quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O PERFUME DA MULHER

Foi numa noite fria de inverno, ocupando uma mesa num cantinho do bar, usando pouca roupa, que se resumia a um conjunto de saia e blusa e uma sandália baixinha, inadequadas para a estação, tomando um copo de vinho sem raça, que vi aquela mulher. 

Estava desamparada, distante e triste. Respirava pela boca, abrindo e fechando os lábios como um delicado peixinho fora d’água, agonizando, esperando a hora da morte. 

Tirei o meu casaco e coloquei sobre os seus ombros e chamei o garçom. Veio três travessas com carne suculenta, arroz e ovos fritos fumegantes e salada, e uma garrafa de vinho bom e ela sorriu forçado e depois exclamou: “ – que merda, essa vida!” 

Não respondi, nem ela falou mais. Ficamos comendo e bebendo aquela garrafa de vinho, e outra, mais uma e mais outra, até que ela me olhou e sorriu novamente. E sorriu bonito desta vez. E como era bonita aquela jovem mulher com os dentes brancos e os lábios bem desenhados. Como foi gostoso quando ela deitou a cabeça no meu ombro. Pareceu um bichinho abandonado buscando uma lasquinha de aconchego. 

Com os olhos verdes da cor das esmeraldas que nunca usou me olhava como se quisesse dizer alguma coisa, ou perguntar. Não disse e não perguntou. Eu quieto, só olhando pra ela pensando na sorte que tive, e tomando vinho e fazendo carinho nas suas mãos e nos seus dedinhos pálidos, delicados e compridos. 

Troquei de lugar e sentei ao lado dela, abracei o seu corpo com os dois braços e passei levemente o meu rosto na sua face e pude ver por cima do degote da blusa aqueles seios firmes, tamanho médio, perfeitos; com os mamilos rosados e empinados com os bicos endurecidos, vibrantes de tão vivos, se arfando necessitados querendo furar o tecido da roupa pra encontrar uma toca quentinha pra se abrigar. 

Tomei mais vinho e ela também e nos beijamos como se estivéssemos apaixonados e senti um especial e delicioso aroma que somente algumas raras e felizardas fêmeas liberam. 

Então passei a mão entre as suas coxas e senti aquela pele fina e aveludada, um pouquinho eriçada pelos arrepios que o frio e a excitação lhe provocava. E com a audácia necessária, enquanto nos beijávamos violentamente sob aquela quase meia-luz levei a mão até a sua mais guardada intimidade, invadindo a calcinha que a protegia. E lá chegando no paraíso encontrei um pequeno conjunto de penugens suaves; pelos curtos e macios, tais os fios do mais precioso algodão, umedecidos e perfumados com as essências sedutoras que nunca uma outra flor conseguiu exalar. 

E veio de lá, impregnado nos meus dedos a fragrância da sua mais secreta umidade. Néctar que ela me oferecia. A seguir coloquei minha cadeira de frente com a dela e passei as minhas pernas por fora das suas e juntamos os nossos corpos e nos beijamos como dois enlouquecidos. E foi tão forte e tão bom aquele beijo que os nossos corpos estremeceram, e sem pensar nos levantamos e continuamos a nos beijar, com as nossas carnes latejando, e o sangue feito um rio feroz correndo selvagem nas nossas veias. Nossas bocas corriam pelos lábios, pescoço, nuca, ouvido e ombros numa afobação que parecia que não se tinha tempo pra ser tranqüilo. E nossas mãos seguravam, esfregavam e apertavam as nossas intimidades, prontas para explodirem. Cada mão tocava nas partes que precisava. 

Fiquei com o rosto perfumado com o extrato tentador vertido da pele da sua face. Nunca tinha acontecido de conhecer uma mulher com um cheiro natural tão agradável, e uma boca tão doce e uma pele tecida por tão delicados fios como se fossem recém retirados do mais nobre casulo de seda. 

E mais imaginei. Muito mais. 

Paguei a despesa e saímos rua fria afora rumo ao meu apartamento. 

Ficamos trinta dias encerrados. Noite e dia. Dia e noite, gastando tudo que um tinha para oferecer para o outro, eu e a Janete. 

Naquela noite fria de inverno conheci a mulher com a pele mais suave e agradável ao tato, que exalava um perfume mais provocante por todas as partes do seu corpo, principalmente através daquelas mais desejadas. Essências e licores vindos de fontes especiais que à poucos afortunados é dado o direito de usufruir. 

No dia que fechou um mês de tantas e inesquecíveis horas a fio de prazer acordamos diferentes. Nos olhamos sem desejo, sem vontade, neutros. Nos esgotamos. Entendemos tudo sem falar nada. Me arrumei, ela também. Colocou a roupa do primeiro dia, e sem combinação nem ensaio dissemos os dois ao mesmo tempo: vamos embora! 

E não precisou levar o meu casaco. O inverno já havia terminado. Ela se foi. Mas mesmo assim, os cheiros e o gosto daquela mulher deixaram vestígios permanentes, que até hoje, muitos anos depois, ainda me invadem as narinas e se misturam na boca, adocicando a minha saliva.

sábado, 22 de setembro de 2012

A INICIAÇÃO

Isso aconteceu numa noite muito escura. No céu sobreviviam acesas apenas meia dúzia de estrelas e o gancho inferior de uma lua que minguava lentamente, se aprontando pra morrer. Só umas lamparinas abastecidas com graxa animal iluminavam aquele local no meio de um campo deserto. E a luz trêmula das candeias fazia brilhar os corpos suados e untados de óleos das negras e dos negros que ali me esperavam com os rostos pintados de uma intensa tinta escarlate. Um negro enorme, forte como uma fera, com uma cicatriz que dividia a testa, o nariz, a boca e o queixo ao meio, me empurrou para o meio de todos eles. Então, eles se aproximaram e com umas tiras de couro me bateram até não poder mais. Caí no chão embarrado, quando comecei a ouvir a batida de tambores e eles vieram dançar na minha volta. Uma negra alta, jovem e bonita, com cara de braba me ergueu do chão e me fez dançar também. E me abraçou e me beijou e me deu a entender que era mulher do mais valente guerreiro daquela tribo, e se insinuava, passando a idéia que gostava de mim. Eu fiquei com medo mas não adiantou nada. Ela me segurava, me apertava contra o seu corpo e continuava me beijando, me lambendo, mostrando que me queria. Pelo menos assim compreendi, pelo jeito sensual que falava. Aí apareceu, o negro guerreiro, marido dela. Separou nós dois, passou a mão fazendo um afago no rosto da negra e me derrubou com um grande soco no queixo. E me encheu de pontapés por todo o corpo. Foi quando cessaram os tambores, e ele parou. Olhei para cima e vi aquele grupo de homens com o corpo reluzindo armados com lanças perigosas, e do meio deles, bem na minha frente, apareceu uma majestosa figura negra que deveria ser o chefe, com uma máscara de couro colorida que lhe tomava a metade do corpo, da altura da testa até a cintura, com os braços cheios de fitas e penas, e as pernas também. Parou diante de mim e determinou que me levantassem. Falou umas frases curtas e de forte efeito sonoro, que eu não entendi, e apontou para uma charneca. E para lá os seus súditos me levaram e me atiraram naquele banhado fedorento. Fiquei lá com o corpo submerso, só com a cabeça de fora por toda a noite, e também todo o outro dia, quando eles sumiram, todos. Eu fazia força pra sair e não podia. Quanto mais me mexia, mais me atolava. O barro exercia uma força centrípeta sobre o meu corpo, comprimindo e anulando o meu esforço físico. Anoiteceu novamente e eles voltaram. Uma multidão deles. Me retiraram daquele pântano imundo e pagajoso e pra comer me deram uma tigela de barro queimado com uma espécie de mingau, e eu todo embarrado com o corpo coberto com aquela lama preta, retinta. Me levaram para uma grande cabana coberta de capim e tocaram os tambores novamente e dançaram sob os olhares do chefe sentado no seu trono de palha. E saia uma fumaça com cheiro de carne assada de um lugar ali ao lado. Olhei e vi em cima duma espécie de grelha feita de paus, muitos pedaços assando. Pela distância achei que eram pernas, braços, costelas e lombo de gente de pele branca. Voltou novamente aquela negra bonita e séria, mulher do guerreiro, me agarrou forte com os braços, bem nua com o corpo brilhando de uma óleo de cheiro bom. Me beijou, tirou o meu calção e me fez deitar com ela numa esteira no meio de todos, que fizeram um círculo em volta de nós. Veio por cima de mim com as pernas abertas, predadora, me devorando, cheirando a cio recém chegado, e fiquei com vontade. Quando estávamos quase terminando ela deitou os seios fartos e bem-feitos sobre o meu peito, encostou a boca na minha e os seus enormes lábios engoliram a minha boca e a minha língua. Em seguida levantou-se, e eu também. O chefe se aproximou e com uma faca feita de osso fez um corte comprido e fundo que atravessou o meu peito na horizontal, depois ordenou que ficássemos frente a frente com os nossos corpos grudados um no outro e nos amarrou com um cipó enorme. Feitos esses procedimentos saíram, e assim, grudados, corpo com corpo, hálito no hálito, partes nas partes, passamos a noite inteira. Provocamos uma queda e deitamos novamente na esteira e ela me beijava, beijava e me beijava com aqueles lábios gigantes, molhados e quentes e me lambia e engolia a minha língua e assim, somente com o atrito possível das nossas carnes nos realizamos várias vezes, deliciosamente. Dessa maneira ficamos também o próximo dia todo. E eu com medo do marido dela, do guerreiro valente. Quando anoiteceu outra vez eles vieram todos, com o chefe caminhando na frente e tocaram os tambores com toda força. O chefe ordenou que nos desamarrassem e nos levaram diante do seu trono de palha, quando ela limpou com a língua e com os lábios o sangue seco da ferida do meu peito. Então o chefe colocou um colar de sementes no meu pescoço e outro no dela. O meu corpo estava escuro, pintado de preto por causa do barro do lamaçal. O chefe me abraçou e mandou servir aquela carne assada. Comi e ela também, e todos igualmente, aquela carne com um gosto que eu não conhecia, sem tempero, meio adocicada e fomos para uma cabana pequena, que se entendi bem, a partir daquele momento passaria a ser nossa, minha e dela; o nosso lar. Antes, porém, todos os negros e negras, mais as crianças e os velhos apareceram e vieram nos abraçar e tocavam com as mãos os nossos corpos, festejando. Deduzi: me casaram com a negra. Nisso, apareceu uma espécie de feiticeiro e nos defumou com uma fumaça escura de cheiro marcante, porém indecifrável, e me fez engolir uma bebida horrível de tão amarga, me ensinou umas palavras e um jeito de falar com as mãos e me vestiram uma tanga de pele sovada. Me senti especial e me adotaram como irmão. Dormimos na nossa cabana, não sei por quantos dias e noites e sempre tinha na frente da porta umas tigelas de mingau e uns pedaços daquela carne assada. No dia que saímos, as mulheres da tribo levaram ela pra cortar mandioca, eu recebi de presente do chefe uma lança novinha em folha, recém feita e entramos mato adentro. Eu, preto, marcado no peito como todos, me tornei guerreiro também. E o ex-marido da minha negra se fez meu amigo e ficou sendo o meu mestre nas artes e nos ofícios da guerra e da caça. Pensei: melhor assim. Pelo menos não virei carne assada, como aqueles outros que comemos nos últimos dias. Passou o tempo e fiquei morando por lá, bem entrosado com eles. Até achei que era isso mesmo que eu estava precisando. 

Tocou o despertador e não ouvi. Acordei com a voz macia e carinhosa da Cida falando baixinho no meu ouvido: acorda, acorda, senão tu vais te atrasar. Então, levantei arrasado, com vontade de dormir de novo. Afinal, que dias virão sem os meus irmãos selvagens e longe da minha negra indomável. 

Saí de casa melancólico, com uma faísca de saudade por conta daquele efêmero presente, que, como um novelo de fumaça, do nada apareceu, e de manhã cedo, repentinamente me abandonou. 

Sentei na calçada e fiquei observando a força do vento arrancar as folhas das árvores. Depois, no chão, só restaram as pétalas vivas das flores em redemoinho fazendo um bailado triste diante dos meus olhos, que, ali, não encontraram nada que pudesse me responder, se eu havia, na verdade, perdido alguma coisa importante quando a noite passada terminou.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

DELÍRIO

Em uma das mortes que tive, subi para uma espécie de céu; o paraíso, ou desci para aquilo que fosse o inferno; a dúvida, ou andei para um purgatório, onde gemia. E por lá encontrei uma figura, um bichinho magro e comprido com feitio de gente, ou seria aquilo uma pessoinha estranha com cara e jeito de um animalzinho? Não sei. Pra falar a verdade, eu não tinha a mínima ideia onde estava, e quem me recebia. Acho que nem sabia quem eu era. 

O fato é que essa criatura ou invenção de um delírio era transparente. Tinha a pele tão fina que parecia um papel de seda, de maneira que eu podia ver as suas veias latejantes transportando sangue, linfa ou seiva. Não consegui identificar que líquido era aquele. Via os seus órgãos funcionando, pulsando, cumprindo as suas funções. Enxergava os movimentos peristálticos de suas entranhas se mexendo como cobras inquietas amontoadas no ninho. E avistei o interior do seu cérebro como se fosse um motor, um dínamo produzindo energia, que imaginei que poderia ser: calor e frio, alegria e tristeza, amor e ódio, abraços e vingança, vida e prazer. Ou morte. E tinha o interior da cabeça iluminado. 

Então pensei: será que esse trocinho é Deus? Será que aquele Deus que me ensinaram a imaginar era mentira? Que aquele velho gigantesco, barbudo, vingativo, temido, era na verdade, só isso: essa criaturinha indefinida, sem uma mínima expressão de autoridade, respeito e credibilidade cravada na sua fisionomia? Mas o diabo também tem cara de ruim, de vingativo. E a criaturinha era boa, mansa. Não era supremo, nem demoníaco. Era boa, simpática, simplesmente. Carinha boa era o que tinha a criaturinha. Mas aquela luz na cabeça, só ela possuía. 

Fui me aproximando, chegando bem pra perto daquela coisinha, já sem olhar para os seus intestinos; coração, rins, fígado, nervos e veias. Me fixei na transparência da cabeça que mostrava o seu cérebro elétrico todo iluminado. Pra alguma coisa importante deveria servir aquilo, julguei. 

Parei bem juntinho dele, me abaixei, e olhei bem fixo pra dentro daquela cabeça volumosa, onde cabia coisa de uns três quilos de massa encefálica, toda trançada com veias coloridas, e perguntei quem ele era, a quem servia e que serventia possuía. 

E a figura que não tinha boca, pelo menos assim como a nossa, só um desenho daquilo que seria uma boca, dois furos no lugar do nariz, uns olhos opacos, enormes, saltados, que não enxergavam, e sem orelhas, só dois canudinhos no lugar delas e, inesperadamente e sem me dar resposta, fez o cérebro brilhar bem forte e atirou uma espécie de raio azulado em cima do meu corpo, que me derrubou. 

Caí um tombo feio. E dormi não sei por quanto tempo. E quando acordei estava em casa novamente, deitado na minha cama. 

Foi quando sem saber se tinha sonhado, enlouquecido ou havia caído em delírio outra vez, pulei fora e fui tomar um café preto bem forte e quente, muito preocupado, afinal, andava delirando demais ultimamente, vendo coisas estranhas. 

Tentei pensar como os malucos pensam, numa tentativa de decifrar o ocorrido. Por mais doido que tentasse ficar não consegui resposta nenhuma. 

Tentei ser religioso e pensar como os crentes pensam pra obter uma resposta. Nada. 

Tentei ser inteligente e pensar como os inteligentes pensam. Piorou. 

Então vou ser um idiota e pensar como os idiotas pensam. Pior ainda. Vazio total. 

Pra resolver a questão tomei quase um litro de uísque no gargalo, pra ficar bêbado e pensar como os bêbados pensam. Só porcaria. 

E quando já estava pensando em telefonar para a Sílvia me internar num hospício ou qualquer coisa do gênero, já que pensava que estava completamente pirado, bate a campainha. Levanto cambaleando e abro a porta. 

Era a Sílvia, minha namorada. Entrou, bateu a porta, se encostou na parede, colocou horrorizada as duas mãos no rosto, arregalou os olhos e com um fiapo de voz que lhe sobrou, me perguntou: “ – o que houve contigo, Juquita? Tu estás transparente!” “ – Foi o bichinho”, respondi. “ – Que bichinho?” Insistiu. “- Esquece”, devolvi. 

Logo se acostumou um pouco com o que via e perplexa olhava todo o meu interior. Aconteceu com ela a mesma cena com a coisinha que me assombrou. 

Fechei os olhos e cochilei um pouco no sofá, e quando acordei, olhei para a Sílvia, e agora para outro espanto meu, aquela bonita mulher estava translúcida como uma vitrine, revestida de um papel de seda tão fino, que visitei com os meus olhos a parte de dentro do seu corpo e da sua cabeça. Cheguei, por breves instantes, a enxergar os seus pensamentos, que estavam sendo fabricados naquele instante, no interior do seu cérebro. 

Ela pegou na minha mão, me levou para o quarto, apagou a luz, e na escuridão nos deitamos, e sem a necessidade de tirarmos as roupas, fizemos amor, assim como se fôssemos duas lâmpadas acesas grudadas uma na outra. Foi o melhor amor que fiz em toda a minha vida. Nem antes, nem depois houve nada melhor. 

Quando terminamos virei para o lado e o quarto já não estava totalmente escuro. Uma luzinha gostosa, meio azulada, dava vida para o ambiente. Olhei para a frente com o canto do olho levantado, e lá estava a figurinha que eu já conhecia, em cima do criado-mudo, em pé, imóvel. Então abriu aquele desenho de boca, formou dois lábios bonitos e sorriu pra mim, com a cabeça acesa, parecendo um abajur. 

Me ajeitei melhor na cama com os olhos bem abertos, também sorrindo para a criaturinha, e me senti em paz, tranqüilo. Pareceu até que ficamos amigos. Que um gostava do outro. 

Cutuquei a Sílvia com o cotovelo e perguntei: 

“ – Tu viste? Tu estás vendo?” 

Ela grudada nas minhas costas, com o rosto mergulhado na minha nuca, retrucou: “ – vendo o quê? Ficaste doido, Juquita?” 

Me virei de frente para ela e não vi mais os seus intestinos, nem o seu cérebro. Estava de volta com aquela pele sedosa de pêssego maduro que eu sempre gostei tanto. 

Aí, perguntei pra ela: “ – como é que eu estou? “ – “ Transparente ainda, mas voltando ao normal.” Respondeu. 

A seguir escutei um barulho de persianas se abrindo, e vi, meio querendo não ver, a figurinha saindo, voando janela afora. 

“ – Putz. Que coisa doida tudo isso, não? Falei sem querer. 

Fizemos amor de novo, eu e a Sílvia. 

Nunca mais conseguimos fazer amor como naquela ocasião, quando ela estava transparente e iluminada como eu, e com o sujeitinho aquele ali por perto; acho que colocando luz nos corações da gente.

sábado, 8 de setembro de 2012

A VENDEDORA DE COSMÉTICOS

Desde o triste dia em que o Adão acreditou na conversa da Eva, que caiu na tentação da serpente e comeram o fruto proibido, da árvore do conhecimento, temos todos, homens e mulheres, que enfrentar a ira de Deus e cumprir o doloroso castigo divino, de trabalhar pesado e suar muito, para temperar a farinha do nosso sagrado pão. 

E dissimulados, quando questionados pelo Criador sobre a desobediência cometida, o Adão culpou a Eva, que culpou a cobra, ambos se dizendo enganados, se passando por vítima. Não adiantou nada. Estava proferida a sentença. De olhos abertos e envergonhados foram expulsos, sem direito a recurso, daquele sítio encantado. 

Por tal imprevidência, merecia o primeiro casal, era uma grande surra, mais o desprezo total dos humanos que lhe sucederam. Onde já se viu perder aquela mamata que era viver no Éden, em troca de uma maçãzinha boba. Por mais suculenta que fosse, foi um péssimo negócio. 

Foi fraco o Adão. Bastava bater o pé, e dizer um sonoro não para a Eva, e estaríamos em férias permanentes até hoje. Por culpa dos dois perdemos o Paraíso Eterno. Agora, o Éden almejado é trinta dias de descanso numa dessas praias badaladas e entupidas de gente, com os preços pela hora da morte, com férias miseráveis, muitas vezes regadas com suco de saquinho e sanduíche, polenta e frango assado. É, mereciam apanhar, o Adão e a Eva. 

E com a Adelina, vida não foi diferente. Tinha que trabalhar para compor o orçamento doméstico. Ajudar no sustento dos dois filhos que o Cândido trouxe junto, frutos do casamento anterior. 

Pois inventou a Adelina de encher uma frasqueira com cremes, perfumes, loções e quejandos, enfim, uma linha sortida de cosméticos, e às tardes sair pelo centro da cidade oferecendo os seus produtos. 

Esta atividade da Adelina estava rendendo bem. Já ganhava muito mais do que o Cândido, como garçom de churrascaria, até, porque, a mulher era vistosa, e linda. Longilínea, cabelos louros abaixo dos ombros. Cintura marcada. Contemplada com exuberantes coxas roliças, douradas, enfeitadas com umas penugens delicadas, deliciosamente ali nascidas, que provocantes subiam joelhos acima, progredindo bandidas, até o céu das suas virilhas. Pareciam ouro em pó reluzindo contra o sol. E os lábios, quando não estavam pintados de carmim, eram duas pétalas cor-de-rosa, tiradas da cor rosa, da rosa mais cor-de-rosa que já existiu. Pura tentação. Sobrava-lhe corpo, beleza e encantos. Até nem combinava com o Cândido; baixinho, barrigudo e sem iniciativa. Pasmado. Quase nada somava. Quando a Adelina passava, quebrava o pescoço da gente, botando em fervura os hormônios de quem era macho, e fabricando inveja e antipatia no mulherio; nas feias e nas bonitas, aquela cavala desgraçada. 

Porém, a Adelina se exibia meio avoada, fugia um pouco daqueles exigidos padrões familiares; daquilo que a sociedade espera do comportamento de uma esposa convencional. 

Trabalhava até as duas da tarde, e a noite, o Cândido. Portanto, tinha tempo de sobra para levar a Adelina até os clientes, que agora, já atendia com hora marcada. 

Chegavam próximo a um prédio, estacionava o seu carrinho verde-garrafa e a Adelina subia até um apartamento para demonstrar tubos, vidros e potes do seu sortido e aromático cardápio de iguarias cosméticas. Sempre avisando o Cândido que demoraria coisa de uma hora, ou um pouquinho 

mais, porque aqueles eram clientes especiais. E como tinha clientes especiais, a Adelina. Ele, contente, aguardava a mulher, escutando música brega no rádio do carrinho verde-garrafa. 

Assim passava o tempo, com a Adelina fazendo quatro visitas por tarde. Depois, voltavam para casa felizes por conta do belo faturamento feito com as vendas a domicílio. 

O homem é um ingênuo. Pensa que domina a situação. Se convence, tolamente, que possuiu nas mãos as rédeas do relacionamento. Doce ilusão. A mulher, por sábia, concede-lhe esta impressão. Não passa, o coitado, de um marionete falante, manejado com habilidade pela perspicácia feminina. Executa o que ela lhe ordena e pronto, tal um animal domesticado. 

Da mesma forma que o Adão foi ludibriado pela Eva, por confiar na sua palavra, assim também o Cândido, o Adão moderno, acreditava na Adelina, a Eva de hoje. 

Quando já havia passado uns três anos naquela atividade, a Adelina, com boa quantia na poupança, abandonou o Cândido e os filhos, alegando que precisava ser dona do seu nariz; que iria abrir uma loja de cosméticos em outra cidade, porque o negócio era muito rendoso. Que não nascera vocacionada para o matrimônio. 

E se foi, deixando para os seus homens o perfume azedo da saudade. 

Ele chorou umas lágrimas quentes que lhe queimavam as faces, e junto, uma tristeza, que feito um estilete afiado, ia tirando lascas da sua alma. Alguma coisa importante se quebrou dentro do Cândido, naquele dia. 

Nem ao menos um bilhete de despedida embaixo do travesseiro, pensava o Cândido, sentado na cama, olhando fixo para a frasqueira da Adelina, atirada num canto do quarto, quando deixou sair boca afora misturado numa voz molhada: agora ri bastante bobalhão. Chora, palhaço! 

O que o Cândido nunca soube, é que a Adelina, não vendia cosméticos. Era só fachada. Quando ela subia diariamente, todas as tardes, inclusive nos finais de semana, nos quatro apartamentos, era para fazer programas com os clientes fixos que lhe pagavam muito bem. E para dar verdade ao negócio, ela entregava alguns produtos, como brindes, para aqueles que se saciavam nas suas apetitosas e douradas carnes. Final do dia, a baixa no estoque da maleta, justificava o dinheiro recebido. 

E o Cândido também não ficou sabendo, que na cidade do interior para onde a Adelina se mudou, ela não abriu loja nenhuma de cosméticos, e sim, a melhor casa de mulheres da região. 

Lá chegando, passou a ser chamada, e ficou muito conhecida e famosa como madame Hadelye, que adquiriu inclusive um estranho sotaque francês, arrumado, não se sabe onde. É verdade. Neste campo misterioso, os homens evoluíram muito pouco depois da experiência no Paraíso. Ainda são uns Adões inocentes, acreditando cegamente em tudo que as Evas lhes prometem. E estas, continuam envolvidas, com os perigosos bafos das serpentes.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

PITANGAS MADURAS

A casa de alvenaria antiga da fazenda, pintada de branco, de cal, já desbotando; com janelas pequenas e três portas marrons que saiam para o terreiro: uma na cozinha, outra na varanda e mais uma que dava acesso à sala, onde recebiam as visitas e velavam aqueles que por lá inventavam de morrer. E uma área com duas cadeiras de balanço na frente da porta principal.

Tudo cercado de cinamomos, laranjeiras, pitangueiras, e outras, e muitas outras de sortidas espécies. Um poço d’água com manivela, um forno a lenha, um galinheiro, uma horta, um galpão, e roupas estendidas no quarador; as de cama e as de uso pessoal. E também apanhando sol, uns paninhos felpudos manchados de sangue escuro que eu não entendia a serventia. E uma estradinha torta em direção a cacimba de água boa, e ao açude de banhos e pescarias, e ao mato, entre a casa e o açude, onde cantavam todos os passarinhos do mundo.

E na casa, três filhas ou netas dos velhos, nem me lembro direito. E eu, na infância como elas, brincando brincadeiras de miúdo.

Um dia de tarde, embaixo da área da casa, a maior das três tirou a calcinha, levantou a saia e me chamou pra perto dela. Não compreendi, mas fui. Baixou as minhas calças curtas, me agarrou por baixo dos braços, fez força e me levantou até a altura certa, e se esfregava agitada, e por ter mais tamanho e força, manejava o meu corpo, atritando minhas ainda inocentes partes, nas suas, que já inflamadas, tremiam por uma necessidade, que pelo menos pra mim, era ainda desconhecida.

Foi quando ela pediu ajuda para as outras duas menores, iguais a mim, em altura e idade, que por ali estavam sentadas nas cadeiras de balanço assistindo ingênuas aquele esforço.

Ela, a maior, em pé, com o traseiro encostado na parede, com as pernas bem abertas, junto com as outras duas me suspenderam e me posicionaram na altura recomendada, e ela, com a mão, auxiliava, e insistia, na tentativa de se preencher com o meu instrumento ainda em formação.

Olhei o seu rosto e notei uma expressão que nunca tinha visto nas mulheres e nas outras gurias. Achei que era uma grande vontade, uma ânsia ainda não satisfeita. Uma espécie de uma gana muito forte. Mas que devia ser uma coisa muito boa aquilo que ela estava sentindo, a julgar pelas caretas que fazia, pelos chiados que assoprava e pelas palavras quentes que dizia, e que eu nunca havia escutado.

Até que ela, ajudada pelas outras, me ergueram mais, até a altura do seu rosto, e bem desajeitada, com fome, mordendo os próprios lábios, me beijou, lambuzando a minha boca com uma saliva morna, meio adocicada.

Depois desistiu, me colocaram no chão, puxou a calcinha pra cima e ajeitou a saia. Eu abotoei a minha calça curta no suspensório e ela dispensou a ajuda das outras duas, que olhavam curiosas aquela estranha brincadeira.

A seguir fomos os quatro bem contentes correndo para o arvoredo. Batemos num pé de pitangueira, e possuídos da mais pura inocência ficamos com os beiços pintados de um vermelho bem encarnado, da tinta, daquelas deliciosas e inesquecíveis pitangas maduras.

A TRAPAÇA

Início de uma madrugada mormacenta, estava passando na frente de um hotel, que de hotel só tinha a placa, desses bem muquiranas, quando saiu lá de dentro uma mulher gorda, soltando as banhas por cima da saia e as tetas saltando pra fora da blusa. Saiu se coçando, espremendo com a ponta dos dedos os piolhos e pulgas que nela moravam, e chutando com a sandália velha as baratas que se atravessavam no seu caminho.

Resolvi seguir a mulher, que se enfeitou toda para aquele resto de noite. Pobre miserável. Nunca vi arrumação tão pobre, tão feia, tão decadente, tão humilhante. Coitada. Por querer se arrumar bem, ficou ridícula. Fantasiada, com as vestes surradas que usava. 

Andou coisa de três quadras, e eu meio por longe, atrás dela. Até que entrou num boteco; uma espelunca, misto de bar, boate e motel. Mas caindo aos pedaços. Uma imundície 

Fiquei no outro lado da calçada olhando aquele grupo de gente suja, se entorpecendo de cachaça ordinária e vinho de garrafão, naquele antro fedorento. Naquela reunião de aflitos se encontraram uma porção daqueles que perderam: prostitutas decadentes, travestis com barba de um dia, bêbados, jogadores, ladrões, punguistas, malandros, mendigos, estelionatários e vadios de toda espécie. 

E ali festejavam, com aquele jeito grosseiro, estúpido, uns farelos de contentamento que se soltaram das suas supremas desgraças. Davam risadas macabras, ruidosas, grosseiras com as bocas desdentadas. E as putas e os viados com os lábios doentes pintados da cor de sangue. E quem ainda tinha alguns dentes, os exibiam podres, furados, com as gengivas amareladas, sangrentas. 

Os rostos escurecidos, inchados, maltratados pelo álcool, mostrava com que gente se estava lidando.

E as unhas sujas e compridas, parecendo garras de fera. E um cheiro azedo dos líquidos que vertiam corpo afora, se misturando com perfumes vagabundos, mais as fumaças dos cigarros e as outras fumaças, tornava aquele ambiente empestado na principal filial do inferno aqui por cima da terra. 

Falavam aos berros e se empurravam. E gargalhavam por conta de uns ganhos acanhados, mínimos, obtidos como se fosse fortuna. Comemoravam essas pequenas esmolas de alegria que a vida de vez em quando lhes fornecia. 

Diziam com certo orgulho, sobre as vantagens dos logros, das brigas, das facadas, dos furtos, dos assaltos que cometiam. E não se queixavam. Acho que nem se preocupavam com as diferenças. Era assim que tinha que ser, e pronto. Nem se davam conta das gotas de veneno que o diabo colocou em suas almas, quando nasceram. 

Dançavam, pulavam, cantavam, sorriam, assim, irracionais, tipo bicho. E para mostrar quem eram, exibiam feridas inflamadas, talhos e bolhas não cicatrizadas, nas pernas, nos braços, nos sovacos, no pescoço, nas virilhas. Muitos desses ferimentos amarrados com uma tira de pano manchada de pus e sangue apodrecido. Mais as cicatrizes feias, curadas sem cuidado, largas, que pareciam uma estrada sem capeamento. 

As roupas imundas, emporcalhadas de marrom; sapatos velhos, chinelos rotos, e uns de pés no chão. Alguns mijando nas calças, erguiam, estimulados pela música de corno, braços e dedos mutilados e faces marcadas por cortes antigos de navalha, faca ou estilete. 

Quando se observava aquele gingado desajeitado, de fera se balançando, parecia que dentro de cada peito, batia o coração do satanás. Não podia se outra coisa, quando um negro de testa grande, com a boca inteira, mordia, lambia, e tal como um vampiro sem dentes chupava o couro flácido do pescoço suado e grudento de uma crioula meio adormecida, que de olhos fechados se sentia uma princesa. 

Que outra coisa ruim poderia estar ali, quando uma velha gorda fazia sexo em pé, curvada sobre uma mesa com um mulato forte e suado, enquanto um travesti, ou seja lá o que fosse aquilo, beijava a boca de um sujeito com as calças arriadas, que não tinha a mão esquerda. E um grupo de seis homens com os membros pra fora, se encostavam uns nos outros, se medindo, se esfregando, enquanto uma mulher, que já tinha sido bonita um dia, ajoelhada no piso pegajoso, girava o corpo no meio deles, oferecendo a boca salivante, pra saciar e ser saciada, tal uma cadela sem raça entrada num cio desesperado. 

E na frente de um lance de escada, esperavam em fila, uns pares de todos os sexos; alguns já sem roupa, em plena atividade, uma vaga num dos quartinhos pintados de rosa forte, pra se deitarem uns com os outros, aos pares ou em grupo. 

Seria aquilo a busca do amor? Ou um instinto selvagem da carne? Ou os dois? Não achei resposta. 

Enquanto isso no salão, com as mãos lambuzadas de gordura, quatro mulheres obesas comiam desajeitadas, peles de frango e toucinho de porco fervidas numa banha rançosa, que escorria queixo abaixo. E cuspiam e vomitavam no assoalho encardido e por cima do balcão. E se olhavam risonhas, achando tudo bonito. 

Pude ver também, encostada num canto da parede uma mendiga de cabelos claros com a pele toda quebrada, de mãos postas contra a testa, implorando, implorando, desesperada, que o Criador lhe desse aquela morte, que nunca chegava. 

E vi, uma mocinha, menina ainda, a coitadinha, com as faces cravejadas com delicadas pintinhas claras, de cabelos afogueados e com uma fitinha branca passando pelo meio da testa, que deveria ainda gostar de boneca. Que se estivesse numa igreja, passaria por um anjinho, que enganada pela noite e pelo Rei das almas, estava ali, com a boca pintada de um vivo batom vermelho, rubro, quente da cor do sangue, abraçada num bagaceiro daqueles. Perseguida e sendo usada, e tocada em suas partes ainda não completas pelas mãos e corpos daqueles miseráveis, cujo único pecado cometido foi terem nascido sem a chance de serem gente. Ultrajando a sua inocência, se perdendo chão adentro, orgulhosa por ser mulher. Toda faceira, com um brinquinho de fantasia que tinha uma pedrinha branca pendurada, com a intenção de dar um brilho sensual no seu rosto ainda infantil. 


E todos os outros, aqueles que deram certo ou lutavam para acertar, viravam a cara quando passavam diante daquela porta; por nojo e desprezo. 

Viver é um jogo. Mas quem perdeu por tão grande diferença, sem ao menos competir, se pensar, sabe que aquele resultado é inaceitável, injusto. Um escândalo. Dá até pra cogitar que houve uma espécie de trapaça por parte daquele que tem nas mãos o controle dos barbantes, quando fez a distribuição daquilo que se chama de destino. 

Eu havia entrado ali para me certificar que o diabo existe, e que Deus as vezes falha. 

E confirmei as minhas suspeitas, e sai daquele ambiente com a mente turvada e o peito apertado, dolorido. Descrente com o poder das orações e das forças invisíveis, com a energia humana esgotada, querendo luz naquela escuridão. 

E com o estômago embrulhado e o coração retorcido, revoltado por essas inexplicáveis e injustas diferenças, briguei outra vez com Deus. E tomado por uma raiva violenta, botei a mão no bolso do paletó, e atirei o rosário no lixo.

ASSIM NÃO DÁ MAIS

E essa maldita semente que não brota nunca. E aquela carta que nunca chega. E essa saudade que nunca morre. E esse pensamento que não sossega. E esse teu perfume que não me abandona. E essa música que não me deixa te esquecer. E aquela vizinha gorda do quarto andar que não para de dar descarga no vaso. E aquele maluco que não para de gritar. E aquele casal que transa direto em cima da minha cabeça. E essa solidão que não acaba. E a Aninha que atirou a aliança fora. E aquela prostituta que não aperta nunca no interfone. E a minha puta que não liga mais. Que canalhice, de uns tempos para cá as coisas não andam nada fáceis. É só dureza. Só dureza. Mais um pouco e largou tudo de mão e desapareço.

E essa porcaria de semente que não brota nunca. Parece até que endureceu a casca. E essa dor de barriga que não passa e essa ressaca desgraçada de todas as bebidas de ontem e de todos os dias. E esse vômito grudento espalhado pelo corredor. E essa torneira que não para de pingar. E essa merda de ventilador que não funciona. E essa cerveja que não gela nunca. E essa tosse que não sossega. E esse furúnculo que não explode. E esta insônia que não me abandona. E aquela prostituta irresponsável que não aperta nunca no interfone. E a minha puta que não liga mais. Ela que sempre ligava.

E essa semente que não brota nunca. Que semente mais ordinária. E esse cabelo encravado no saco. E esse candidato reacionário com esse assunto conservador. E aquela bolinha ardendo, coçando; filhote da hemorróida. E esses políticos canalhas que só sabem roubar. E aquela vizinha feiosa do primeiro andar que-quer-porque-quer transar comigo. E aquela loirinha do terceiro andar que faz que não me vê. E essa testosterona que não se acalma. Que fase, essa! E aquela prostituta tratante que não aperta nunca no interfone. E a minha puta que não liga mais. Deve ter arrumado outro, a desgraçada.

E essa porra de semente que não brota nunca. Vou atirar esse vaso fora. Tô ficando irritado com tudo e com essa bosta de semente. E essa louça que ninguém lava e esse piso que ninguém limpa. E a vontade de escrever que sumiu. E os cigarros, os vinhos, as cervejas e os destilados que estão terminando. E aquele dinheiro que nunca chega. E também essa prostituta vagabunda e irresponsável disse que em meia hora estaria aqui. Vou dar uns tapas nessa louca. E a minha puta que não liga mais. Vou dar um esporro nessa piranha. Que nada. Tenho que achar uma saída. Acho que vou reclamar pra o padre, pra o síndico e pra Deus. Desisto. Não vai adiantar. Vão me chamar de louco e não irão resolver os meus problemas.

Tá bem. Me rendo. Vou botar no lixo essa semente de merda que nunca brota, desistir dessa prostituta safada, dar um fora na minha puta, que decerto nem é mais minha, e me desfazer dessa louça suja. E vou sair pra catar outra semente pra ver se brota, trocar de prostituta e arrumar uma puta nova que me ame só por três dias e comprar uma louça nova.

Mas desta vez vou ser muito exigente: a semente tem que ser boa e brotar. Quero garantia. A prostituta tem que ser pontual, a puta tem que ser amorosa e a louça descartável. Assim nessa ordem, ou nem tanto. Até podendo ser assim: que a prostituta seja amorosa, que a puta seja boa e brote, e que elas e a louça sejam descartáveis, e que a semente seja pontual. É o máximo que posso ceder, e disso não abro mão. E pronto. Aliás, pensando bem, se tudo ficar assim e funcionando, até que não fica ruim. Dá pra levar mais um tempo e enfrentar o inverno que está chegando. Porque, quem tem uma semente brotando, uma prostituta que chegue no horário marcado, uma puta que dê amor por três dias e uma louça pra brotar fora, pode deixar fazer frio lá fora.

Agora tem uma coisa: se eu não conseguir nada disso, na semana que vem, abro mão da semente, da prostituta, da puta e da louça, e invisto todos os meus trocados, mas todos eles mesmo, em sete garrafas de cachaça e acabo transando com a vizinha feiosa do primeiro andar. Só de raiva.

(...) E esse estrondo e gritos lá embaixo, agora de madrugada. Estava bêbada. Porra, morreu a guria da moto. Morreu a semente? Será que não era a prostituta? A minha puta sei que não era. Nem a louça.

Que merda. Nada aconteceu de bom. Deu tudo errado. Sabe de uma coisa? Vou lá no boteco da esquina que ainda não fechou e vou tomar todas e esquecer, agora e pra sempre, esse negócio de semente que brote, de prostituta pontual, de puta amorosa e louça descartável. E no fim da tarde quando acordar, vou ligar para a Aninha, minha noiva que não me aguentou e dizer que mudei, que sou novamente quem eu era e marcar o nosso casamento para o dia trinta... bem sério, porque assim não dá mais. 

Claro, seu burro, como é que tu não pensou nisso antes, seu idiota: a semente boa e que pode brotar, só pode ser a Aninha. A Aninha, cara! A Aninha! A Aninha que já foi minha. A Aninha que quase brotou um dia.

Mas, se der errado... bem, se der tudo errado, não é bom nem pensar. Estão dizendo que esse inverno vai ser de rachar.

PÃO ASSADO E BISCOITOS TOSTADINHOS

A Verônica era do lar. Tudo o que fazia era estritamente dentro de casa, e no pátio. Ali passava os dias, os meses, os anos, a vida, costurando, chuleando, caseando, cerzindo, remendando, fazendo bainhas, pespontos, pregando botão, lavando e passando as roupas surradas e as cuecas fedorentas do Alfredão. Também fazia comida, arrumava a mesa, servia, recolhia e lavava a louça. E esfregava ajoelhada o assoalho da casa, e varria o cisco do terreiro de chão batido. E assava pães, e uns biscoitos, e umas roscas bem tostadinhas no forno do fogão. Depois servia o jantar e jantava sozinha, e deixava um prato na mesa esperando o Alfredão. Depois tomava um banho, passava uma alfazema no corpo, deitava e via novela, pra depois ser acordada pra transar sem prazer com o sujeito.

O Alfredão era da rua. Vivia de biscate, jogo de baralho, de dadinhos e bebida. Em casa só peidava, arrotava, tossia, vomitava, cuspia e mijava fora do vaso. E mandava a Verônica, aos gritos, trazer mais uma cerveja da geladeira. De dia olhava o sol e de noite, quando estava em casa, não tirava os olhos do céu, contando as estrelas, encantado com a lua e bebendo as cervejas que a Verônica trazia. Depois jantava a comida fria, tirava a roupa, e sem banho, acordava a Verônica, pra, bem bêbado, outra vez, transar forçado com a criatura.

Com mais de dez anos naquela vida, a Verônica pensava bem forte que não aguentava mais aquela situação. Estava saturada de varrer o pátio, limpar a casa, transar com o Alfredão e fazer pães e biscoitos bem tostadinhos no forninho do fogão. Não queria mais saber de agulha e linha pela frente e dedal enfiado no dedo. Pão e biscoito tostadinho não queria nem ouvir falar. Tomou nojo daquelas obrigações enfadonhas. - Meu Deus, que casamento é esse? Se perguntava. - Isso não é vida, afirmava em pensamento. Tinha porque tinha que sair daquela situação, daquela enrascada. Não aceitava mais transar com o Alfredão bêbado. Bem verdade que ele também já andava entediado, não sentia mais vontade para transar com uma mulher que só cuidava da casa, que só costurava, que só varria o pátio, que só fazia comida, que só lhe trazia cerveja, que só lavava e consertava as suas roupas, e que só fazia pão e biscoitos bem tostadinhos. Saturados, é que estavam um com o outro. Mas iam levando, até que aparecesse coisa melhor para fazer.

Vai que uma noite, depois de um baita porre do Alfredão, a Verônica tomou coragem, se arrumou toda, pegou um ônibus e foi num bailão, convidada pela Celeste, uma vizinha solteirona. Até que ficou bem arrumadinha, a Verônica, com aquele vestidinho de um tecido macio, fresquinho, estampado com uma mistura de flores vermelhas, azuis e amarelas, que há anos estava sem uso, enfiado numa gaveta, e um colarzinho de pedrinhas de fantasia. E um degote profundo que mostrava as tetas morenas bem feitas ainda, firmes, com os mamilos espetados, atrevidos, tomados de uma entusiasmada animação; lambuzada de alfazema, uma sandália preta bem limpinha e duas tranças pretas que se sacudiam enquanto dançava faceira com o Portela. Aí tocou uma música lenta, e o Portela chamou o corpo da Verônica pra bem junto do seu, com os seus braços de trabalhador, e ficaram dançando no meio dos outros pares, bem agarrados, quase parados; um sentindo o corpo latejante do outro, vibrando as carnes por necessidades há muito tempo não atendidas. Expulsando a solidão. Então, se encheram de juras, carinhos e entregas.

O Portela era um bom homem. Honesto e trabalhador. Parece que empreitava pequenas obras, e falou baixinho e quente no ouvido da Verônica uns galanteios e essas palavras bonitas de amor que qualquer mulher gosta e precisa ouvir, e que atinge em cheio, principalmente as feias e as carentes. Pronto. Não deu outra. Começaram a namorar ali mesmo, naquela hora, naquela noite. O Portela prometeu-lhe vida boa: empregada doméstica, passeios nos finais de semana, roupas novas e uns filhos, um casal; um menino e uma menininha pra alegrar a vida dos dois.

A Verônica foi em casa, de manhã cedo, logo depois do baile, colocou numa sacola meia dúzia de coisas de estimação, deixou um bilhete de despedida em cima da cama onde o Alfredão roncava como um porco, e se foi para a casa do Portela. Atravessaram a cidade e ela foi morar naquele sobradinho do solteirão. E como foi bom. Que tempos bons tiveram a Verônica e o Portela. Foi um tempo muito bom. Bom mesmo. Aliás, bom demais. Ainda mais se comparado com a vida que levava com o Alfredão, coisa que, a bem da verdade, não gostava nem de lembrar. Credo. Aquilo, nunca mais, pensava enquanto dormia agarrada no corpo musculoso do Portela.

Mas teve um dia; sempre tem um dia, um momento em que o bom cristal, aquele que estava aparentemente seguro e bem guardado, mas que por algum acontecimento inesperado, se parte. Ou se trinca. E perde o seu valor. Perde o seu sentido. A sua razão de ser. E nesse dia aconteceu, numa tardinha chuvosa e preguiçosa, quando o Portela falou para a Verônica: “ – sabe, nega, tô com uma saudade de comer pão e uns biscoitinhos caseiros bem tostadinhos, feitos no forno do fogão. A minha mãe fazia uns que eram uma delícia, e não sei porque, agora me deu uma vontade de comer aquelas delícias bem quentinhas. Tu faz pra nós, querida?”

Pronto. Trincou a taça de cristal. A Verônica fechou a cara, e deu sumiço no seu encantamento. Desiludida, pensou: “ – putz. Isso de novo não. Isso nunca mais. Agulha, dedal e linha até passa, mas pão e biscoitos tostadinhos assados no forninho do fogão, jamais. Isso é humilhação.

Foi lá dentro do quarto, arrumou as suas coisas numa mala e se foi embora, deixando o coitado do Portela sem entender o que tinha acontecido.

LILI E A TRISTEZA DO DEFUNTO

Noite dessas, já madrugada grande, quase amanhecendo, a Lili, me ligou chorosa, para eu ir com ela até ao cemitério. Havia falecido um grande amigo seu. De infância. O Joaquim, que estava sendo velado, e seria enterrado cedo, às nove horas da manhã.

Pulei da cama e fui cumprir o dever da solidariedade que os amigos fraternos devem entre si. Desci e esperei. Logo chegou a Lili no seu flamante carrão importado. Entrei, e vi um rosto inchado, triste, marcado pela amarga notícia daquela morte inesperada.

No caminho me contou, que lá atrás, na época quando ainda se iludia com as coisas do amor, fora apaixonada pelo Joaquim. Que vivera alguns meses que a atiraram para cima, bem pra longe da dura realidade. Um sonho. Enfim, que conseguira ser feliz naquele período inquieto da sua vida com aquele rapaz bonito, surpreendente, meigo e fogoso. E eu não sabia ou já tinha esquecido desta história. E que agora estava morto. Pra sempre.

- “Como pode isso?” – me perguntava a Lili. – “O joaquim morreu, assim de repente, do coração!” Se ressentiu. E chorava umas lágrimas sentidas, vindas de um luto nascido por coisas do passado. Perdera aquele que um dia lhe dera felicidade, antes um pouco, dos vinte anos.

Eu sem saber o que dizer, sentado no banco ao seu lado, passava a mão na sua nuca, alisava os seus cabelos, encostava a parte externa dos dedos da mão direita na sua face umedecida e enxugava uns pedaços de lágrimas com a falanginha do indicador, e não me ocorria uma frase inteligente para aquele delicado momento. Que situação!

Andamos, paramos, andamos e paramos várias vezes por conta dos choros da Lili, e andamos de novo até chegarmos no cemitério. Deus, como chorou a Lili, antes de sairmos do carro. Parecia uma viúva apaixonada.

Claro que eu conhecia bem a Lili. Quando terminamos uma vez, ela chorou, chorou, e chorou tanto, que eu por dó acabei voltando.

Choro de mulher é assunto sério. A gente sabe que é falso, exagerado, mas acaba se rendendo. Acreditamos que é verdadeiro. Esquecemos que naquele choro, que naquelas lágrimas ferventes, vem embutido uma série de outros sentimentos que não se relacionam em nada com aquele que julgamos ser o motivo principal de tão incontrolável pranto. A causa aparente é apenas um gatilho que dispara uma tempestade de emoções diversas. Um dramalhão.

E a Lili quando chora é pra valer. Não economiza lágrima. Se desidrata de tanto chorar. Parece até que vai morrer. Uma vez disse que ela deveria ser atriz de novela, pela facilidade e pela força do seu choro. Me chamou de abobado.

Abracei a Lili e fomos até a capela onde estava sendo velado o Joaquim. A noite estava muito fria. E ventava um Minuano gelado naquela noite de inverno, de um agosto tenebroso.

Chegamos e abri a porta que estava fechada por causa do vento frio. Que surpresa! Não tinha ninguém. Ninguém mesmo, nenhuma pessoa velando o coitado do corpo do Joaquim. Estava ali aquela sobra humana, aquele cardápio pronto para os vermes consumirem, sem uma viva alma a lhe acompanhar. Que coisa mais triste. É uma tristeza do cão, um defunto solitário, sem ter ninguém a rezar, uma rezinha que seja, uma prece humilde, até só em pensamento, para comover o Criador em hospedar aquela alma. Pensei.

Pronto. A Lili abriu um baita berreiro diante daquela solidão. Fechei a porta e abracei a Lili bem forte. De tanto choro molhou a frente da minha japona. Daria para torcer, que cairiam no chão as lágrimas da Lili, feito água, de roupa recém lavada.

Dali um pouco tudo serenou. E nos aproximamos do caixão. Vi, então, um homem morto, que ainda não tinha idade para ter morrido. A Lili me falou que morrera por ter um bom coração. Que era muito emotivo e apaixonado, o Joaquim. Que quase morria de tristeza por qualquer coisa que não gostasse de ver. Coisas banais atrapalhavam o coração do Joaquim. Todos depois de mortos ficam bons, pensei novamente, meio cruel.

Logo que nos aproximamos, ficando bem na beirinha do caixão, notei na expressão do defunto do Joaquim, uma tristeza infinita, uma desolação, uma dor que nem os que morrem a facada possuem. Decerto, pela solidão, pelo desprezo que lhe condenaram naquele derradeiro momento.

Pois foi a Lili acariciar outra vez e beijar o seu rosto, e dizer umas palavras de saudade e outras repetidas confissões de amor; e eu vi, juro que vi, a cara morta do Joaquim relaxar, fazer um ar de descanso, de alívio, de um aprontamento, e demonstrar um leve e quase imperceptível sorriso nos dois cantos da boca, como se dissesse: ah, Lili, que coisa boa!

Criei um pouco de coragem, lhe dei um novo abraço bem apertado, e pedi, como se deve pedir um desejo comovido, cochichando no seu ouvido: - “Lili, faz assim comigo no dia que eu morrer?”

Ela me deu um beijo na boca, bem apaixonado, junto com um meigo olhar de consentimento.

Se entendi bem, acho que ela vai fazer.