quinta-feira, 22 de novembro de 2012

MINICONTOS

REVOO

O ano andava em outubro e florido estava o jardim.
Um bando de borboletas se misturaram com as flores.
Depois revoaram, e também permaneceram numa colorida confusão.
Não sei se ficaram as borboletas plantadas nos cabinhos ou se foram as flores que voaram, batendo as pétalas; fazendo no ar outro jardim.

MÍNIMO MISTÉRIO

Na calçada, estirado no chão, pisoteado, falecido, um antigo grampo de cabelo com uma mecha verde que se mexia, pelo vento que fazia.
Que cabeça insensata o extraviou?
Ou ele se atirou lá de cima?

LEMBRETE

Hoje não acordei bem. A alma inquieta batendo insistente nas paredes do corpo.
Então, bebo um trago forte. Relaxo. Acendo um cigarro.
A fumaça mensageira, saindo de mim, leu o meu pensamento, e sobe alfabetizada sobre a minha cabeça, escrevendo a palavra, saudade.

DESINVENTAR

Depois que de ti DESFIQUEI, de ti, pra sempre me DESLEMBREI.
Te DESVI. De ti me DESAMEI, te DESOUVI, te DESRESPIREI, te DESENGOLI. Enfim, de ti me DESSENTI, te DESPENSEI; DESMORRI. Agora, DESCOBRI e DESCREVI que quase DESVIVI. Que felicidade, quando de ti, DESINSISTI e te DESINVENTEI.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

OS OLHOS DO DR. SPHAUDSEN

Conheci bem Theobaldo Justino Sphaudsen. Advogado competente. Um puro sangue nos confrontos forenses, além de mostrar-se um ser humano espetacular quando não estava incorporado pelos efeitos do álcool. Apresentava-se brilhante nas audiências nas varas criminais e lotava os salões dos tribunais do juri com estudantes de direito e curiosos, que se acotovelavam para assistir a sua performance feita de surpreendentes estratégias, sempre adornada por uma firme e vibrante oratória. Para um réu, ser defendido por Sphaudsen era um privilégio, sinal forte de absolvição, pela reunião dos variados dotes de sabedoria, persuasão e de presença solene que era depositário. E na vida social tinha um sólido conceito por ser dono de um grande coração, que atirava as suas bondades para o mecenato, para a filantropia, para a humanidade. Que invejável imagem desfrutava este homem, apesar de algumas secretas contradições pessoais. 

Toda vez que encontrava com aquele homem alto, forte, culto, educado, de porte majestoso, voz metálica, trajado com esmero eu olhava aqueles olhos sem brilho, imprecisos, que davam a impressão de serem feitos de um frágil cristal prestes a se quebrar, e pensava: que fio, deste instrumento chamado Theobaldo Justino Sphaudsen havia se rompido. Tinha a absoluta certeza que ali, naquele corpanzil, naquela imponência, alguma coisa tocava desafinado. Um som estranho saia por aqueles olhos dúbios. Coisa mínima, quase imperceptível, mas o suficiente para me causar estranheza, um convencimento que ele era um sofredor apesar das aparências dizerem o contrário. Era uma convicção perigosa, temerária, mas eu a tinha. 

Todos elogiavam o seu comportamento, a sua personalidade, os seus feitos. Sabíamos que falávamos de uma pessoas rara, dotada da melhor alma, da melhor inteligência, de um talento maior, dono dos melhores propósitos. De um ser humano que oferecia para a vida uma espécie de pagamento, uma retribuição material por viver de maneira tão esplêndida. Devolvia, tal um dízimo espontâneo as dádivas que fora merecedor. 

Mas, mesmo assim, eu sabia que faltava um elo, um dente na engrenagem para o Dr. Sphaudsen ser tão completo, tal como todos imaginavam. Alguma coisa não se encaixava. Aqueles olhos fugidios ao invés de mostrarem esperteza, para mim indicavam uma fraqueza, um desencontro que afligia a sua alma. 

Certa ocasião com um grupo de amigos e nossas namoradas fomos numa festa, destas, digamos, alternativas, livres, onde havia gente de todas as tribos, de todos os conhecimentos, de todas as atividades, de todas as idades, de todos os sexos. Gente bonita, avançada, de atitudes inovadoras, com disposição para buscar toda espécie de prazer mundano. 

No início, até me senti um pouco deslocado com tanta diversidade. Depois me separei da minha turma e fui circular pelo interior da mansão com a minha companheira, no meio daquela “fauna” humana que festejava a vida, bebendo, conversando animadamente e dançando ao som de músicas tocadas por famoso animador. 

Andamos, bebemos. Um “oi” aqui, outro “oi” ali, e assim fomos passeando entre a multidão, até que encontramos uma antiga conhecida de cabelos pintados de azul, vestida de princesa, com umas saias sobrepostas cheia de babados, com as unhas pintadas cada uma de uma cor, bebendo uma poção vermelha. Falamos, e com ela junto, continuamos o passeio no meio daquela multidão. 

Sentamos os três num degrau da escada defronte a uma sala escura, e ela só falava em disco voador, ETs, vida após a morte, a fragilidade da vida humana, da inevitabilidade do destino, enfim que já nascemos predestinados e mais outras maluquices. 

Na verdade, essa moça, a Suzi, havia sido estagiária, há uns anos atrás no escritório do Dr. Theobaldo, e dele, tinha impressões semelhantes as minhas. Inclusive, enquanto conversávamos, afirmou ter visto circulando pelos salões lotados da festa a figura do notável jurista, esguelhando-se dissimulado próximo as paredes. Assunto que não dei atenção, por achar inteiramente improvável tal aparição. 

Mas, assim, como para comprovar, que com frequência a vida imita as tramas inventadas nos enredos de um romance, a coincidência atirou na frente dos nossos olhos a silhueta do Dr. Sphaudsen, que num canto da sala em frente, no lusco-fusco que ali fazia, beijava enlouquecido um rapaz. Nos cutucamos incrédulos, eu e a Suzi, e continuamos olhando aquela inacreditável cena, e vimos a seguir, o Dr. tirar a calça, deitar de bruços no sofá, e ser possuído pelo garotão. Depois levantou-se, traquejou-se, tirou um maço de notas do bolso do paletó e foi rápido em direção a porta de saída. Ainda pude ver, quando de relance, uma luzinha branca mostrou um sorriso mastigado, meio eufórico, meio criminoso, enquanto ele passava por nós, agarrado numa garrafa de uísque. 

Outro dia, no fórum, encontro o Dr., e perguntei se a festa daquela noite estava boa. 

Me respondeu, olhando com os olhos covardes para o gesso branco do teto: “ - Que festa Dr.. Nunca vou a festas. Sou um homem caseiro, voltado para a família, para a profissão, para a religião, e preocupado em ajudar os necessitados e um obediente fiel da retidão e dos bons costumes. 

Respondi, olhando aquela falsificação: “ - Claro, Dr. Sphaudsen. Devo ter me enganado”. 

Como existem misteriosos e inconfessáveis desejos escondidos atrás de uma grande e sofredora personalidade, depois pensei.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A FESTA

Fui convidado para uma festa numa mansão toda iluminada e de muros altos na beira do mar. Só gente rica. E uns que queriam ser importantes. E também uma espécie de ratos de festa que andam atrás de visibilidade e de algumas sobras do grande queijo. Coisa de pobre querendo se dar bem na vida. Muita gente usando roupas de grife, relógios poderosos e sorrindo sem motivo. 

Os homens falavam de automóveis, barcos, jatinhos e negócios de todas as espécies: os lícitos e os nem tanto. E havia uma diferença que dividia as mulheres, acho que meio a meio: uma metade acompanhava os seus maridos e companheiros e a outra parte trabalhava, distribuindo simpatia forçada, sorriso falso e o corpo pra quem chegasse. E uma equipe com mais de quinze garçons servia espumante qualificado, uísque de renome e um pó branco que brilhava sobre as bandejas de prata bem polida. 

Na medida que a noite avançava, mais a vontade todos ficavam; mais bêbados, mais loucos e mais irreconhecíveis. Todo mundo pegava todo mundo e se atiravam a fazer sexo onde desse: nos quartos, na piscina, nos sofás, nos tapetes, nos gramados, nas cadeiras, nas mesas da cozinha e das salas. 

Ninguém mais pertencia a ninguém. Os maridos deixaram as suas esposas para os outros e buscaram as moças remuneradas. Tinha até marido de bom nome sendo mulher de outro renomado, e mulher de nome falso beijando mulher com sobrenome. Muito marido trocou a esposa por um rato jovem da festa, coisa que algumas senhoras também acompanharam. E também algumas esposas com esposos que não eram seus. O que mais sobrava era esposa mais antiga, mais isso elas davam um jeito entre elas mesmo. 

Foi quando olhei em direção ao bar e vi duas mulheres, uma novinha e outra quarentona me olhando, sorrindo um sorriso caçador que dizia: vem cá meu bem! Fui. Cheguei. E quando fui dizer o meu nome, uma abraçou a outra e se beijaram com fúria, com as mãos apertando, alisando as pernas uma da outra por baixo das saias sem calcinha. Uma delas, pela aliança que usava era esposa de alguém. A outra, não sei. 

Fiquei excitado com aquelas duas mulheres se agarrando na minha frente e entrei no jogo. Beijava uma e a outra. Enquanto beijava a boca da loira, a loira mais antiga beijava o meu pescoço. Ali mesmo tiramos a roupa e transamos os três. Eu com elas e elas entre elas. 

Depois não vestimos as nossas roupas. Estavam os outros todos em pelo, fazendo sexo, se amassando, bebendo, agarrados nas bandejas de prata, e a boca era pra todos os usos. 

Olhei pra um enorme tapete no chão e ali por cima tinha umas doze ou mais pessoas: homens e mulheres fazendo o que precisavam nos corpos alheios. Entramos, eu e as duas naquela confusão, e ali me liquidei, naquela perdição. 

Cansado, levantei, tomei mais uns copos de uísque e na penumbra vi que as flores brancas: os cravos, as rosas, os lírios dos vasos de cristal estavam todas mortas. Nem quis saber o motivo. Fui então procurar minha roupa. Não encontrei. Por todos os lados só havia roupas dos outros, aos montes. Me agachei e peguei um terno preto de um tecido caro e macio. Vesti a calça, um paletó e uma camisa. Serviram. E fui embora de pés descalços, levando uma garrafa de champanhe que falava francês. Abandonei aquela usina de sexo com o corpo perfumado, impregnado com os cheiros destilados e recebidos por conta daquela desenfreada luxúria. 

Já estava quase amanhecendo. Entrei assoviando em casa, e o terno que eu usava era de uma grife famosa, e a camisa também. 

Pensei: alguém vestiu a minha roupa que não valia muita coisa. Apalpei, e achei no bolso interno do casaco um cubano de raça pura, abri aquela champanhe e fui pra sacada. Fiz um brinde para o sol que atirava os seus primeiros raios nascentes que iluminaram o meu rosto e me deram força na alma, como se dissesse: aproveitaste bem, não é Joca? 

Sorrindo, em pensamento respondi: nem tanto meu rei. Hoje em dia, pra mim, qualquer bocado já é um grande banquete.