quarta-feira, 31 de outubro de 2012

OITO TORNOZELOS (II) (Miniconto)

Maria mãe tinha quatro filhas: a Maria um, a Maria dois, a Maria três e a Maria quatro. Nenhuma se parecia com ela nem com as outras. Só os tornozelos eram semelhantes. Parecidos não, iguais. 

Um dia tocou o telefone, e a Maria mãe sozinha em casa atendeu: uma filha sua havia sido atropelada. 

Foi até o necrotério. Levantou a aba do lençol que cobria os pés da moça; chorou profundamente e disse: morreu a Maria dois. Agora, lá em casa, somos apenas oito tornozelos.

A SOMBRA ASSASSINA (I) (Miniconto)

Através da porta de vidro fosco se via os vultos de um casal fazendo sexo. Depois, desatinados, vieram os gestos de uma violenta discussão. Os corpos se empurravam. Então, aparece na sombra da mão da mulher, a figura de uma faca que entra profunda na escuridão do peito do homem. 

Cai a silhueta do sujeito, e uma viscosa tinta preta escorre por baixo da porta.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

ÚLTIMO TANGO

Lá para as bandas da fronteira, muito adiante de Caçapava, nos arredores de Bagé, no bordel da Polaca; era onde a rapaziada se iniciava nos prazeres e nos desejos da carne, e os mais velhos davam prosseguimento nas soluções de suas inquietações sexuais. 

Loira pintozona, a Polaca, mulher em torno dos quarenta anos, esguia, com finos cabelos amarelos que se amarravam em um coque em cima da cabeça, o que aumentava o seu belo vulto; pele branca, meio rosada, com lábios graúdos e atrativos, e um par de seios quase de fora, mal e mal seguros pelo sutiã, um pouco mais alto que a borda do decote das blusas que invariavelmente usava, de maneira que umas delicadas e graciosas filigranas de rendas decoravam o contorno daquele colo exuberante. 

A cada mês, ela trocava no mínimo, meia dúzia de suas meninas. Sempre tinha carne nova na casa, o que atraia, e deixava em alvoroço todo o macharedo das redondezas. Em certas ocasiões, se notava, da mesma família, três gerações de homens: avô, pai e filhos, se fartando naquelas moças que jamais ultrapassavam os 30 anos de idade. 

E, lá em cima do palco, puxando um bandonion, tocando um tango preguiçoso, o Carlito, um castelhano melenudo, muito bom de música, mas brabo como uma cascavel, muito corajoso, sempre com uma adaga atravessada na guaiaca. Tocava, bebia uns goles de samba, e cuidava atento, com os olhos bem compridos, todos os passos da Polaca pelo salão, que de uns tempos para cá vivia protegida sob os seus braços, abrigada, na sua fama de valentão. 

Todos se divertiam no cabaré da Polaca, e quando alguém mais insolente queria partir para a briga, aparecia o Juvenal, um mestiço de quase dois metros de altura, forte e mal encarado, para colocar as coisas nos seus lugares; devolver os comportamentos para dentro dos conceitos de ética, das leis próprias que reinam nesses lugares. 

Vinha gente de longe para conhecer as meninas em flor, que só na Polaca se via, bem ao contrário das outras zonas da região, que mais pareciam uns asilos, de tanta puta velha que abrigavam. 

O segredo da Polaca era a novidade, a pouca idade das macias e cheirosas peles das suas mercadorias. Além de estarem sempre bem arrumadas, dentro de saias minúsculas, usando perfumes provocantes; simpáticas e carinhosas, boas dançarinas, ótimas parceiras de copo e, principalmente, safadas sem limites, quando se atiravam em cima das quatro linhas forradas por macios lençóis de seda. 

Numa noite de sexta-feira, já querendo ser madrugada, sem lua e nem estrelas, um breu de tão escura, chega um grupo de três rapazes, bem levantados; desconhecidos na casa. Dois deles frangotes ainda, por certo trazidos pelo outro, com ar de mais cancheiro. Entram e sentam num sofá de canto, e vem duas moças pra junto deles, e começam a beber. 

Um dos três, o mais velho, um sujeito com cara de encrenqueiro, ombros largos, testa saliente, cabelos claros e muito decidido, olhou a Polaca passar rufando os guizos de sua minissaia, e atraído por aquela formosa mulher levantou-se, e deu uns passos em sua direção. Bateu no seu ombro, e com energia a puxou para junto do seu peito, enfiando a cara no rosto da mulher, procurando a sua boca. 

Só se escutou um urro gutural, que parecia saído de uma fera gravemente ferida: - “com esta aí, no! Tira las manos desta mujer, otário!” – gritou o Carlito já em pé, com o bandonion atravessado na barriga. 

Pois não se assustou o atrevido com o berro desesperado do Carlito, e apertou mais forte ainda a Polaca junto ao seu corpo, e gritou bem forte, bem alto: - “Toca castelhano, toca uma marca só pra eu dançar com esta vagabunda. Fecho a casa e banco as despesas de todos, mas toca, filho da puta, uma música de corno pra eu bailar bem agarrado no corpo desta puta. Toca logo, desgraçado!” 

Só se escutou o barulho do bandonion ser atirado ao chão, e só se via os olhos esbugalhados, os corpos de todos parados, imóveis, suados, fixos na cena que diante deles se desenvolvia. 

Então, o Carlito deu dois passos para a frente, com os olhos em brasa, puxou aquela adaga de sessenta centímetros de lâmina, com o esse tinindo de bem polido, e enfiou até o cabo nas costas do sujeito, e viu caírem os dois na sua frente. Estava tão cego de raiva o Carlito, que colocou força demais na sua adaga. 

Voltou para o palco, ainda atônito, sem o juízo certo para avaliar o estrago, ajeitou o bandonion em cima das pernas, tomou uns golaços de samba, e tocou um daqueles tangos bem trágicos, e ao invés de cantar, deixou sair boca afora:” – Dança, dança agora esta, seu hijo de una puta, e paga toda la despesa de la casa!”

terça-feira, 23 de outubro de 2012

TUDO MEU. TUDO MEU

Lá pelos idos da metade do século passado, numa estância em Verde Vale, tão vasta que não conhecia os limites de suas divisas, lotada de cavalos, ovelhas e tanto boi gordo que nem podia contar, vivia o Juvenal, que fazia um sorriso abobado quando montava o cavalo tubiano e parava bem no alto de uma coxilha, com as botas estirando firme os estribos, firmando as rédeas com a mão esquerda, enquanto que com a direita aberta sobre a testa, fazia aba contra o sol, dando um giro completo com a montaria, atirava as vistas, até o olhar morrer nas lonjuras dos horizontes, pensando orgulhoso: tudo meu. Tudo meu! 

A seguir voltava pra casa, retirava a cama do lugar e deslocava uma tampa de madeira, e arrancava de dentro do buraco um panelão de ferro atulhado de pequenos sacos de lona, com coisa de quilo, cada, lotados até a boca de libras esterlinas, moedas do melhor ouro, que valiam quanto pesavam; e pensava: tudo meu. Tudo meu! 

Morava, o Juvenal, numa casa de leiva, mista com tijolos e tábuas rudes, coberta em parte com capim Santa-fé e o restante com telhas de barro, moldadas sobre as coxas dos negros que ainda estavam acostumados com as subserviências da escravidão. 

Na verdade, este rancho estava muito aquém do que podia; com piso de chão batido, um velho fogão a lenha, umas panelas desgastadas pelo uso, uns pratinhos lascados de porcelana, algumas canecas amassadas de alumínio, mais uns cachorros magricelas, latindo de fome, amarrados num pé de cinamomo. E lá dentro, a miserável da mulher e uma ninhada de filhos: os machos, já nascendo barba na cara, e as fêmeas na idade de usar batom; tratados a laço, grito e judiaria, como se não corresse em suas veias a seiva colorada de sua raça, e sim o sangue machucado dos cativos, e pensava: tudo meu. Tudo meu! 

Os rapazes envergonhados dentro das calças remendadas e pés no chão, e as filhas moças se arrebentando de desejos, com uns vestidinhos puídos de chita, com as estampas desbotadas. Todos embaixo das ordens do seu chicote. 

Nem um boi carneava, nunca, pra botar gosto de carne na boca daquela gente. Carne, mesmo, só de caça e de pescaria, quando os filhos, um negro com mais outros traziam pra dentro de casa. E aquilo fazia uma festa. 

A mulher, dona Tancinha, de família de nome antigo, também domesticada, dava dó, quase não se via. Quando chegava gente, a coitada se escondia lá nos fundos, de vergonha pelos pés descalços, dos panos surrados em que se enrolava, e dos dentes, e dos brincos que não tinha. 

Que homem mesquinho, o Juvenal, que só amealhou, e da vida nada viveu, e que não deixou, por ruindade, ninguém da sua volta viver. Sujeito de alma escura, tal como uma vela ordinária que nunca se presta pra fazer luz. 

E uma tosse antiga foi se chegando mais pra perto, se acostumando, gostando de ficar mais forte, até atirar peito afora uns pedaços de sangue no terreiro. 

Amedrontado, percebeu que a parca estava chegando, e resolveu enfrentar a fera daquela doença endemoninhada que lhe roía o respirador. Apelou não para a ciência dos homens, mas para um Deus que não conhecia. E em silêncio fez promessas para que o Criador não levasse a sua vida ao território do impenetrável mistério. 

Deitado na sua cama, espiando através de uma brecha no sapé, viu os céus da noite se taparem de luto, com umas nuvens negras de fumo se reboleando lá por cima,e se deu por mais fraco ainda, tendo a certeza que coisa muito ruim se aproximava. 

Foi quando deu por si, e resignado, bateu com força nas portas sagradas, e entregou de volta sua triste alma ao Senhor, numa despedida, porque se via no fim. E com o ânimo enfraquecido, com aquela culpa que ataca os moribundos mesquinhos, topou sumir, com a determinação dos que desejam desaparecer definitivamente de cima da terra. 

E para lacrar o desfecho, recaindo na arrogância, só tinha um pedido ao Criador: requeria, que no momento extremo, após o último suspiro, quando encerasse a sua agonia final, o seu nome fosse incluído no rol dos Santos. Se Santos deveras existissem. Caso contrário, aceitaria, até, entrar na listagem daqueles que apenas poderiam ser perdoados. 

Chamado pela morte, porém, um pouco antes de partir, Juvenal se lembrou de raspão, do dia em que veio ao mundo. E chorou. Chorou por conta das durezas do seu destino. Dos fados malditos que sempre carregou, da sina malvada que sempre soube que trazia consigo desde pequeno, tatuada no espírito. Chorou por todos aqueles que logrou e judiou para ter os seus sacos de moedas de ouro entocados embaixo do traseiro. Chorou pela falta de amor,e da trilha de afeto que o seu coração feito de palha seca, jamais percorreu. Chorou por ser mais pedra do que gente. 

Se recordou, nos seus momentos derradeiros, das vezes que tentou trapacear a morte, quando recorreu aos templos de todas as marcas, dos de discursos corretos e dos pilantras, que vendem por todos os preços, fé, salvação e milagres de cura. Lembrou-se, de quando tentou reafirmar, ou fazer surgir, nesses lugares, através de rezas e preces, abaixo de lágrimas forçadas e gritos de bicho, aquela crença que desconhecia, e que tanto necessitava. Precisava, a qualquer preço, para se livrar de tamanho fardo, solidificar as suas convicções, trabalhar a sua alma, para que pudesse ser favorecido por uma providencial obra divina. 

Chegou a acreditar, ainda que com uma ponta de interesse, que o tempo que castiga é o mesmo que suaviza e cura as cicatrizes. Que o mesmo látego que fere, queima e arde, é o mesmo que traz o bálsamo refrescante que fecha e termina com as feridas. 

Que terrível engano, Juvenal! 

Então, lhe sobreveio um instante de lucidez, que trouxe junto um estranho sentimento na alma e sentiu uma reviravolta nos intestinos, um estremecimento na pele do rosto que lhe repuxou os nervos do pescoço, desmanchou e torceu a posição natural dos lábios, e lhe deu o gosto de um rubro sangue que escorria quente e azedo das gengivas, que desceu queimando garganta abaixo, embaçando os olhos com umas névoas fumegantes, jamais percebidas. Era o último aviso. Chegara a hora de embarcar na nave sinistra, que o levaria para um, dos dois mundos desconhecidos. 

Sabia que estava partindo, embora ainda não aperfeiçoado, ainda desprovido do facho de luz, da doce resignação que ilumina as almas daqueles que aprenderam a pedir perdão. 

E num último momento, preso apenas por um tênue fio de consciência, antes de arrebentar o cordão que une esta com a outra vida, apoderou-se de tão grande delírio, que viu diante de si, três anjos agourentos da guarda de honra do diabo, que com suas asas negras ruflavam violentamente,e fabricavam um vento indomável que zunia e acendia, cada vez mais forte, e cada vez com mais energia as labaredas do inferno, que tomavam conta do seu corpo, como se lenha queimando fosse. 

Assim, já se vendo inquilino da casa dos mortos, atingido, também, pela inclemência de uma noite gelada de um inverno tenebroso, desencarnou solitário, com a cara virada pra lua, que brilhava poderosa através da brecha do sapé. 

E, sem ter encontrado uma solução que reparasse a memória antiga, se foi o Juvenal, sumindo pouco a pouco, se afinando, perdendo substância, se transformando em fagulhas incandescentes, em chispas desprendidas das labaredas que o consumiam, que brilhavam como um enxame de faíscas que produziam estridentes estalidos enquanto subiam para o alto. Só restando no terreiro um amontoado de tábuas e sapé fumegantes. 

E não muito longe dali, os seus sacos de moedas de ouro se abriram e pagavam as festas e celebrações de alforria para a desforra dos seus herdeiros, que nem em longínquos pensamentos, cogitaram, nem por um breve átimo do mais minúsculo dos instantes, de prantearem, com uma mísera meia gota de lágrima, a sua morte.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

O PADRE E O PECADOR

Estava passando por uma fase muito complicada, o Bonifácio. Ultimamente, de uns anos para cá, dedicava-se com afinco numa vida desregrada, dissoluta, pecadora. Pecava demais, o devasso do Bonifácio. Eram tantas as transgressões aos dez mandamentos que ele já sentia vergonha de um dia ter sido batizado. Carregava uma culpa tão pesada que fazia sua cabeça entrar ombros adentro. 

Precisava, o Bonifácio, encontrar uma urgente solução para viver em paz. Foi quando lembrou-se do padre Ambrósio, tido na cidade como um bom homem, porém rigoroso com as coisas da fé, mas que entendia e perdoava feito um bom pai, os desvios dos seus filhos. 

Então decidiu. Iria até a igreja e pediria clemência para as suas travessuras pecaminosas, antes que caísse sobre ele a implacável cólera divina. Se não recebesse o perdão dos céus, só lhe restaria ser assado numa grelha sobre as chamas incandescentes do inferno. E isso não seria bom. Com certeza, não seria a melhor alternativa. 

Numa quarta-feira resolveu que aquele seria o dia ideal para se confessar com o padre Ambrósio, para afastar-se definitivamente dos poderosos castigos do além e sair de dentro dos braços imundos do demônio. 

Tomou um banho, fez a barba, penteou o cabelo e vestiu a melhor roupa; um terno preto, misto de lã e poliéster, uma camisa branca de puro algodão e sapatos pretos de verniz. Perfumou-se como se fosse pra boemia. Antes de sair, parou diante do espelho, palitou os dentes, ajeitou o cabelo com as mãos, alisou as sobrancelhas com as pontas dos polegares, deu um sorriso, e gostou do sorriso que deu, e se foi em busca de um providencial alívio espiritual. 

Assistiu um pedaço da missa, meio sem jeito, com um certo desconforto pela falta de hábito. Tomou coragem e foi para a fila do confessionário, onde só compareciam as velhas e os velhos. Gente que há muito tempo não pecava. Nem em pensamento. De certeza, eram tão puros quanto o Deus pra quem pediam indulto por pecados nunca cometidos, nem imaginados. Estavam ali por costume e pra mostrarem que ali estavam. 

Quando chegou a sua vez, ajoelhou-se no genuflexório com o rosto grudado nas treliças, através das quais o padre ouve as confissões do seu rebanho, abriu a boca, acompanhando o ditado do confessor, de uma antiga oração de apresentação para o Criador, e rabiscou, cochichando no ouvido do sacerdote a sua infinita coleção de pecados, quase todos, mortais. Os veniais, aqueles pecadinhos insignificantes, nem valia a pena contar. Esses modestos escorregões sumiriam sem nenhuma importância, diante daqueles poderosos, que lhe consumiam as estranhas da alma. 

Pode ver o Bonifácio, por entre as finas ripas de madeira cruzadas, que o rosto do padre Ambrósio se espantava, se ruborizava diante de tão escabrosas confissões, que de vez em quando deixava escapar: “ – credo, meu filho. Você fez mesmo tudo isso?” 

Ficou apavorado, o antigo sacerdote, com os pecados do Bonifácio, afinal nem se recordava de quando ouviu pela ultima vez coisas tão feias, até porque, estava acostumado a somente escutar aqueles pecados que nem eram pecados, umas bobagens que saiam das bocas das velhas e dos velhos, que só iam na igreja por carência, por solidão, pra preencher o tempo vazio e morto de suas vidas tristes. Pecador mesmo, daquele tipo, digamos, profissional, fazia muito tempo que não via na sua frente. 

Terminada a longa confissão, o secretário de Deus aqui na terra, proferiu para o Bonifácio, a mais longa sentença de sua vida como clérigo: setenta e cinco padre-nossos, cento e vinte ave-marias, quarenta e dois credos, além de vinte e cinco voltas inteiras no rosário, e de troco, noventa e cinco santo-anjos. 

Levantou-se do confessionário e pensou que todos ali presentes sabiam da enorme pena recebida e foi envergonhado, cabisbaixo para o seu lugar. Ajoelhou-se, tirou uma caderneta do bolso do paletó e um lápis meio sem ponta para anotar as rezas imputadas. Para não se perder nas contas. Assim, rezava e anotava. Anotava e rezava, compenetrado, até que olhou para os lados e viu que a igreja estava vazia. Todos já haviam retornado para suas casas. E faltava muita oração, muitas mesmo, para acabar com o longo estoque da punição recebida. Coisa muito cruel, - pensou. 

Acabou não aguentando tudo aquilo. Era muita humilhação todo aquele rol interminável de orações, mesmo para um pecador contumaz. O padre fora duro demais com ele. Aquilo era reza pra perdoar os pecados da cidade inteira. 

Decidiu ir embora e voltou para a noite, que recém estava começando embaixo de uma lua cheia. Parou no bar de costume, pediu cerveja e cachaça. Porém antes do primeiro gole, fez o sinal da cruz, pediu consolo por ser um mau filho, e que dali pra frente, fosse o que Deus quisesse, ou o que o diabo receitasse, mas enfrentar aquele padre carrasco, nunca mais. 

Depois, já invadido pelos efeitos do álcool, o Bonifácio resolveu, que de outro modo, a sua maneira, pagaria as suas dívidas. Achou melhor, ao invés de rezar todas as rezas do mundo, voltar pra casa, e lá sim, cumpriria os castigos, as expiações, enfim, quitaria a sua sanção divina, convivendo em tempo integral aquela esposa imensa, que passava dos cento e vinte quilos, com todas as suas malévolas brabezas. Não haveria maior punição para ele. 

Voltou para casa resignado e apresentou-se diante da sua feiosa, hostil e amarga mulher, e com a voz pastosa falou: “ – me castiga. Vai, me castiga. Preciso demais usufruir da graça que virá, nascida deste suplício.

E assim, mais um homem se ferrou.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

UMA NOITE EM PARIS

Tarde da noite, saí do hotel onde estava e fui atrás de diversão, de bebida e de mulheres. Entrei num cabaré, um sobradinho cor-de-rosa bem enfeitado com quinze mulheres fazendo força para serem alegres, quatro ou cinco brutamontes com cara feia e uns babacas com muito dinheiro para gastar. 

E uma puta, logo que entrei, faleceu no meio do salão. Tinha uma rosa vermelha enorme de papel crepom presa logo acima da orelha esquerda que se desmanchava, e escorria pescoço abaixo, manchando com aquela tinta cor de sangue os taquinhos de madeira. Que coisa estranha isso aqui – pensei. 

Mas era tudo festa. Todos se divertindo naquele cabaré francês, onde uma gaita chorona, choramingava uma música boa para dançar bem agarrado, de se apertar noutro corpo e de beijar uma boca bonita. 

Foi quando apareceu um bailarino espanhol, dizendo que já havia sido campeão em todas ‘las monumentales plazas de toros españolas’, acompanhado de sua amante, que batia feito uma louca, espremendo as castanholas que quase se partiram no meio. E todo mundo aplaudiu. 

Então, subiram no pequeno palco uma francesa, e mais outras bailarinas faceiras e bem pintadas com vestidos coloridos e esvoaçantes dançando o can can da Belle Époque, ao som da gaita, cornetas e trompetes e atiraram as pernas para cima de mim, bem na minha frente, onde eu estava sentado. Cheguei a sentir o delicioso bafo de suas intimidades entrando pelas minhas narinas. Dei um grito de tão feliz e me agarrei na bunda de uma delas, uma loira que dançava sem calcinha e beijei tudo o que eu podia. 

Logo, retornou o bailarino espanhol, agora vestido de toureiro, com chapéu, capa e espada e desafiou um toureiro de verdade, para uma luta que teria como prêmio, a amante de quem ganhasse o duelo. Porém, o toureiro de verdade estava tão bêbado que não topou o desafio. Pois, aproveitou-se da ocasião o bailarino espanhol e levou para um quarto, a amante do toureiro de verdade, que já dormia, babando por cima de um sofá num canto escuro do salão. 

Em seguida chegou um casal de noivos arrumados para o casamento junto com os padrinhos e uns convidados. Achei que entraram na casa errada. Ela de véu, grinalda, toda de branco e ele bem arrumado, com uma casaca preta que brilhava, prontos para casar, e os padrinhos e os casais de convidados do mesmo jeito, bem ajeitados. Então dançaram todos, beberam como uns loucos e se misturaram com as putas, os cafajestes e os clientes e desistiram de casar. Descobriram aquilo que desconheciam, e gostaram. A noiva desmaiou de tanto trepar com um garçom em cima da mesa da cozinha. 

Aí, foi então, que chegou um guarda e mandou todo mundo embora, ou ficassem quietos e fossem dormir naquelas camas com colchões fedorentos, cheio de pulgas e chatos, percevejos e esperma envelhecido, dos quartinhos lá de cima. 

Quando já estavam obedecendo o guarda, chegou um padre maluco com uma batina suja, muito apertada no corpo e umas asas de anjo grudada nas costas e arpergiu uma água perfumada que dizia ser benta e perdoou todo mundo. Que bosta. Pararam de trepar as putas, os imprestáveis, os noivos, os padrinhos, os convidados, os clientes e os trouxas que ali estavam; surraram o pobre do padre. Até o guarda apanhou. 

Caídos no chão, bêbados, loucos, machucados, doloridos, arrebentados, sem roupas, pediram mais bebida para um outro garçom que mal caminhava de tanta droga cheirada e muita bebida forte. Deitados, sujos, vomitando, deslizando naquela nojeira pegajosa se abraçavam comemorando a boa vida. As putas borradas de batom vermelho, cansadas, de pernas abertas, se esparramavam onde dava. Os bêbados, os drogados, os políticos, os ladrões, os desqualificados em geral, mais os clientes, soltavam boca afora uma gosma amarelada, malcheirosa de álcool, droga e cigarro. E deixaram a noite andar. Afinal, os bêbados, os drogados e os ladrões; ninguém se acha pecador. 

Como sempre se vê, todo bêbado é um animal territorialista. Escolhe um boteco de quinta categoria, um bar qualquer ou um cabaré e ali se estabelece. Faz desses lugares a sua casa, e pensa que está vivendo. Nem sabe, o desgraçado, que está produzindo carniça para o demônio com os seus anjos de asas pretas. Perderam ontem, perdem hoje e vão perder sempre, essas almas agonizantes, de tantos amores não realizados. Que só se masturbam de tão infelizes, de tão crianças, que no fundo soluçam, choram por um colo quentinho que lhes fizessem dormir, enfim, em paz. 

Levantei os olhos daquele chão triste de morte que a alegria deixou quando foi embora e olhei para um outro canto do cabaré, numa penumbra, e lá avistei uns dançando e alguns sentados, comendo batata frita com cerveja e mijando no chão, e outros vindos da turma dos caídos, ajeitando a frente das roupas; e vi toda uma gente; um grupo de velhos e velhas com as peles brancas, mortas, que nem tinham mais forças pra levantar os braços diante da música francesa. Nem gritavam mais uiuiuuuu, comemorando. Mas não se entregavam. Até gostei daquilo. 

E uma gorda careca pulava de pés descalços balançando aquela barriga de porca com as tetas balofas desnudas, que desciam e subiam suadas como uns balões enlouquecidos. E no seu lado tinha uma jovem com cara de cavalo, mas com umas pernas fenomenais, junto com a sua mãe, braba, deslocada do lugar, de queixo caído. Pensei em ir lá falar com ela, mas a mãe dela estragou tudo; disse para a filha não me olhar mais. Nesse instante, uma francesa daquelas velhas lá do canto, toda enrugada, com o rosto tapado de base que derretia, e com o cabelo azul, me abraçou e me achou bonito e quis me beijar na boca. 

Quer saber? Puta que pariu, vou voltar pra o hotel. Não quero mais saber desta merda de noite francesa, neste cabaré de gente maluca. Amanhã vou procurar coisa melhor. 

Passei numa espécie de lanchonete, que nem era uma bem uma lanchonete, com o dia já amanhecendo e comprei três croissants e doze cervejas em lata. Entrei no hotel, subi pelas escadas até o primeiro andar, sentei numa poltrona do quarto e abri duas latas de uma só vez, e escrevi o que vocês acabaram de ler. 

Os croissants, bem, abri a janela e atirei os três na rua pra um cachorro que latia baixinho de tanta fome. Depois fiquei olhando triste para um cópia barata de Lautrec, que reproduzia cenas do cabaré Moulin Rouge; de uma época bonita que passou e nunca mais voltou. Como deveria ser feliz quem viveu naqueles tempos... Daí, fui enfraquecendo lentamente e dormi recostado na poltrona, com um sol forte que batia no meu corpo, bem agarrado na última lata de cerveja.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A MULHER INFLÁVEL

Fazia muito tempo que o Joca não via o Alfredão. Mais de uma década. Nem sabia que ele havia se separado da Joana, sua esposa de toda uma vida e mãe dos seus filhos que agora moravam no exterior.

Pois o Joca encontrou o danado saindo de uma loja de artigos eróticos agarrado numa caixa de papelão, embrulhada com esmero em um papel brilhante, especial.

Se abraçaram e falaram sobre a vida. Dos bons tempos que já se tinham ido, devorados pela inclemência faminta do tempo.

– ­Esta aqui é a loira. – ­­Falou de repente, sorrindo. Apontando para a caixa.

– Como assim? Uma loira aí dentro? Perguntou o Joca, surpreso.

– Sim. Já tenho em casa mais duas: uma ruiva que se chama Aurora e uma morena que é a Margarida. E esta, a loira, vai se chamar, Clara. A Clara Rosa.

– Do que tu estás falando, homem? Que loucura é essa?

– Mulheres infláveis, respondeu o Alfredão. – Agora, com essa nova aquisição me tornei um Sultão, dono de um harém. E começou a desfiar os seus argumentos nada ortodoxos.

Sabes, Joca, depois que me separei da Joana, por praticidade, não saio mais com mulheres de carne e osso. Resolvi montar um time, só dessas, e estou encantado.

– Joca, – continuou o Afredão, – essas mulheres infláveis são um espetáculo. É a invenção do século. São bonitas, esbeltas, sexies, perfumadas. Não são atacadas pela maldita TPM, jamais alegam dores de cabaça, estão sempre disponíveis, não brigam, não são agressivas, não ficam de mau humor, não engravidam e não dão despesa. É só o investimento inicial, e pronto. Depois, é só lavar e estão novas e silenciosas, quietas no canto delas. E tem mais: a tecnologia chinesa esta tão avançada que elas fazem movimentos surpreendentes com o corpo; com a boca e as partes íntimas.

– Nossa! Falou o Joca desconsertado. – Teu caso é gravíssimo; muito grave, Alfredão.

– Que nada. Essas mulheres são carregadas com umas baterias que permitem que elas façam contrações maravilhosas. O beijo então, é quente e úmido. São até melhores que as mulheres legítimas. Melhores que a Joana, isso eu garanto. Falou convicto o Alfredão.

– Que exagero!

– Tudo é vantajoso, continuou convincente. – Para cada uma, acompanha um kit com óleos especiais, fragrância aromática, o que as torna pra lá de verdadeiras.

– Para, Alfredão. Pode parar. Gritou forte o Joca. – Tu estás me dizendo que tens relacionamento um envolvimento com elas? Que gostas desta estranha situação?

– Gosto não. Estou apaixonado! Nunca fui tão feliz em toda minha vida!

– Como assim? Quis saber, o Joca.

– Queres ver? – Agora chego em casa e elas já estão quentinhas me esperando. Nuas, lindas, sensuais, sorrindo embaixo da penumbra do meu quarto. Depois, inflo esta loira da caixa e a coloco entre as outras duas. É uma loucura meu velho. Quando acordo no outro dia, nem acredito nas estripulias que fizemos juntos.

– Vou te internar, Alfredão. Que palhaçada. Não dá pra acreditar numa história dessas. Isso é misoginia. – jogou duro o Joca.

– Miso, o quê? – Que nada cara. – Prosseguiu o Alfredão. – Tudo isso é uma questão de costume. Tem mulheres que compram consoladores, vibradores, aqueles brinquedinhos de borracha, que são somente um pedacinho do homem, e se satisfazem, não é? Pois eu compro a mulher inteira, com todos os seus atrativos. Não compro uma pecinha isolada, e sim todo o conjunto, para a cena ficar bem real.

– E tu sabes de uma coisa, Joca? Acho que com o tempo de convivência elas vão adquirindo uma espécie de sentimento bom. De companheirismo, de afeto. Vão tomando gosto pela coisa. E o principal, acabaram as brigas lá em casa. Sumiram as desavenças.

Louco de faceiro, o Alfredão atirou aquela caixa com a loira sobre os braços do Joca e mandou ele esperar um pouco. Entrou novamente na loja e saiu de lá com mais três caixas: uma delas com uma mulher loira, outra com uma morena e a terceira com uma ruiva, e disse: são tuas. Leva e experimenta. Pegou a sua caixa com a loira dentro que estava com o Joca e se foi rua afora gritando: depois me telefona. Depois me telefona me contando.

Ficou o Joca feito um retardado mental, olhando aquelas três caixas de papelão embrulhadas pra presente, ali nos seus pés, em cima da calçada. E antes que a vergonha aumentasse chamou um táxi, colocou os volumes no porta-malas e rumou para casa. Chegando, subiu rápido para o seu apartamento. Parecia que os vizinhos que cruzaram com ele no hall de entrada do prédio sorriam debochados. Que sabiam do conteúdo daquelas caixas.

O Joca entrou no quarto e colocou as mulheres encaixotadas no lado da cama e abriu uma delas, a da loira, e inflou, encheu com uma bombinha pertencente ao kit, até ela ficar durinha, lustrosa, bonita, exuberante, cheirando a juventude. Depois colocou a mulher inflada na cama, cobriu-a com um lençol novo de seda e foi para a rua tomar um vinho. No bar de sempre tomou cinco garrafas e retornou quase de madrugada, bêbado, sem saber direito onde estava. Tirou a roupa e deitou-se. Quando deu por si, tinha no seu lado aquela linda mulher loira, nua; de pele macia, sedosa, perfumada, convidativa.

De tarde, quando acordou feliz da vida, realizado, o Joca deu um beijo carinhoso no rosto da mulher, agradecendo pela noitada.

Ligou para o Alfredão, e esse aos berros no outro lado: – eu não te disse! Eu não disse! Vai ficar melhor com as três juntas. Vai ser inesquecível. Vai, Joca, tira da caixa as outras duas. Vai cara, desembrulha logo! – provocou.

O Joca sentou-se na poltrona ao lado da cama e ficou matutando: – acho que está noite vou abrir outra daquelas caixas. Agora tem uma coisa, pensou: – se eu descer e tomar cinco ou seis garrafas de vinho, volto e abro as duas de uma só vez, e aconteça o que acontecer, transo com as três, e ai vamos ver como é que fica. Depois é só dar um nome para cada uma delas, pra gente ficar bem íntimo mesmo. Mas, pra não trocar os nomes e evitar problemas com elas, vou chamá-las, todas, de bichinha.

E pra não perder tempo, se foi o Joca, bem excitado em direção bar, tomar a primeira das seis garrafas de vinho.