhares do chefe sentado no seu trono de palha. E saia uma fumaça com cheiro de carne assada de um lugar ali ao lado. Olhei e vi em cima duma espécie de grelha feita de paus, muitos pedaços assando. Pela distância achei que eram pernas, braços, costelas e lombo de gente de pele branca. Voltou novamente aquela negra bonita e séria, mulher do guerreiro, me agarrou forte com os braços, bem nua com o corpo brilhando de uma óleo de cheiro bom. Me beijou, tirou o meu calção e me fez deitar com ela numa esteira no meio de todos, que fizeram um círculo em volta de nós. Veio por cima de mim com as pernas abertas, predadora, me devorando, cheirando a cio recém chegado, e fiquei com vontade. Quando estávamos quase terminando ela deitou os seios fartos e bem-feitos sobre o meu peito, encostou a boca na minha e os seus enormes lábios engoliram a minha boca e a minha língua. Em seguida levantou-se, e eu também. O chefe se aproximou e com uma faca feita de osso fez um corte comprido e fundo que atravessou o meu peito na horizontal, depois ordenou que ficássemos frente a frente com os nossos corpos grudados um no outro e nos amarrou com um cipó enorme. Feitos esses procedimentos saíram, e assim, grudados, corpo com corpo, hálito no hálito, partes nas partes, passamos a noite inteira. Provocamos uma queda e deitamos novamente na esteira e ela me beijava, beijava e me beijava com aqueles lábios gigantes, molhados e quentes e me lambia e engolia a minha língua e assim, somente com o atrito possível das nossas carnes nos realizamos várias vezes, deliciosamente. Dessa maneira ficamos também o próximo dia todo. E eu com medo do marido dela, do guerreiro valente. Quando anoiteceu outra vez eles vieram todos, com o chefe caminhando na frente e tocaram os tambores com toda força. O chefe ordenou que nos desamarrassem e nos levaram diante do seu trono de palha, quando ela limpou com a língua e com os lábios o sangue seco da ferida do meu peito. Então o chefe colocou um colar de sementes no meu pescoço e outro no dela. O meu corpo estava escuro, pintado de preto por causa do barro do lamaçal. O chefe me abraçou e mandou servir aquela carne assada. Comi e ela também, e todos igualmente, aquela carne com um gosto que eu não conhecia, sem tempero, meio adocicada e fomos para uma cabana pequena, que se entendi bem, a partir daquele momento passaria a ser nossa, minha e dela; o nosso lar. Antes, porém, todos os negros e negras, mais as crianças e os velhos apareceram e vieram nos abraçar e tocavam com as mãos os nossos corpos, festejando. Deduzi: me casaram com a negra. Nisso, apareceu uma espécie de feiticeiro e nos defumou com uma fumaça escura de cheiro marcante, porém indecifrável, e me fez engolir uma bebida horrível de tão amarga, me ensinou umas palavras e um jeito de falar com as mãos e me vestiram uma tanga de pele sovada. Me senti especial e me adotaram como irmão. Dormimos na nossa cabana, não sei por quantos dias e noites e sempre tinha na frente da porta umas tigelas de mingau e uns pedaços daquela carne assada. No dia que saímos, as mulheres da tribo levaram ela pra cortar mandioca, eu recebi de presente do chefe uma lança novinha em folha, recém feita e entramos mato adentro. Eu, preto, marcado no peito como todos, me tornei guerreiro também. E o ex-marido da minha negra se fez meu amigo e ficou sendo o meu mestre nas artes e nos ofícios da guerra e da caça. Pensei: melhor assim. Pelo menos não virei carne assada, como aqueles outros que comemos nos últimos dias. Passou o tempo e fiquei morando por lá, bem entrosado com eles. Até achei que era isso mesmo que eu estava precisando. 

Tocou o despertador e não ouvi. Acordei com a voz macia e carinhosa da Cida falando baixinho no meu ouvido: acorda, acorda, senão tu vais te atrasar. Então, levantei arrasado, com vontade de dormir de novo. Afinal, que dias virão sem os meus irmãos selvagens e longe da minha negra indomável. 

Saí de casa melancólico, com uma faísca de saudade por conta daquele efêmero presente, que, como um novelo de fumaça, do nada apareceu, e de manhã cedo, repentinamente me abandonou. 

Sentei na calçada e fiquei observando a força do vento arrancar as folhas das árvores. Depois, no chão, só restaram as pétalas vivas das flores em redemoinho fazendo um bailado triste diante dos meus olhos, que, ali, não encontraram nada que pudesse me responder, se eu havia, na verdade, perdido alguma coisa importante quando a noite passada terminou.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

DELÍRIO

Em uma das mortes que tive, subi para uma espécie de céu; o paraíso, ou desci para aquilo que fosse o inferno; a dúvida, ou andei para um purgatório, onde gemia. E por lá encontrei uma figura, um bichinho magro e comprido com feitio de gente, ou seria aquilo uma pessoinha estranha com cara e jeito de um animalzinho? Não sei. Pra falar a verdade, eu não tinha a mínima ideia onde estava, e quem me recebia. Acho que nem sabia quem eu era. 

O fato é que essa criatura ou invenção de um delírio era transparente. Tinha a pele tão fina que parecia um papel de seda, de maneira que eu podia ver as suas veias latejantes transportando sangue, linfa ou seiva. Não consegui identificar que líquido era aquele. Via os seus órgãos funcionando, pulsando, cumprindo as suas funções. Enxergava os movimentos peristálticos de suas entranhas se mexendo como cobras inquietas amontoadas no ninho. E avistei o interior do seu cérebro como se fosse um motor, um dínamo produzindo energia, que imaginei que poderia ser: calor e frio, alegria e tristeza, amor e ódio, abraços e vingança, vida e prazer. Ou morte. E tinha o interior da cabeça iluminado. 

Então pensei: será que esse trocinho é Deus? Será que aquele Deus que me ensinaram a imaginar era mentira? Que aquele velho gigantesco, barbudo, vingativo, temido, era na verdade, só isso: essa criaturinha indefinida, sem uma mínima expressão de autoridade, respeito e credibilidade cravada na sua fisionomia? Mas o diabo também tem cara de ruim, de vingativo. E a criaturinha era boa, mansa. Não era supremo, nem demoníaco. Era boa, simpática, simplesmente. Carinha boa era o que tinha a criaturinha. Mas aquela luz na cabeça, só ela possuía. 

Fui me aproximando, chegando bem pra perto daquela coisinha, já sem olhar para os seus intestinos; coração, rins, fígado, nervos e veias. Me fixei na transparência da cabeça que mostrava o seu cérebro elétrico todo iluminado. Pra alguma coisa importante deveria servir aquilo, julguei. 

Parei bem juntinho dele, me abaixei, e olhei bem fixo pra dentro daquela cabeça volumosa, onde cabia coisa de uns três quilos de massa encefálica, toda trançada com veias coloridas, e perguntei quem ele era, a quem servia e que serventia possuía. 

E a figura que não tinha boca, pelo menos assim como a nossa, só um desenho daquilo que seria uma boca, dois furos no lugar do nariz, uns olhos opacos, enormes, saltados, que não enxergavam, e sem orelhas, só dois canudinhos no lugar delas e, inesperadamente e sem me dar resposta, fez o cérebro brilhar bem forte e atirou uma espécie de raio azulado em cima do meu corpo, que me derrubou. 

Caí um tombo feio. E dormi não sei por quanto tempo. E quando acordei estava em casa novamente, deitado na minha cama. 

Foi quando sem saber se tinha sonhado, enlouquecido ou havia caído em delírio outra vez, pulei fora e fui tomar um café preto bem forte e quente, muito preocupado, afinal, andava delirando demais ultimamente, vendo coisas estranhas. 

Tentei pensar como os malucos pensam, numa tentativa de decifrar o ocorrido. Por mais doido que tentasse ficar não consegui resposta nenhuma. 

Tentei ser religioso e pensar como os crentes pensam pra obter uma resposta. Nada. 

Tentei ser inteligente e pensar como os inteligentes pensam. Piorou. 

Então vou ser um idiota e pensar como os idiotas pensam. Pior ainda. Vazio total. 

Pra resolver a questão tomei quase um litro de uísque no gargalo, pra ficar bêbado e pensar como os bêbados pensam. Só porcaria. 

E quando já estava pensando em telefonar para a Sílvia me internar num hospício ou qualquer coisa do gênero, já que pensava que estava completamente pirado, bate a campainha. Levanto cambaleando e abro a porta. 

Era a Sílvia, minha namorada. Entrou, bateu a porta, se encostou na parede, colocou horrorizada as duas mãos no rosto, arregalou os olhos e com um fiapo de voz que lhe sobrou, me perguntou: “ – o que houve contigo, Juquita? Tu estás transparente!” “ – Foi o bichinho”, respondi. “ – Que bichinho?” Insistiu. “- Esquece”, devolvi. 

Logo se acostumou um pouco com o que via e perplexa olhava todo o meu interior. Aconteceu com ela a mesma cena com a coisinha que me assombrou. 

Fechei os olhos e cochilei um pouco no sofá, e quando acordei, olhei para a Sílvia, e agora para outro espanto meu, aquela bonita mulher estava translúcida como uma vitrine, revestida de um papel de seda tão fino, que visitei com os meus olhos a parte de dentro do seu corpo e da sua cabeça. Cheguei, por breves instantes, a enxergar os seus pensamentos, que estavam sendo fabricados naquele instante, no interior do seu cérebro. 

Ela pegou na minha mão, me levou para o quarto, apagou a luz, e na escuridão nos deitamos, e sem a necessidade de tirarmos as roupas, fizemos amor, assim como se fôssemos duas lâmpadas acesas grudadas uma na outra. Foi o melhor amor que fiz em toda a minha vida. Nem antes, nem depois houve nada melhor. 

Quando terminamos virei para o lado e o quarto já não estava totalmente escuro. Uma luzinha gostosa, meio azulada, dava vida para o ambiente. Olhei para a frente com o canto do olho levantado, e lá estava a figurinha que eu já conhecia, em cima do criado-mudo, em pé, imóvel. Então abriu aquele desenho de boca, formou dois lábios bonitos e sorriu pra mim, com a cabeça acesa, parecendo um abajur. 

Me ajeitei melhor na cama com os olhos bem abertos, também sorrindo para a criaturinha, e me senti em paz, tranqüilo. Pareceu até que ficamos amigos. Que um gostava do outro. 

Cutuquei a Sílvia com o cotovelo e perguntei: 

“ – Tu viste? Tu estás vendo?” 

Ela grudada nas minhas costas, com o rosto mergulhado na minha nuca, retrucou: “ – vendo o quê? Ficaste doido, Juquita?” 

Me virei de frente para ela e não vi mais os seus intestinos, nem o seu cérebro. Estava de volta com aquela pele sedosa de pêssego maduro que eu sempre gostei tanto. 

Aí, perguntei pra ela: “ – como é que eu estou? “ – “ Transparente ainda, mas voltando ao normal.” Respondeu. 

A seguir escutei um barulho de persianas se abrindo, e vi, meio querendo não ver, a figurinha saindo, voando janela afora. 

“ – Putz. Que coisa doida tudo isso, não? Falei sem querer. 

Fizemos amor de novo, eu e a Sílvia. 

Nunca mais conseguimos fazer amor como naquela ocasião, quando ela estava transparente e iluminada como eu, e com o sujeitinho aquele ali por perto; acho que colocando luz nos corações da gente.

sábado, 8 de setembro de 2012

A VENDEDORA DE COSMÉTICOS

Desde o triste dia em que o Adão acreditou na conversa da Eva, que caiu na tentação da serpente e comeram o fruto proibido, da árvore do conhecimento, temos todos, homens e mulheres, que enfrentar a ira de Deus e cumprir o doloroso castigo divino, de trabalhar pesado e suar muito, para temperar a farinha do nosso sagrado pão. 

E dissimulados, quando questionados pelo Criador sobre a desobediência cometida, o Adão culpou a Eva, que culpou a cobra, ambos se dizendo enganados, se passando por vítima. Não adiantou nada. Estava proferida a sentença. De olhos abertos e envergonhados foram expulsos, sem direito a recurso, daquele sítio encantado. 

Por tal imprevidência, merecia o primeiro casal, era uma grande surra, mais o desprezo total dos humanos que lhe sucederam. Onde já se viu perder aquela mamata que era viver no Éden, em troca de uma maçãzinha boba. Por mais suculenta que fosse, foi um péssimo negócio. 

Foi fraco o Adão. Bastava bater o pé, e dizer um sonoro não para a Eva, e estaríamos em férias permanentes até hoje. Por culpa dos dois perdemos o Paraíso Eterno. Agora, o Éden almejado é trinta dias de descanso numa dessas praias badaladas e entupidas de gente, com os preços pela hora da morte, com férias miseráveis, muitas vezes regadas com suco de saquinho e sanduíche, polenta e frango assado. É, mereciam apanhar, o Adão e a Eva. 

E com a Adelina, vida não foi diferente. Tinha que trabalhar para compor o orçamento doméstico. Ajudar no sustento dos dois filhos que o Cândido trouxe junto, frutos do casamento anterior. 

Pois inventou a Adelina de encher uma frasqueira com cremes, perfumes, loções e quejandos, enfim, uma linha sortida de cosméticos, e às tardes sair pelo centro da cidade oferecendo os seus produtos. 

Esta atividade da Adelina estava rendendo bem. Já ganhava muito mais do que o Cândido, como garçom de churrascaria, até, porque, a mulher era vistosa, e linda. Longilínea, cabelos louros abaixo dos ombros. Cintura marcada. Contemplada com exuberantes coxas roliças, douradas, enfeitadas com umas penugens delicadas, deliciosamente ali nascidas, que provocantes subiam joelhos acima, progredindo bandidas, até o céu das suas virilhas. Pareciam ouro em pó reluzindo contra o sol. E os lábios, quando não estavam pintados de carmim, eram duas pétalas cor-de-rosa, tiradas da cor rosa, da rosa mais cor-de-rosa que já existiu. Pura tentação. Sobrava-lhe corpo, beleza e encantos. Até nem combinava com o Cândido; baixinho, barrigudo e sem iniciativa. Pasmado. Quase nada somava. Quando a Adelina passava, quebrava o pescoço da gente, botando em fervura os hormônios de quem era macho, e fabricando inveja e antipatia no mulherio; nas feias e nas bonitas, aquela cavala desgraçada. 

Porém, a Adelina se exibia meio avoada, fugia um pouco daqueles exigidos padrões familiares; daquilo que a sociedade espera do comportamento de uma esposa convencional. 

Trabalhava até as duas da tarde, e a noite, o Cândido. Portanto, tinha tempo de sobra para levar a Adelina até os clientes, que agora, já atendia com hora marcada. 

Chegavam próximo a um prédio, estacionava o seu carrinho verde-garrafa e a Adelina subia até um apartamento para demonstrar tubos, vidros e potes do seu sortido e aromático cardápio de iguarias cosméticas. Sempre avisando o Cândido que demoraria coisa de uma hora, ou um pouquinho 

mais, porque aqueles eram clientes especiais. E como tinha clientes especiais, a Adelina. Ele, contente, aguardava a mulher, escutando música brega no rádio do carrinho verde-garrafa. 

Assim passava o tempo, com a Adelina fazendo quatro visitas por tarde. Depois, voltavam para casa felizes por conta do belo faturamento feito com as vendas a domicílio. 

O homem é um ingênuo. Pensa que domina a situação. Se convence, tolamente, que possuiu nas mãos as rédeas do relacionamento. Doce ilusão. A mulher, por sábia, concede-lhe esta impressão. Não passa, o coitado, de um marionete falante, manejado com habilidade pela perspicácia feminina. Executa o que ela lhe ordena e pronto, tal um animal domesticado. 

Da mesma forma que o Adão foi ludibriado pela Eva, por confiar na sua palavra, assim também o Cândido, o Adão moderno, acreditava na Adelina, a Eva de hoje. 

Quando já havia passado uns três anos naquela atividade, a Adelina, com boa quantia na poupança, abandonou o Cândido e os filhos, alegando que precisava ser dona do seu nariz; que iria abrir uma loja de cosméticos em outra cidade, porque o negócio era muito rendoso. Que não nascera vocacionada para o matrimônio. 

E se foi, deixando para os seus homens o perfume azedo da saudade. 

Ele chorou umas lágrimas quentes que lhe queimavam as faces, e junto, uma tristeza, que feito um estilete afiado, ia tirando lascas da sua alma. Alguma coisa importante se quebrou dentro do Cândido, naquele dia. 

Nem ao menos um bilhete de despedida embaixo do travesseiro, pensava o Cândido, sentado na cama, olhando fixo para a frasqueira da Adelina, atirada num canto do quarto, quando deixou sair boca afora misturado numa voz molhada: agora ri bastante bobalhão. Chora, palhaço! 

O que o Cândido nunca soube, é que a Adelina, não vendia cosméticos. Era só fachada. Quando ela subia diariamente, todas as tardes, inclusive nos finais de semana, nos quatro apartamentos, era para fazer programas com os clientes fixos que lhe pagavam muito bem. E para dar verdade ao negócio, ela entregava alguns produtos, como brindes, para aqueles que se saciavam nas suas apetitosas e douradas carnes. Final do dia, a baixa no estoque da maleta, justificava o dinheiro recebido. 

E o Cândido também não ficou sabendo, que na cidade do interior para onde a Adelina se mudou, ela não abriu loja nenhuma de cosméticos, e sim, a melhor casa de mulheres da região. 

Lá chegando, passou a ser chamada, e ficou muito conhecida e famosa como madame Hadelye, que adquiriu inclusive um estranho sotaque francês, arrumado, não se sabe onde. É verdade. Neste campo misterioso, os homens evoluíram muito pouco depois da experiência no Paraíso. Ainda são uns Adões inocentes, acreditando cegamente em tudo que as Evas lhes prometem. E estas, continuam envolvidas, com os perigosos bafos das serpentes.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

PITANGAS MADURAS

A casa de alvenaria antiga da fazenda, pintada de branco, de cal, já desbotando; com janelas pequenas e três portas marrons que saiam para o terreiro: uma na cozinha, outra na varanda e mais uma que dava acesso à sala, onde recebiam as visitas e velavam aqueles que por lá inventavam de morrer. E uma área com duas cadeiras de balanço na frente da porta principal.

Tudo cercado de cinamomos, laranjeiras, pitangueiras, e outras, e muitas outras de sortidas espécies. Um poço d’água com manivela, um forno a lenha, um galinheiro, uma horta, um galpão, e roupas estendidas no quarador; as de cama e as de uso pessoal. E também apanhando sol, uns paninhos felpudos manchados de sangue escuro que eu não entendia a serventia. E uma estradinha torta em direção a cacimba de água boa, e ao açude de banhos e pescarias, e ao mato, entre a casa e o açude, onde cantavam todos os passarinhos do mundo.

E na casa, três filhas ou netas dos velhos, nem me lembro direito. E eu, na infância como elas, brincando brincadeiras de miúdo.

Um dia de tarde, embaixo da área da casa, a maior das três tirou a calcinha, levantou a saia e me chamou pra perto dela. Não compreendi, mas fui. Baixou as minhas calças curtas, me agarrou por baixo dos braços, fez força e me levantou até a altura certa, e se esfregava agitada, e por ter mais tamanho e força, manejava o meu corpo, atritando minhas ainda inocentes partes, nas suas, que já inflamadas, tremiam por uma necessidade, que pelo menos pra mim, era ainda desconhecida.

Foi quando ela pediu ajuda para as outras duas menores, iguais a mim, em altura e idade, que por ali estavam sentadas nas cadeiras de balanço assistindo ingênuas aquele esforço.

Ela, a maior, em pé, com o traseiro encostado na parede, com as pernas bem abertas, junto com as outras duas me suspenderam e me posicionaram na altura recomendada, e ela, com a mão, auxiliava, e insistia, na tentativa de se preencher com o meu instrumento ainda em formação.

Olhei o seu rosto e notei uma expressão que nunca tinha visto nas mulheres e nas outras gurias. Achei que era uma grande vontade, uma ânsia ainda não satisfeita. Uma espécie de uma gana muito forte. Mas que devia ser uma coisa muito boa aquilo que ela estava sentindo, a julgar pelas caretas que fazia, pelos chiados que assoprava e pelas palavras quentes que dizia, e que eu nunca havia escutado.

Até que ela, ajudada pelas outras, me ergueram mais, até a altura do seu rosto, e bem desajeitada, com fome, mordendo os próprios lábios, me beijou, lambuzando a minha boca com uma saliva morna, meio adocicada.

Depois desistiu, me colocaram no chão, puxou a calcinha pra cima e ajeitou a saia. Eu abotoei a minha calça curta no suspensório e ela dispensou a ajuda das outras duas, que olhavam curiosas aquela estranha brincadeira.

A seguir fomos os quatro bem contentes correndo para o arvoredo. Batemos num pé de pitangueira, e possuídos da mais pura inocência ficamos com os beiços pintados de um vermelho bem encarnado, da tinta, daquelas deliciosas e inesquecíveis pitangas maduras.

A TRAPAÇA

Início de uma madrugada mormacenta, estava passando na frente de um hotel, que de hotel só tinha a placa, desses bem muquiranas, quando saiu lá de dentro uma mulher gorda, soltando as banhas por cima da saia e as tetas saltando pra fora da blusa. Saiu se coçando, espremendo com a ponta dos dedos os piolhos e pulgas que nela moravam, e chutando com a sandália velha as baratas que se atravessavam no seu caminho.

Resolvi seguir a mulher, que se enfeitou toda para aquele resto de noite. Pobre miserável. Nunca vi arrumação tão pobre, tão feia, tão decadente, tão humilhante. Coitada. Por querer se arrumar bem, ficou ridícula. Fantasiada, com as vestes surradas que usava. 

Andou coisa de três quadras, e eu meio por longe, atrás dela. Até que entrou num boteco; uma espelunca, misto de bar, boate e motel. Mas caindo aos pedaços. Uma imundície 

Fiquei no outro lado da calçada olhando aquele grupo de gente suja, se entorpecendo de cachaça ordinária e vinho de garrafão, naquele antro fedorento. Naquela reunião de aflitos se encontraram uma porção daqueles que perderam: prostitutas decadentes, travestis com barba de um dia, bêbados, jogadores, ladrões, punguistas, malandros, mendigos, estelionatários e vadios de toda espécie. 

E ali festejavam, com aquele jeito grosseiro, estúpido, uns farelos de contentamento que se soltaram das suas supremas desgraças. Davam risadas macabras, ruidosas, grosseiras com as bocas desdentadas. E as putas e os viados com os lábios doentes pintados da cor de sangue. E quem ainda tinha alguns dentes, os exibiam podres, furados, com as gengivas amareladas, sangrentas. 

Os rostos escurecidos, inchados, maltratados pelo álcool, mostrava com que gente se estava lidando.

E as unhas sujas e compridas, parecendo garras de fera. E um cheiro azedo dos líquidos que vertiam corpo afora, se misturando com perfumes vagabundos, mais as fumaças dos cigarros e as outras fumaças, tornava aquele ambiente empestado na principal filial do inferno aqui por cima da terra. 

Falavam aos berros e se empurravam. E gargalhavam por conta de uns ganhos acanhados, mínimos, obtidos como se fosse fortuna. Comemoravam essas pequenas esmolas de alegria que a vida de vez em quando lhes fornecia. 

Diziam com certo orgulho, sobre as vantagens dos logros, das brigas, das facadas, dos furtos, dos assaltos que cometiam. E não se queixavam. Acho que nem se preocupavam com as diferenças. Era assim que tinha que ser, e pronto. Nem se davam conta das gotas de veneno que o diabo colocou em suas almas, quando nasceram. 

Dançavam, pulavam, cantavam, sorriam, assim, irracionais, tipo bicho. E para mostrar quem eram, exibiam feridas inflamadas, talhos e bolhas não cicatrizadas, nas pernas, nos braços, nos sovacos, no pescoço, nas virilhas. Muitos desses ferimentos amarrados com uma tira de pano manchada de pus e sangue apodrecido. Mais as cicatrizes feias, curadas sem cuidado, largas, que pareciam uma estrada sem capeamento. 

As roupas imundas, emporcalhadas de marrom; sapatos velhos, chinelos rotos, e uns de pés no chão. Alguns mijando nas calças, erguiam, estimulados pela música de corno, braços e dedos mutilados e faces marcadas por cortes antigos de navalha, faca ou estilete. 

Quando se observava aquele gingado desajeitado, de fera se balançando, parecia que dentro de cada peito, batia o coração do satanás. Não podia se outra coisa, quando um negro de testa grande, com a boca inteira, mordia, lambia, e tal como um vampiro sem dentes chupava o couro flácido do pescoço suado e grudento de uma crioula meio adormecida, que de olhos fechados se sentia uma princesa. 

Que outra coisa ruim poderia estar ali, quando uma velha gorda fazia sexo em pé, curvada sobre uma mesa com um mulato forte e suado, enquanto um travesti, ou seja lá o que fosse aquilo, beijava a boca de um sujeito com as calças arriadas, que não tinha a mão esquerda. E um grupo de seis homens com os membros pra fora, se encostavam uns nos outros, se medindo, se esfregando, enquanto uma mulher, que já tinha sido bonita um dia, ajoelhada no piso pegajoso, girava o corpo no meio deles, oferecendo a boca salivante, pra saciar e ser saciada, tal uma cadela sem raça entrada num cio desesperado. 

E na frente de um lance de escada, esperavam em fila, uns pares de todos os sexos; alguns já sem roupa, em plena atividade, uma vaga num dos quartinhos pintados de rosa forte, pra se deitarem uns com os outros, aos pares ou em grupo. 

Seria aquilo a busca do amor? Ou um instinto selvagem da carne? Ou os dois? Não achei resposta. 

Enquanto isso no salão, com as mãos lambuzadas de gordura, quatro mulheres obesas comiam desajeitadas, peles de frango e toucinho de porco fervidas numa banha rançosa, que escorria queixo abaixo. E cuspiam e vomitavam no assoalho encardido e por cima do balcão. E se olhavam risonhas, achando tudo bonito. 

Pude ver também, encostada num canto da parede uma mendiga de cabelos claros com a pele toda quebrada, de mãos postas contra a testa, implorando, implorando, desesperada, que o Criador lhe desse aquela morte, que nunca chegava. 

E vi, uma mocinha, menina ainda, a coitadinha, com as faces cravejadas com delicadas pintinhas claras, de cabelos afogueados e com uma fitinha branca passando pelo meio da testa, que deveria ainda gostar de boneca. Que se estivesse numa igreja, passaria por um anjinho, que enganada pela noite e pelo Rei das almas, estava ali, com a boca pintada de um vivo batom vermelho, rubro, quente da cor do sangue, abraçada num bagaceiro daqueles. Perseguida e sendo usada, e tocada em suas partes ainda não completas pelas mãos e corpos daqueles miseráveis, cujo único pecado cometido foi terem nascido sem a chance de serem gente. Ultrajando a sua inocência, se perdendo chão adentro, orgulhosa por ser mulher. Toda faceira, com um brinquinho de fantasia que tinha uma pedrinha branca pendurada, com a intenção de dar um brilho sensual no seu rosto ainda infantil. 


E todos os outros, aqueles que deram certo ou lutavam para acertar, viravam a cara quando passavam diante daquela porta; por nojo e desprezo. 

Viver é um jogo. Mas quem perdeu por tão grande diferença, sem ao menos competir, se pensar, sabe que aquele resultado é inaceitável, injusto. Um escândalo. Dá até pra cogitar que houve uma espécie de trapaça por parte daquele que tem nas mãos o controle dos barbantes, quando fez a distribuição daquilo que se chama de destino. 

Eu havia entrado ali para me certificar que o diabo existe, e que Deus as vezes falha. 

E confirmei as minhas suspeitas, e sai daquele ambiente com a mente turvada e o peito apertado, dolorido. Descrente com o poder das orações e das forças invisíveis, com a energia humana esgotada, querendo luz naquela escuridão. 

E com o estômago embrulhado e o coração retorcido, revoltado por essas inexplicáveis e injustas diferenças, briguei outra vez com Deus. E tomado por uma raiva violenta, botei a mão no bolso do paletó, e atirei o rosário no lixo.

ASSIM NÃO DÁ MAIS

E essa maldita semente que não brota nunca. E aquela carta que nunca chega. E essa saudade que nunca morre. E esse pensamento que não sossega. E esse teu perfume que não me abandona. E essa música que não me deixa te esquecer. E aquela vizinha gorda do quarto andar que não para de dar descarga no vaso. E aquele maluco que não para de gritar. E aquele casal que transa direto em cima da minha cabeça. E essa solidão que não acaba. E a Aninha que atirou a aliança fora. E aquela prostituta que não aperta nunca no interfone. E a minha puta que não liga mais. Que canalhice, de uns tempos para cá as coisas não andam nada fáceis. É só dureza. Só dureza. Mais um pouco e largou tudo de mão e desapareço.

E essa porcaria de semente que não brota nunca. Parece até que endureceu a casca. E essa dor de barriga que não passa e essa ressaca desgraçada de todas as bebidas de ontem e de todos os dias. E esse vômito grudento espalhado pelo corredor. E essa torneira que não para de pingar. E essa merda de ventilador que não funciona. E essa cerveja que não gela nunca. E essa tosse que não sossega. E esse furúnculo que não explode. E esta insônia que não me abandona. E aquela prostituta irresponsável que não aperta nunca no interfone. E a minha puta que não liga mais. Ela que sempre ligava.

E essa semente que não brota nunca. Que semente mais ordinária. E esse cabelo encravado no saco. E esse candidato reacionário com esse assunto conservador. E aquela bolinha ardendo, coçando; filhote da hemorróida. E esses políticos canalhas que só sabem roubar. E aquela vizinha feiosa do primeiro andar que-quer-porque-quer transar comigo. E aquela loirinha do terceiro andar que faz que não me vê. E essa testosterona que não se acalma. Que fase, essa! E aquela prostituta tratante que não aperta nunca no interfone. E a minha puta que não liga mais. Deve ter arrumado outro, a desgraçada.

E essa porra de semente que não brota nunca. Vou atirar esse vaso fora. Tô ficando irritado com tudo e com essa bosta de semente. E essa louça que ninguém lava e esse piso que ninguém limpa. E a vontade de escrever que sumiu. E os cigarros, os vinhos, as cervejas e os destilados que estão terminando. E aquele dinheiro que nunca chega. E também essa prostituta vagabunda e irresponsável disse que em meia hora estaria aqui. Vou dar uns tapas nessa louca. E a minha puta que não liga mais. Vou dar um esporro nessa piranha. Que nada. Tenho que achar uma saída. Acho que vou reclamar pra o padre, pra o síndico e pra Deus. Desisto. Não vai adiantar. Vão me chamar de louco e não irão resolver os meus problemas.

Tá bem. Me rendo. Vou botar no lixo essa semente de merda que nunca brota, desistir dessa prostituta safada, dar um fora na minha puta, que decerto nem é mais minha, e me desfazer dessa louça suja. E vou sair pra catar outra semente pra ver se brota, trocar de prostituta e arrumar uma puta nova que me ame só por três dias e comprar uma louça nova.

Mas desta vez vou ser muito exigente: a semente tem que ser boa e brotar. Quero garantia. A prostituta tem que ser pontual, a puta tem que ser amorosa e a louça descartável. Assim nessa ordem, ou nem tanto. Até podendo ser assim: que a prostituta seja amorosa, que a puta seja boa e brote, e que elas e a louça sejam descartáveis, e que a semente seja pontual. É o máximo que posso ceder, e disso não abro mão. E pronto. Aliás, pensando bem, se tudo ficar assim e funcionando, até que não fica ruim. Dá pra levar mais um tempo e enfrentar o inverno que está chegando. Porque, quem tem uma semente brotando, uma prostituta que chegue no horário marcado, uma puta que dê amor por três dias e uma louça pra brotar fora, pode deixar fazer frio lá fora.

Agora tem uma coisa: se eu não conseguir nada disso, na semana que vem, abro mão da semente, da prostituta, da puta e da louça, e invisto todos os meus trocados, mas todos eles mesmo, em sete garrafas de cachaça e acabo transando com a vizinha feiosa do primeiro andar. Só de raiva.

(...) E esse estrondo e gritos lá embaixo, agora de madrugada. Estava bêbada. Porra, morreu a guria da moto. Morreu a semente? Será que não era a prostituta? A minha puta sei que não era. Nem a louça.

Que merda. Nada aconteceu de bom. Deu tudo errado. Sabe de uma coisa? Vou lá no boteco da esquina que ainda não fechou e vou tomar todas e esquecer, agora e pra sempre, esse negócio de semente que brote, de prostituta pontual, de puta amorosa e louça descartável. E no fim da tarde quando acordar, vou ligar para a Aninha, minha noiva que não me aguentou e dizer que mudei, que sou novamente quem eu era e marcar o nosso casamento para o dia trinta... bem sério, porque assim não dá mais. 

Claro, seu burro, como é que tu não pensou nisso antes, seu idiota: a semente boa e que pode brotar, só pode ser a Aninha. A Aninha, cara! A Aninha! A Aninha que já foi minha. A Aninha que quase brotou um dia.

Mas, se der errado... bem, se der tudo errado, não é bom nem pensar. Estão dizendo que esse inverno vai ser de rachar.