quinta-feira, 23 de maio de 2013

ZUMBIS, GATOS PRETOS E BODES DE GRAVATA

A realidade completa não está disponível para os olhos de todos. Existem mistérios inacessíveis para aquelas mentes apenas curiosas, tal esta afirmação: os espíritos vagam, e não poucos cadáveres também perambulam entre nós! Os zumbis existem! Os mortos-vivos fazem parte da nossa vida, e vez por outra aparecem diante dos seus escolhidos.

Enquanto isso ouvimos na boca do povo: “... Mas já estão mortos! Agora são apenas restos mortais. E o que são restos mortais senão as sobras da vida? Os refugos inocentes da existência! Assim sendo, forma já se acabaram, perderam a determinação. Não podem mais aparecer, a não ser na nossa imaginação.” Aí é onde reside o engano!

Eu sei que quase ninguém vai acreditar nesta história, mas mesmo assim, por teimosia, vou contá-la. Escutem:

Certa feita, numa tardinha preguiçosa de sábado, estava passando na frente de um cemitério. Não que fosse o meu caminho, mas por andar no mundo da lua, quando me senti impelido por uma força, uma ordem, um chamado, ou seja lá o sentido que aquilo tivesse, a entrar no território dos mortos.

Já era quase noite e quando dei por mim, estava parado na frente de uma sepultura com tampa de fino mármore, que levantou-se com a minha chegada.

Não senti medo quando saiu de dentro da catacumba o cadáver de um senhor, já com idade muito avançada, bem vestido com um terno preto e camisa branca. E a gravata, que também era branca, trazia um desenho estampado, que não entendi o significado, além de um distintivo dourado, na forma de um ramo, cravado na lapela do casaco.

Saiu e ergueu-se na minha frente, com as carnes do rosto se despregando. A garganta estava cortada de fora a fora, os lábios já haviam sido comidos pelos vermes, as mãos e os pés não tinham mais pele. Trazia um buraco profundo na altura do coração, e no interior do ventre que estava aberto, vi um amontoado de bichos brancos, que produziam um estranho som abafado, enquanto famintos, devoravam as suas entranhas, com aquelas mandíbulas poderosas.

Desceu os degraus do túmulo e deu uns passos em minha direção. Estava muito feio o seu estado, e exalava um cheiro podre adocicado, que se impregnou na minha boca. Mas continuei ali parado, inexplicavelmente, sem sentir medo, muito menos nojo, o que seria natural naquela circunstância.

Olhou para os astros que começavam a surgir no firmamento, os identificou e interpretou as posições dos signos zodiacais. E falou umas palavras em código com uma voz gutural, rouca, sufocada, que saia por entre a dentadura exposta, de orelha a orelha. E com o pedaço de língua que lhe restava, assoprava aqueles vermes esbranquiçados que caiam sobre os meus pés, se mexendo e se retorcendo, abrindo e fechando aquelas queixadas em forma de pinça.

Por fim, chegou bem próximo de mim e disse que se chamava Lesbach. Doutor Ivo Lesbach. E que eu deveria ir até a sua casa, na rua das Acácias, nº 33, que lá encontraria, logo que entrasse, aquilo que ele muito necessitava me transferir, e que eu tanto precisava conhecer.

Fui. Era uma casa velha de esquina, pintada de um marrom já desbotado, toda fechada, sem nenhum sinal de vida.

Dei um jeito, forcei portões, janelas e portas até que consegui entrar, quando sete gatos saíram correndo assustados, com uns pedaços de carne podre presos entre os dentes.

Acendi a luz e me deparei com três imensas colunas feitas em estilo dórico, jônico e coríntio cada uma, mais outras duas que não soube reconhecer. E entre elas, sentado numa poltrona de veludo azul, com o espaldar tão alto que mais parecia um trono, empunhando um martelo de

madeira na mão direita, com aspecto de nobreza, o homem do cemitério. Nisso, o doutor Ivo Lesbach convocou os gatos para retornarem; que de pronto atenderam o seu chamado. Ficaram na sua volta, enquanto ele, com a mão disponível, arrancava pedaços de carne dos seus ombros, do braço direito, da nuca, do peito, das pernas, da papada do queixo, e os atirava para aqueles animais de estimação.

Depois, em pé, enfiou a mão cadavérica dentro da barriga e retirou um punhado daqueles bichos que fervilhavam, e os colocou no chão só para o gato preto, que devia ser o da sua preferência. Alisou o lombo do bichano e o chamou de companheiro.

Voltou a sentar, e mandou eu me servir de um conhaque bem amargo na cristaleira e disse o que precisava de mim.

Que os outros seis gatos, que chamou de candidatos ou aprendizes, que não me lembro agora, ficassem por ali se instruindo. Mas o companheiro, aquele enorme e orelhudo gato preto, eu o levasse comigo para a minha casa, e lhe desse toda a atenção e carinho. E que, de sobre a lareira, eu pegasse um livro antigo, aquele que tinha um olho esquerdo gravado com ouro puro, em alto relevo na capa preta de couro, e ficasse com ele. Me disse o Salomão, esse era um outro nome que usava, que naquelas páginas estava contido todo o conhecimento humano a respeito do amor, da beleza, e toda a sabedoria que um homem precisa adquirir na vida, para ser alguém justo e perfeito de verdade. Mas ainda, que eu me atentasse na profundidade das palavras que falam de liberdade, igualdade e fraternidade. Ainda me entregou uma espada de tempos imemoriais, dizendo que somente muito mais tarde, eu entenderia o seu significado.

Feito o pedido, a oferta e a entrega, o velho zumbi levantou-se da poltrona, fez dois ou três sinais com as mãos e pronunciou umas palavras misteriosas, abriu a porta da casa e desapareceu. Sumiu no ar, assim, de repente, como um pássaro que some no céu.

Cumpri as suas determinações e levei o gato, o livro e a espada para casa. E como era inteligente o companheiro; até conversava comigo, principalmente nas tardinhas de sábado, quando me forçava à levá-lo ao cemitério.

Lá, nesses dias, o doutor Ivo Lesbach, levantava um pouco a tampa da tumba e colocava na boca do gato um pedacinho de carne ou pele, que o bicho comia se lambendo.

Assim fizemos durante várias semanas, até que um dia apareceu só os ossos brancos do braço e da mão do morto-vivo, sinal que não havia mais carne. Foi quando o gato preto ficou em pé nas patas traseiras, e apontou, desafiador, as unhas em minha direção, e disse, arrepiando os bigodes: “ - o próximo será você!” - E saltou sobre o meu ombro, arrancando um pedaço de carne com uma forte e inesperada mordida. Cicatriz que carrego até hoje, como prova da veracidade do acontecido.

Num gesto rápido peguei o gato pelo lombo e o atirei para dentro do sepulcro, pelo vão que ainda estava aberto. Ficou lá, bem quietinho, junto com o seu mestre, e acho, que meu também.

Até hoje, anos depois, nas tardinhas de sábado, ainda ouço a voz do gato entrando por baixo da porta: “ - a tua hora está chegando! O próximo será você! Cuidado, muito cuidado com o fluxo e o refluxo das ondas do mar!”

Sei, que um dia ele vai acertar. Mas, tomara que o gato companheiro continue errando, pelo menos por enquanto. Entretanto, por cautela, nunca mais me aproximei das ondas, nem das areias do mar. Vai que vingue a profecia do gato.

Viram só?! Estão todos rindo, debochando, me achando ridículo, pensando que inventei esta história inverossímil. Eu sabia que seria bem assim, tanto é que avisei logo no início desta narrativa.

O certo mesmo, o melhor que se tem a fazer nesses casos do outro mundo, nessas histórias que lidam com o sobrenatural, é a gente ficar quieto e guardá-las em segredo, resistindo a tentação de contá-las à alguém, para não passar por mentiroso.

Mas, por outro lado, sei de certeza, que existe alguém por aí, que vai acreditar em mim. Pessoas, poucas é verdade, aquelas que sabem que nem sempre tudo termina com o enterro do falecido. Pessoas que acreditam que alguns corpos saem de suas covas, se transformam em zumbis e depois perambulam entre nós, com o propósito de terminar alguma tarefa importante, que pela súbita partida, ficara inacabada.

Ah, o livro do conhecimento? Li cinco vezes, sete talvez e desrespeitei a tradição, e não esperei me tornar defunto, para fazer a sua transferência. Ainda vivo, vivíssimo, o passei adiante, para outro que também, dele tanto precisava.

E a espada, quando querem saber da sua serventia, digo, que só recentemente, dia desses, descobri uma das suas utilidades. Aconteceu quando a retirei da bainha de prata, e li, gravada no extenso das duas faces da sua lâmina, a seguinte mensagem: “ meu caro e recente depositário. Tenhas sempre me mente que somos seres frágeis e provisórios. Nosso passeio por aqui é muito rápido. Devemos aprender que temos muito pouco tempo, e que, se não tivermos compaixão pelos nossos semelhantes, fracassamos como homens. Que somente a capacidade de perdoar nos imortaliza. E que é no amor que encontraremos a paz. Fora disso, a serenidade jamais nos visitará. E, não temas a morte. Porque é ela, e somente ela, que haverá de trazer em suas asas, o eterno voo da liberdade. Caso contrário, vagarás e perambularás feito um morto-vivo, até cumprires a lição. No mais, vivas bem e sem medo. Gostes dos teus amigos e das mulheres bonitas e dos bons vinhos, para que a tua vida não se transforme numa vidinha insignificante, parecida com um leve e transparente cisco, que caberá no universo de uma bolha de sabão. Jamais permitas que os teus sonhos sejam tão medíocres como o voo de uma galinha. E quando a mulher da tua vida aparecer, abra a porta do coração e deixe a felicidade entrar.”

Se melhorei com os ensinamentos do livro e com a mensagem escrita na lâmina da espada? Com certeza afirmo que sim. Além do mais, aprendi a respeitar os gatos pretos, e a ter a infinita desconfiança, que todo velho que vejo, vestido com terno, camisa branca e gravata com aqueles símbolos estampados, nas noites de sábado, pode ser outro zumbi, misturando-se no meio das pessoas.

Já me disseram que esses velhos vestidos de negro, pertencem a uma espécie rara de bodes engravatados, disfarçados de gente. Sinceramente, não acreditei muito nessa conversa. Bodes? Ora, bodes não podem ser! Para mim são apenas zumbis quitando alguma dívida ainda em aberto. Alguns, sábios, até, repassando antigos e valiosos conhecimentos.

Mas as vezes desconfiado, me pergunto: mas quem sabe, não seriam eles, espécies da mesma família do gato preto orelhudo, o afilhado do doutor Ivo Lesbach?

Agora, se forem zumbis graduados, bodes camuflados, ou gatos aprendizes e companheiros, não vos assusta. Eles são todos inocentes.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

O DUELO, O CONCURSO E O PRIMEIRO AMOR

Nos fundos do imenso pátio de uma antiga casa que eu morava, imerecidamente errei na mosca, já que muito havia treinado. Cheguei a sentir uma dor no lado e outra no braço e um formigamento no dedo, de tanto atirar. Eu não podia morrer naquele duelo criado na minha imaginação. 

Depois, fui para dentro de casa escrever. Eu tinha que acertar naquele conto. O concurso no colégio estava se aproximando e eu não tinha escrito nem uma mísera linha. O Carlito, meu adversário, se gabava para todo mundo que o dele estava ótimo, e que iria me vencer. 

Quando voltei da escola, depois de almoçar, voltei a treinar. Errei a mosca de novo, de novo e de novo muitas vezes outras. Mas é tão pequeno este alvo, pensei. Pequeno assim, nunca vou acertar. Posso aumentar a mosca ou me aproximar mais do alvo. Ou os dois. Escolhi a última opção. Aí acertei sempre na mosca. 

Voltei para casa, peguei a caneta e fiquei olhando para aquela folha de papel em branco. Quase dormi sobre ela, e nada de me aparecer uma ideia para o conto do concurso no colégio, entre eu e o Carlito. Éramos os finalistas. 

A torcida estava dividida. Uma metade torcia para o Carlito e a outra para mim. Mas a minha metade tinha mais gente, era muito maior, porque a Cida, o meu primeiro amor, me disse baixinho no ouvido que eu iria ganhar. Que eu era o seu poeta predileto. Me deu um beijo e depois sorriu bonito outra vez. 

Peguei um pedaço grande de papelão, fiz um desenho com carvão que parecia o Carlito, coloquei pendurado numa árvore bem próxima de mim e atirei. Acertei a mosca no primeiro disparo, e os outros, também. Fiquei tão confiante que voltei para dentro de casa. 

Segurei a caneta com força, espremendo a coitada, olhei o papel em branco e pensei na Cida que me amava e no amor que eu sentia por ela. E pensei que o Carlito queria namorar a Cida, e que ela me escolheu. Aquilo era amor dos bons mesmo! Me lembrei que eu já havia ganho o primeiro duelo contra ele, quando fiquei com a garota mais linda do colégio. 

Em seguida me veio na memória que há poucos minutos atrás eu havia liquidado com o Carlito, naquele outro duelo. Eu era de carne e osso, ele de papelão, mas isso não importava. O certo é que acertei na mosca várias vezes e deixei ele caído no chão, todo amassado, com as orelhas de abano que tinha, cheias de furos, saídos de minha espingardinha de pressão. 

Eu não podia decepcionar a metade da escola que torcia por mim, muito menos a Cida que era o meu amor. Já enxergava o auditório no terceiro andar lotado gritando o meu nome, e a Cida subindo orgulhosa lá no palco, me abraçando e me dando um beijo na boca. O beijo mais gostoso do mundo, que cheguei a sentir o gosto só de pensar. 

O problema é que eu continuava sem uma linha escrita. Ideia nenhuma me ocorria. Eu puxava pela cachola, segurava forte a caneta e a folha de papel continuava em branco. Mas, se eu já havia vencido as partes mais difíceis que foram os duelos com o Carlito, o conto seria o de menos. Me iludi. 

No dia anterior do concurso das duas histórias finalistas, pensei em desistir. Avisaria que me deu um branco, um bloqueio sem fim, e que não consegui pensar em nada que prestasse. 

Naquela angústia, me lembrei na decepção que a Cida iria sentir caso desistisse. Eu que fazia versos e dava todos para ela, que os guardava numa caixinha cor-de-rosa, com o meu nome escrito ao lado do dela, na parte de cima da tampa. 

Veio a noite, não dormi e chegou a madrugada, e nada. Estava quase amanhecendo, se aproximando a hora de ir para o colégio e enfrentar aquele maldito concurso. 

Foi então que recebi uma luz e escrevi esta história que vocês estão lendo agora; só para não chegar com as mãos abanando. 

No portão, a Cida me esperava. Veio e me abraçou, me beijou e me perguntou: “- trouxe o conto?” - Disse que sim, meio desacorçoado. 

Auditório cheio. O diretor mandou, e o Carlito leu o dele. Um continho mixuruca. Pedi para a Cida ler a minha história. Ela que lia tão bem tudo que lia, e eu que lia tão mal tudo que escrevia. E ela leu tão bem, que cheguei até a pensar que aquela narrativa, não era a que eu havia escrito. 

Ganhei com o texto aí de cima, que dias desses encontrei ao acaso revirando antigos guardados, só retirando e alterando, para esta crônica, este e os cinco últimos parágrafos que estão aí em baixo. Mas, achei que naquele dia, havia ganho o concurso, pela beleza, pela simpatia, pelo jeito de ler, e pela voz da Cida. Mas o fato é que ganhei. 

Subi no palco, abracei a Cida e dei um beijo nela. Todo mundo aplaudiu. Até hoje não sei, se pela história, se por ela, ou pelo nosso amor. Ou pelo conjunto ali apresentado. 

Naquele tempo eu tinha só 15 anos, e a Cida, 13. E que delícia era a vida, meu Deus do céu! 

Logo depois o tempo andou para frente e veio uma ventania azeda que mudou tudo de lugar. 

De ti, meu primeiro amor, nada mais sei. E eu? Eu continuo espremendo a caneta para esvaziar o que me vem na cabeça. 

E, a cada outono que chega, ainda me abaixo para apanhar uma folha de plátano, que amarela e acobreada, dança faceira uma valsa no chão, para ti usar como marcador de páginas, no livro de poesias, que de certeza, sei que estás lendo.

A VIÚVA

Começou com um formigamento na junta do dedo polegar da mão direita, que rápido evoluiu para o amortecimento total do membro. Quando acordou no outro dia estava com a mão inteira dormenta, que desfaleceu antes do anoitecer. Dormiu mais uma noite, e o Argemiro amanheceu com todo o braço direito desmaiado. 

A Glória, sua mulher há vinte anos, chamou o médico da sua confiança, o Doutor Montes Garcia, que receitou uns comprimidos e umas compressas com salmoura. E disse que o sintoma iria passar. Que o Argemiro não se preocupasse. 

Foi o médico dar as costas e o Argemiro gritou para a Glória, que agora o dedão do pé direito também adormecera. Após mais duas horas, a perna, do joelho para baixo estava como morta, para, logo, logo, toda ela também enfraquecer. 

Chamaram novamente o Dr. Montes, que trocou a medicação, por outra marca de comprimidos, e as compressas de salmoura, por outras com água quente. 

Assim que o médico despediu-se, o mal começou a atacar o lado esquerdo do Argemiro, na mesma sequência e intensidade que havia atingido o lado direito. Só que com mais rapidez. Polegar, mão, braço, dedão, pé, perna. Foi um violento ataque, repentino e simultâneo. 

Dessa maneira, assim do nada, estava o Argemiro com os membros superiores e inferiores totalmente anestesiado, para não dizer, falecidos. A Glória chamou o Dr. Garcia outra vez, que descartou a possibilidade de um derrame cerebral, aneurisma ou até de um indesejado tumor. Trocou os comprimidos por outros mais fortes, e que agora, as compressas deveriam ser com água gelada, revestidas com ataduras bem presas nos membros afetados. 

Quando o Dr. Montes Garcia já havia saído, o pescoço ao Argemiro entorpeceu. E a língua já dava sinais que estava pronta para perder a força. 

Desta vez, porém, o médico fez uma série de rigorosos exames, o que havia de mais moderno no campo científico, no corpo do Argemiro. Tirou a sua temperatura, mediu a pressão, bateu com os dedos no peito e nas costas, deu uma pancadas com um martelinho de ferro nos joelhos e mandou o Argemiro repetir com ele, as palavras, trinta e três, que, claro, não saíram. Só rosnava, o Argemiro, e babava queixo abaixo. Então, o Dr. fez uma expressão de sabido, demonstrando a orgulhosa satisfação de ter, enfim, descoberto o problema. Com segurança, trocou aqueles comprimidos fortes de antes por outros, que ele retirou da maleta, dizendo que vieram importados do Japão, e que eram os ideais para um caso como aquele. E que as compressas, agora, deveriam ser feitas com álcool morno. 

Feito tais procedimentos científicos, o Dr. Motes Garcia retirou-se, e o Argemiro, soltou um sonoro gemido, um urro, na verdade, e assim ficou, vendo tudo, até pensando, mas com o olhar endurecido. 

A Glória saiu para a rua, alcançou o Dr. Montes ainda na calçada, ali por perto. Veio uma nova série daqueles exames de ponta, revolucionários: temperatura, pressão, batidas no peito e nas costas, martelinho de ferro nos joelhos. Desta vez nem pediu para ouvir as palavras, trinta e três, tão fundamentais para a ciência médica. Todavia, receitou desta vez, que o Argemiro ingerisse, de uma só vez, um coquetel com todos aqueles medicamentos prescritos anteriormente, ou seja, só para lembrar os leitores: os comprimidos da primeira, os da segunda, e mais fortes da terceira consulta, somados aos da última, aqueles vindos do Japão, que foram engolidos com muito sacrifício. Drasticamente empurrados goela abaixo. 

E que todas aquelas compressas deveriam ser sobrepostas por tantas ataduras quantas fossem necessárias, e teriam que ser regadas com salmoura, água quente, água gelada e de álcool morno, tudo em uma única vez, numa espécie de tratamento de choque sobre o organismo no Argemiro. E que as ataduras precisavam ficar bem apertadas em volta do seu corpo, na forma de rigorosos torniquetes. 

O Argemiro, após ser submetido a todos esses rigorosos procedimentos científicos, ficou parecendo tal uma das próprias e legítimas múmias retirada de um sarcófago de uma das três pirâmides do Egito; só com os olhos duros e os cabelos de fora. 

Após cumprir com rigor todo o conhecimento adquirido nos estudos e na prática na ciência de Hipócrates, o nosso eminente doutor aproveitou para cobrar da Glória uma xícara daquele café puro e fumegante que só ela sabia preparar. Permaneceram na cozinha aos cochichos e distrações outras, além do tempo necessário e que o momento precisava. 

Pois o que estava para acontecer, aconteceu! O Argemiro sofreu um espasmo, uma convulsão, arrepiou os cabelos, fechou os olhos e respirou pela última vez. 

Quando voltaram da cozinha, abotoando os botões das suas roupas, o Dr. Montes e a Glória, ao entrar no quarto, quase riram, do corpo do Argemiro ridiculamente enfaixado com aquelas ataduras. E segurando uma discreta faceirice, ela quis saber do seu amante, qual teria sido, realmente a causa da morte do Argemiro. 

Lançando em direção aos olhos dela, uma piscada de olho maliciosa, respondeu: “ - Glória, minha querida, a medicina não tem respostas para todas as doenças humanas!” 

A Glória, afastou-se do doutor, foi até uma imagem da sua devoção e agradeceu o atendimento dos seus suplicantes pedidos. Acendeu um toco de vela, fechou os olhos e pensou: a viuvez repentina e prematura, é um dos maiores benefícios do casamento! 

Depois virou-se de frente e aproximou-se do médico; sorriram um sorriso de cumplicidade, trocaram dois ou três beijinhos pequenos e foram tratar do enterro, com a necessária pressa que a situação exigia.

O DILÚVIO

Manhã chuvosa. O rio transbordava. As águas barrentas desciam com violência arrancando as árvores das margens. Os ribeirinhos do vilarejo abandonaram suas casas e tontos, vagavam por perto, em vão, à procura de um abrigo. Fazia um mês que chovia. Os campos próximos estavam alagados dando água pela cintura. 

Diziam que era vingança e não havia nenhum Noé por perto; um Moisés que fosse! Desse tipo de gente, ninguém. Os pássaros e as aves migratórias se divertiam revoando em bandos, disputando a grande oferta de alimento. E as pessoas não tinham onde sepultar as crianças, os velhos e os fracos, porque a fome e as doenças também chegaram. Morriam igualmente aqueles que não aprenderam a comer carne crua. As plantações e as lavouras, do mesmo modo desapareceram. 

O cemitério ficou coberto pela enchente. Os cadáveres antigos e recentes, esqueletos e caveiras, e os bezerros recém nascidos boiavam junto com os bichos que não sabiam voar, dando banquete para os urubus e para os outros carniceiros. 

Móveis, panelas, colchões, roupas, quadros de santos e livros de orações flutuavam e se afogavam, emprestando àquela paisagem, a pintura do abandono, da mais pura devastação. 

Os habitantes do lugar, enfim se desapegaram, se uniram em caravana e decidiram subir em direção à distante coxilha para depois chegar até a igreja, e lá com o padre, pedir proteção no salão paroquial. Já que ele não não veio, iriam até ele, pensaram, com um sentimento profundo de falta de auxílio e proteção. 

Caminhada longa no meio daquele aguaceiro, embaixo da chuva impiedosa. Alguns deles, esmorecidos, já haviam ficado pelo caminho. Os outros se mantinham matando peixes a paulada e os comendo do jeito que estavam. Até que chegaram no cerro e depois, em procissão, se foram rumo à igreja. 

O padre quando viu aquele povo molhado e faminto hesitou em lhes dar abrigo. Ficou parado, pensando duas vezes. Foi então que do meio deles surgiu, movido pelo instinto de sobrevivência, pelo desespero e pelo desamparo, o Adão, que apontou uma faca para o pescoço do padre, e o obrigou a abrir, imediatamente, as portas do salão. 

É sempre assim: é nos momentos de situações extremas que surgem os grandes conflitos. É no desesperado esforço pela sobrevivência, que o ser humano expõe as suas virtudes que estavam guardadas, e também, é quando afloram as avarezas escondidas; e os feitos vêm ao mundo. É quando se fabricam as vítimas e se conhece o fingimento. O espanto, a surpresa, o frio, a necessidade, a fome, a coragem e o medo, derrubam os penachos, as fantasias e as máscaras. Nessa hora, fica-se nu. Somos apenas quem somos. É quando somos reais: valentes, covardes ou mesquinhos. É quando mostramos para que nascemos. 

O padre, refeito, quis rezar pelos mortos e para alimentar a alma daquela gente. Antes que começasse o Adão gritou: “ - é fome padre! É fome nas tripas, padre! É fome no corpo, padre! Esse povo está morrendo é de fome, padre! Agora não é hora para conversa. É hora de comer, seu padreco de meia tigela!” 

O Adão, mais um grupo de homens foram até um potreiro atrás da igreja, e abateram as duas vaquinhas e as cinco ovelhas, que por simbolismo, o padre mantinha, mais o burrico que usava nas peregrinações atrás de donativos. 

Quando viu aquela carneação o padre gorducho de rosto rosado, armado de um revólver partiu para cima do Adão, gritando que aquilo era roubo e sacrilégio. E que roubo e sacrilégio eram pecados. E que para essa espécie de transgressão, jamais haveria perdão. Era inferno na certa. E que fossem procurar comida noutro lugar. 

Antes que o padre disparasse a arma, saltaram sobre ele, e uma faca vinda sabe-se lá de que mão, degolou o padre, de orelha a orelha. O sangue se misturou ao dos animais que estavam sendo carneados. 

Nem esperaram terminar de assar aquelas carnes, e comiam e engoliam pedaços inteiros que faziam um caroço na garganta antes de descer rumo ao estômago. 

Faltou carne. Mataram as galinhas, os patos, os gansos, que sapecaram nas brasas e comeram apressados, antes do ponto. 

Faltou carne. Mataram os pombos com as armas de caça que tinham, e os comeram depois de apenas queimá-los levemente por fora, nas labaredas do fogo de chão. 

Faltou carne. Foram na despensa da casa do padre e comeram tudo que ali havia: queijos, salames, marmeladas, figadas, pessegadas, rapaduras, compotas, frutas cristalizadas, passas diversas, castanhas e amêndoas sortidas. E beberam os conhaques, os vinhos e os licores. 

Faltou comida. Foram na horta e comeram tudo que dava para ser aproveitado. Depois foram no pomar e arrancaram todas as frutas maduras. E as nem tanto, também. 

Faltou comida, era muita gente. Precisavam de mais comida. Muito mais. Mais carne. 

O Adão olhou em volta e não viu mais animal nenhum. Enxergou o corpo do padre ali deitado com o talho escancarado na garganta. 

Restou a batina estendida, vazia, ao lado dos couros descarnados das vacas, das ovelhas e do burrico, ali no chão sangrento, cobertos de moscas varejeiras. 

E lá do lado da enchente veio um pássaro, uma pomba, quem sabe, trazendo um raminho verde preso no bico. Quarenta dias depois!

A MILAGROSA FUMACINHA AZUL

Primeiro o Ariosto sentiu um arrepio. Depois uma coceira ardida no nariz que se espalhou por todo o corpo, como se fosse uma urticária generalizada, seguida por uma série de espirros. E uma tosse meio melódica, até bonita de escutar. E cada vez que tossia saia uma fumacinha azul pela boca. E começou a dizer palavras e frases que ninguém entendia; mais a barriga que estufou. 

A seguir, os livros da estande se mexiam sozinhos, a xícara do café andava em círculos sobre a mesa, e a caneta escrevia por conta própria. Até a samambaia despencou do teto e saiu voando janela afora. 

Dias depois começou a conversar com o Tupi, o cachorro da família. E um entendia perfeitamente o que o outro queia dizer. O gato preto Nicolau olhava para o Ariosto todo desconfiado, rilhando os dentes e botando as unhas para fora, cada vez que via sair aquela fumaça azul da boca do seu dono. Era o Ariosto se mexer no sofá e o gato se levantava, ouriçando os pêlos do lombo e esticando os fios do bigode, em posição de defesa ou de ataque, dúvida esta que ninguém nunca soube explicar. 

Os exames deram negativo e os médicos disseram que não era nada, que logo passaria; que assim como apareceu, logo iria embora. Que seria algo assim como um resfriado; uma gripe no máximo. E que não se preocupasse com a tal da fumaça azul; que aquilo deveria ser um problema de gases, uma fermentação estomacal passageira, que se atrapalhou com o itinerário, e errou o local de saída. 

Voltou para casa, e a noitinha, uma senhora idosa, vizinha do apartamento ao lado sentada na sua cadeira de rodas, apertou a campainha. Assim que o Ariosto apertou a sua mão, tossiu e liberou pela boca a fumacinha azul, a velha ficou boa. Pulou da cadeira de rodas, parou em pé, e saiu pelo corredor gritando, milagre, milagre! Aconteceu um milagre! 

Pronto. Naquele momento começou a se espalhar uma fama que não parou mais de crescer. Apareceu gente doente de todo o bairro, da cidade, e com o tempo, de outras cidades e dos países próximos, atrás de um milagre. Vinham só, em grupos, e em numerosas caravanas. 

Logo, logo, o Ariosto teve que sair do apartamento e ir para uma chácara para poder atender tanta gente, até porque, o transtorno no prédio virou caso de polícia, sem contar que os corredores do edifício e as calçadas em frente se transformaram em um verdadeiro depósito de muletas, cadeiras de rodas, andadores e outros apetrechos, além ataduras, tipóias e curativos sujos de sangue. Uma bagunça. 

Com a fama adquirida, a mulher, os filhos, os genros e as noras, os irmãos, os sobrinhos e outros achegados, enfim, a família toda trabalhava organizando filas, fazendo segurança, vendendo garrafadas milagrosas após as consultas. Ajudavam nos restaurantes e lanchonetes e fazendo propaganda, distribuindo panfletos e santinhos com a foto do Ariosto expelindo a famosa fumacinha azul pela boca. 

Bastava o Ariosto apertar a mão do paciente e tossir a fumaça azul e a cura estava feita. Assim, simples. E não se cansava o Ariosto. Dotado de uma energia sobrenatural atendia à todos 24 horas por dia. Não precisava dormir. Em nada lembrava aquele sedentário funcionário público aposentado, sem ânimo, preguiçoso, que antes vivia roncando no sofá e assistindo novelas na televisão. 

Com tanto movimento, a família foi ficando muito bem de vida, já ultrapassando os limites da riqueza para entrar no terreno pitoresco dos milionários. Jornalistas de rádios, jornais e televisões dos mais distantes recantos vinham cobrir aquele mistério. Entrevistavam, fotogravam e filmavam toda aquela ação, dando preferência, é claro, para o momento da tosse, que traria em seguida a tradicional e tão esperada fumacinha azul. Afinal, todos sabiam que o poder da cura vinha não do aperto de mão, nem da tosse, mas da bendita fumaça azulada. 

Os negócios iam de vento em popa, até que um dia (sempre tem um dia), que o Ariosto pegou uma gripe malvada, daquelas de difícil solução. Caiu de cama e tossiu, tossiu tanto que chegou a um ponto que só saia o barulho da tosse, e a fumacinha que era boa, sumiu, desapareceu. Só tossia uma tosse escandalosa, encatarrada, molhada, mas a fumacinha, nunca mais. 

Depois que sarou e sem a fumacinha azul, acabaram os milagres, a clientela sumiu, a chácara ficou deserta, e a família se entristeceu, e a barriga do Ariosto encolheu. 

Por todos os meios, queriam porque queriam obter uma resposta para aquele súbito abandono, até que apareceu um ser com aparência de ter vindo do outro mundo, que bateu na porta e perguntou para o Ariosto: “ - Alguém viu por aí o meu fantasma azul de estimação?” 

O Ariosto deixou o queixo cair amolecido, com a língua para fora, meio abobado. Aí foi que se deu conta, que há três meses atrás havia engolido um fantasma curandeiro. E percebeu que aos poucos, a cada vez que tossia, botava para fora um pedacinho do fantasma. Aquela fumacinha azul que saia, na verdade eram as partes etéreas do corpo daquela alminha benfeitora.. 

Antes de fechar a porta, o Ariosto perguntou para o sujeito estranho: “- se encontrar ele por aí, você me vende o fantasminha? É que me fazia um bem danado, aquela milagrosa fumacinha azul!”