sexta-feira, 26 de julho de 2013

CAIM E ABEL

“ - Os homens são todos iguais. O que os diferencia é a maneira como praticam as suas crueldades; o ânimo oculto, porém feroz, que usam para atingir os seus objetivos. Os interesses pessoais são poderosas armas de guerra. A vida é um campo de batalha formado por exércitos de homens solitários. Somos bilhões de indivíduos lutando por ambições várias; de poder, de glória, de riqueza, de posição social; desde um prato de comida para saciar a fome, a mais elevada projeção de fama. Fera é o que somos. Invejamos do outro, a casa, o automóvel, a profissão, a família, a felicidade, a inteligência, o talento. E cobiçamos esses bens e dons, e destruímos honras e vidas por eles. É quando se instala o ciúme patológico que envenena a alma, que leva o coração humano para as trevas, que turva os olhos e transforma o homem num bandido. E vai se esforçar ao máximo este homem, para derrubar aquele que enxerga diante de si mais afortunado, começando o ataque com as balas quentes da calúnia, da injúria, da difamação; mentiras, intrigas e traições. Depois, mais adiante, ainda insatisfeito, dentro de um plano sórdido, vai em busca dos meios finais para o completo aniquilamento do seu semelhante, aquele, o alvo da sua mesquinha tentação. Está lá, no livro de Gênesis 4,8, que trata do primeiro homicídio...” 

Este é um trecho da carta que o Vicente deixou sobre os corpos, confessando a autoria daquela tragédia, antes de retirar-se em fuga, para tornar-se um miserável, estranho e maldito peregrino sobre a terra. 

O Inácio se fez na vida por suas próprias forças, sem apadrinhamentos, abaixo de indizíveis sacrifícios. De família humilde acreditou que os estudos salvariam sua vida. Trabalhou como auxiliar no departamento jurídico de uma grande empresa multinacional. A seguir, pelo talento demostrado subiu; quando ainda muito jovem, tornou-se chefe deste importante setor. 

Rapidamente adquiriu renome e reconhecimento em sua profissão. Seu nome ecoava pelos quatro ventos no meio jurídico e empresarial. Casou-se e teve dois filhos que dava gosto de ver, pela vivacidade que demonstravam. Também, o Inácio presenteou seus pais com uma casa confortável, onde foi morar com eles, seu irmão mais velho, o Vicente, que da vida, além de farrear e dormir, nada mais desejava. Sequer o curso de direito patrocinado pelo Inácio, concluiu. Mas despertava algum interesse nas pessoas por uma certa inteligência que por vezes lhe visitava. Porém, uma inteligência xucra, dispersa, sem aplicação, inútil. 

O Vicente se remordia de ciúmes pelo êxito do irmão. A inveja cresceu, transformou-se num monstro e virou doença. E a doença sentiu sede de sangue. E pronto para ser bandido esperou a chegada de uma data especial que se aproximava para executar o intento diabólico que incendiava na sua alma. 

Natal de 1991, se não me engano, no apartamento de cobertura do Inácio, a família estava toda reunida. Pai, mãe. Inácio, a mulher e os dois filhos; uma pequena dupla de anjinhos, donas das melhores esperanças que um casal pode desejar. Todos esperando a meia-noite para a tradicional ceia e a tão esperada troca de presentes. Menos o Vicente, que ainda não havia chegado. 

Conversavam, agradeciam e comemoravam a vida feliz que levavam, graças a ascensão pessoal e profissional do Inácio. Os tempos duros haviam, definitivamente ficado para trás. 

Os foguetes espocavam no ar, os fogos de artifício iluminavam o céu fazendo desenhos multicoloridos e os espíritos se aconchegavam em festa pelo belo momento que se aproximava. 

Toca o interfone, depois a campainha. Entra o Vicente com semblante de inimigo, que de imediato fecha a porta com violência, saca a pistola da cintura e atira no Inácio e na sua mulher, que foram recebê-lo. Após, avança sobre o seu pai e a mãe e os abate no meio da sala. A seguir liquida os dois meninos, um com seis e o outro com quatro anos. 

Senta no sofá, abre um espumante, permanece com os olhos endurecidos, observando o estrago feito. 

Passou mais um pedaço da noite comendo e bebendo enquanto posicionava os corpos, sentados um ao lado do outro, como se os ajeitasse para uma pose à ser fotografada. Colocou os braços dos mortos de maneira que ficassem abraçados, e as duas crianças, deitou uma no colo do pai, a outra no colo da mãe, como se dormissem protegidas. 

Olhou ao redor da base do pinheirinho e viu além de tantos, seis pacotes com o nome “Vicente”, escrito com letra bonita. Deixou-os onde estavam, deu de mão num papel e escreveu a carta de confissão. Abriu a porta para sumir no mundo. 

Após ler a carta deixada pelo Vicente, e diante daquela cena de horror, a delegada de polícia falou para um policial ao seu lado: “ - a vida, por vezes, insatisfeita com as dificuldades que apresenta, meio que ciumenta da arte, resolve superar a ficção. Desta vez, esse Caim não se contentou apenas com a morte deste Abel. Conseguiu ser mais cruel do que o outro; aquele das escrituras!

quinta-feira, 18 de julho de 2013

CAMILE

Tal qual as últimas tardes de sábado, meio sem jeito, bateu na porta da casa e foi recebido pela Camile. O pai e a mãe se recolheram para o quarto. Sentaram no sofá e ele pode ver outra vez, as pernas douradas, os seios empinados, o rosto rosado e a boca vermelha que devia ter gosto de pitanga madura. E diante daqueles olhos tão azuis, vivos e úmidos, não de lágrimas, mas de umas águas que atiravam os seus pensamentos rio adentro; nas águas de todos os rios, mares e oceanos do mundo, que afogam e lavam as ânsias, as aflições e as repugnâncias; que purificam das impurezas os corpos sujos de culpadas orgias; que apagam e iluminam as esperanças; que matam e trazem a vida; que modificam o estado íntimo das almas, pensou: - ando atrás de ti Camile. Sempre na tua busca, sempre te procurando, coração meu! 

E a Camile provocante, com minúscula saia que muito pouco escondia mostrou a calcinha transparente; véu dos hereges que deixava ver os contornos e a viva cor do templo de cobiça e adoração dos pecadores, daqueles que não buscam perdão. Exibiu, com os joelhos levemente afastados, o endereço que abriga a fenda sagrada que movimenta o mundo. O poderoso cofre que arrecada bilhões dos profanos e daqueles que já nasceram santos. Te queremos para viver e para morrer. Por ti trabalhamos, sofremos; lutamos e competimos. Em teu nome perdemos e vencemos batalhas, e em ti nos deleitamos. Por ti matamos; por ti morremos. Oh, Camile! Oh, mimosa flor! 

Quase afogou-se nas ondas daquelas águas. Nadava em sonhos delirantes, naqueles desejos malvados não satisfeitos, que jamais se acalmariam. E nada fazia. Não agia. Apenas olhava e pensava: “ - se não morri ainda, porque não me matas logo para me salvar, para me libertar dessa escravidão, Camile?” 

Mata-me logo, Camile! Já nem preciso entrar em tuas águas; nas doces e nas salgadas águas tuas. Basta te olhar, e só. Podes me matar! E sorria aquele sorriso bobo sem ter coragem de ao menos pegar na mão da guria. 

Pensava na sua covardia, mas pensava que havia de morrer antes que aquelas águas chegassem ao seu destino; no rio profundo, imenso, invencível, soberano. Ora, se não dominava, ali, aquelas águas poucas, em formação, quando chegassem no rio e depois no mar - o dono de todas as águas indomáveis -, então, é que nada conseguiria. Quem não navega em águas calmas, não é em rio e oceano revolto, que irá navegar! 

Camile foi até a geladeira, lhe serviu um copo de água, abriu a porta da casa e disse boa-noite; que esta recém chegava. Obediente ele foi embora. Depois, ela trocou de vestidinho, soltou os cabelos, perfumou atrás das orelhinhas, pintou a boca, sorriu para o espelho, e sobre delicadas sandálias prateadas de saltos bem altos sumiu por baixo da lua. 

Se enfraqueceu naquela noite, deitado, solitário, pensando na Camile nua. Na Camile que fervia por dentro de tanta juventude com suas águas recém inauguradas. Ele que não acalmaria sozinho as quenturas da Camile. Ela que parecia pertencer a todos os homens da terra. Ele que seria pouco para a Camile. Disso sabia. Maldita certeza! 

Camile com 19 anos, sempre de vestidinhos novos, bem coloridos, um palmo acima dos joelhos, mostrando os pelinhos macios, fininhos de ouro puro que brotavam nas suas coxas; duas tranças que brilhavam quando o sol aparecia, e um sorriso de boneca marota desenhado naquele rosto encantador, que somado ao conjunto da sua exuberante pessoa, era capaz de destruir juramentos severos, de eterna fidelidade, no mais monogâmico dos homens. 

Todos os dias, logo após o almoço saía de casa bem arrumadinha, com jeito de moça bem comportada, de cabeça baixa sem olhar para ninguém, apertando uns livrinhos contra o peito, mostrando que de noite estudaria, após o seu turno de trabalho. 

E mais vestidinhos novos e umas correntinhas e umas pulseirinhas e uns aneizinhos e uns reloginhos e outras joinhas, tudo sempre amarelinho, bem da cor dos seus pelinhos, e dinheiro de sobra para melhorar as compras da casa. E voltava tarde da noite com a fisionomia cansada, corpo abatido; porque trabalhar e estudar cansa quem estuda e trabalha. 

Seus pais, gente simples e ignorante que vieram tentar a sorte na cidade, se orgulhavam da Camile, que trabalhava e estudava tanto e que se vestia bonita com roupas tão alegres e que já quase sustentava as despesas da família. Bem diferentes das outras mocinhas do bairro pobre onde moravam, que engravidavam adolescentes, de namorados sem futuro, sem passado, sem presente. 

Um dia Camile apareceu dirigindo um automóvel. Pequeno, mas um automóvel. Que inveja a Camile causou na vizinhança. E que satisfação para os pais. 

Todos se perguntavam: “ - como pode, tão rápido a Camile subir tanto na vida?” E também respondiam: “ - vai ver porque é tão bonita!” 

Ele reapareceu. Agora como cliente. Única forma de navegar naquelas águas.

SENHORA

Ah, senhora, deusa dos meus sonhos, por que sempre me olhas com esses olhos mundanos, lotados de tantos desejos guardados? Por que, quando passas por mim mordes o lábio inferior e lambes a boca com a pontinha da língua? Por que senhora? Por quê? Saiba, que por sua causa não consigo mais dormir. Fico deitado no escuro de olhos abertos, pensando no seu corpo, na sua boca, na pontinha da sua língua; em toda a sua perfumada intimidade. Fico delirando, com febre até, que estamos encerrados no seu quarto, sobre os lençóis macios, que imagino que usas. Aí surge o seu marido nos meus devaneios, enfiado naquela farda verde, com o rosto endurecido, brabo, mais aquelas temíveis estrelas de capitão. Então, esfriam todas as minhas ambições. 

Oh, senhora, se ele imaginasse tudo o que me passa pela cabeça! O capitão me mataria se lesse os meus pensamentos. Ele me mataria! Mas também lhe mataria se visse como a senhora fica quando passa por mim. Mataria nós dois, aquele monstro insensível, que desconhece o íntimo significado da palavra, desejo. 

Para ser bem sincero, senhora, já ensaiei mil vezes; mais, muito mais, um milhão de vezes, um jeito, uma frase, uma única palavra, para lhe dizer. Mas acontece que quando chega a hora, me vem um medo, uma timidez, um acanhamento; fico mudo e passo reto, só olhando para toda a sua formosura, principalmente para os seus lábios e a pontinha da sua língua cor-de-rosa, que me dá uma vontade de mordê-la, de engolir aquele pedacinho. E depois vou para casa sonhar, trancado no banheiro. Minha mãe grita, sacode a maçaneta, fica intrigada com a minha demora, que desconfio que ela já descobriu qual o motivo, porque quando abro a porta, estou branquinho, pálido, quase transparente, com olheiras denunciadoras dos meus atos secretos, de pura homenagem para a senhora. 

Esqueça das leis, senhora, dos seus temores, e parta para a ação. Tenha a iniciativa e venha falar comigo e tome posse de mim. Afinal, a senhora já tem 30 anos e eu só 14, que se completam em agosto, daqui a dois meses, portanto. 

Então venha, já que é a senhora quem entende dessas coisas. Eu, eu apenas imagino como se faz, porque fazer fazendo mesmo, quem sabe é a senhora. Venha, me pegue pela mão, me convide para passear, me faça entrar no seu quarto e me ensine um pouquinho de tudo aquilo que a senhora conhece. Me forneça, por favor me forneça, apenas uma gota da experiência que és dona. 

Se a senhora sair uma vez só, só uma vez comigo, nem pecado vai ser. Porque estará apenas ensinando os segredos do amor, para um inocente menino, ainda analfabeto na linguagem muda, aquela que acontece, quando os corpos de uma mulher e de um homem, se encontram para valer. E que agora preciso desesperadamente aprender. Como será nobre de sua parte, tão grande gesto. Até os céus, com todos os seus habitantes lhe aplaudirão. 

Imploro de joelhos: me tire deste sonho, que já não é mais sonho. Que é um doloroso pensamento que só me machuca, me consome e me faz sofrer. E, eu sei também, pelos seus modos, que a senhora vive sonhando em me ensinar. 

Coragem senhora! Venha! Senão, na próxima vez que passar por mim, aqui na nossa rua, juro que vou me animar de verdade, e vou parar na sua frente, juro que vou, e perguntarei olhando nos seus olhos, morrendo de medo e vergonha: “ - vamos?” E sei de certeza, que a senhora, que está muito necessitada em ser minha professora, neste dia, dirá: “ - vamos logo, menino bonito!” 

E por este dia que nunca chega, morro de ansiedade. E também morro de raiva de mim mesmo, por ser um fraco covarde, que na hora de convidar a senhora, perde a determinação e não consegue pronunciar esta palavrinha tão fácil de dizer: “vamos?” 

Veja só! Hoje quando acordei, assim do nada, décadas depois, me lembrei disso tudo. E me recordei, tão vivo como se lá estivesse, da senhora sentada na cama do seu quarto, completamente nua, com os seios em pé, desabotoando a minha camisa, baixando a minha calça. E escutei a sua voz repetindo: “ - Agora sim, chegou a nossa hora! Vem cá meu amorzinho!” E eu tremendo na frente da senhora, sem saber o que fazer, nem por onde começar. E lembrei com doçura na alma, das suas mãos macias e dos seus lábios quentes e úmidos, desfilando habilidosos pelo meu corpo, que inquieto pulsava em contrações, vibrando com os impulsos provocados naquela deliciosa atividade. E a senhora, a dona da situação, transformou-se numa graciosa bailarina, que através de movimentos precisos, dava a cadência exata para aquele secreto bailado. 

E tudo isso porquê, no meio de uma tarde ensolarada, a senhora criou coragem e parou diante mim e mordeu outra vez o lábio inferior e lambeu a boca com a pontinha da língua e me disse baixinho, gostoso de ouvir: “ - vamos, meu menino?” 

Nunca ninguém teve; só eu tive uma professora tão bonita e tão dedicada quanto a senhora, naquelas aulas que muito frequentei, e tão assíduo que fui. 

E também me veio na memória, a tristeza que notei, vermelha no seu rosto, e que senti, fervendo no meu, do momento em que a senhora foi de mudança para o Rio de Janeiro. Pois que inventou, o insensível do seu esposo, dono de uma alma de pedra, de aceitar transferir-se para tão longe. Dessa forma, quase me matou aquele capitão. Pensei em desaparecer do mundo. 

Assim, com o coração arrebentado, daquele dia em diante, odiei para sempre esse pessoal que anda fardado de verde. Eles que são propensos a esses inesperados deslocamentos; quando desumanos, a sangue frio e sem consentimento, levam embora os amores da gente. 

Porque, deveria haver pena de morte para o desalmado, que parte em retirada, com a namorada de um menino apaixonado!

A VIRGINDADE DA CORINHA

Disse por cima do muro para vizinha: é muito passado esse moço que namora a minha filha. Deixa a conversa de lado para ficar mexendo nas tetas da guria. E o danado não se contenta por ali: apalpa, revira, mexe e remexe em tudo que está guardado. Levanta a saia dela, passa a mão por baixo, como se estivesse conferindo o interior de um baú que esconde precioso tesouro. Depois cheira as pontas dos dedos, o relaxado. 

Continuou a dona Cacilda: se ele não fosse oficial do exército, proibiria esse namoro. Não teria mais noivado nem casamento. Mas bom partido que é, até tolero essas bandalheiras. Pensando bem, não é por mal que age assim. Isso deve ser coisa de rapaz que veio da cidade grande. Lá os costumes são mais adiantados, é onde tudo acontece primeiro. As novidades demoram para chegar por aqui. Dizem que é lá na capital onde fabricam a modernidade. Só pode ser isso! 

Sabe vizinha, é tão avançado esse rapaz, que outro dia surpreendi os dois deitados no sofá. Um horror! Tão inocente a coitadinha e já passando por essa vergonheira toda. E eu sei que não posso atrapalhar esse namoro, porque tenente é tenente, com uma vida de promoções pela frente. Vai que um dia chegue a general. Nossa Senhora do Céu terá então, escutando as minhas preces. Enfim, a minha filha estará feita na vida. É como acertar na loteria! Dessa forma, deixo, me faço que não vejo, que não me importo. Se for para o bem do futuro da Corinha até de cega eu me faço, porque essa guria precisa casar logo, já está com 25 anos; depois fica encalhada, para titia, a pobrezinha! 

Mas que ela não engravide antes do casamento! Isso não! Imagina o falatório dessa gente fofoqueira. Irão dizer que eu não soube educar a minha filha. E as irmãs do falecido então: cruzes, nem é bom pensar. São capazes de me crucificar, de me enterrar viva, aquelas megeras. 

Já falei para a Corinha ter muito juízo. Nada de muitos avanços. Nada de muita exploração nesse campo tão perigoso. Mexer nas partes até pode deixar; mas um pouquinho só, bem de vez em quando, o suficiente apenas para acender a vontade nele, mas aquela intimidade bem íntima mesmo, de jeito nenhum. Só depois do casamento. É preciso sabedoria, vizinha, uma estratégia de guerra, para manter por perto, sem espantar um pretendente desse quilate. 

Sempre digo para a Corinha: uma mulher para casar não pode facilitar as coisas, não pode ficar falada; não pode ceder aos caprichos e vontades do namorado e do noivo também. Uma moça honesta leva a virgindade para o altar, como se fosse um troféu à ser oferecido para o marido. É a caça que mais interessa para esse caçador. Se inventar de perdê-la antes de casar, o sujeito usufrui um pouco e depois vai embora, e a mulher vai ficar por aí, perdida, desfrutada. Depois, os outros homens só vão querer se aproveitar da infeliz, e casamento que é bom, nunca mais, adeus. A Corinha sabe que é a virgindade, e apenas ela, o passaporte que pode levar uma moça para uma vida honrada, familiar e feliz. Sem ela, nada feito. Namoro sério, sem virgindade, só se for de mudança para a capital. 

Eu queria mesmo era que a Corinha casasse com um filho de fazendeiro. Mas como esse nunca apareceu, vai um tenente mesmo, afinal, têm muito futuro esses moços oficiais recém saídos das Agulhas Negras. 

Agora, cá entre nós, vizinha, como é bom esses agarramentos. Depois que o Dioclécio faleceu, vivo na seca, só lembrando de tudo que ele fazia. Me dá uma saudade que chego a tremer por dentro. Me corre umas águas que nem sei de onde vêm. 

Vizinha de deus, tenho que falar, a Corinha é uma moça muito responsável. Sabe onde quer chegar. Segura com determinação aquela vontade. Se morde pelos cantos da casa, perde o sono, se revira na cama, perde o apetite, tem tremores e calafrios, suores e febre alta; sofre a coitadinha, mas não cede os pontos. Ela sabe que o futuro dela depende da sua virgindade, que deve ficar presa e bem guardada; protegida em segurança máxima, com as pernas bem grudadas uma na outra. No mais, a minha menina faz promessa para o Santo Antônio, e fica na sua cadeira de balanço, bordando lençóis, fronhas, colchas e guardanapos; preparando o enxoval, entortando a agulha, perdendo temperatura. 

Essa conversa da dona Cacilda com a sua vizinha aconteceu um mês antes da Corinha ter sido arrastada para uns matos, para ser estuprada por um caboclo que passava pela cidade. 

O tenente nunca mais apareceu.

DESEJOS, LEMBRANÇAS E SONHOS

Noite dessas sonhei com um momento da minha infância. Através deste fenômeno maravilhoso, o tempo andou para trás e fui ser criança outra vez. 

E lá estava eu de calças curtas cortando os campos a galope montado no meu cavalo Estrela, numa amorosa parceria. E o cachorrinho Brinquedo, branco como um novelo de nuvem, correndo atrás, querendo nos acompanhar. 

Depois, entrei no meu Rio Irapuá e nadei nas suas águas cristalinas. E no sonho eu não apenas nadava. O meu corpo deitado sobre a água, semelhante a um pequeno barco a motor, deslizava veloz na superfície, que descia mansa rumo ao Jacuí. Assim percorri as margens, as prainhas, os pesqueiros e os recantos que tão bem conheci quando ainda era menino. Que bela sensação senti. Que alegria, que vivência de liberdade o sonho me devolveu. 

Antes de acordar, ainda absorvido pela viagem onírica, pedi para o sonho que ele não acabasse. Que eu nunca mais saísse de dentro dele. 

Mas, como sempre acontece após um sonho bom, quando acordei, me bateu uma tristeza, e fiquei na cama de olhos fechados, dando continuação com a lembrança, naquele período doce da minha vida. Da natureza intocada, das matas que costeavam o rio e as lagoas, onde as aves de porte e os passarinhos, junto com todos os outros animais viviam sossegados. Fiquei triste de lembrar daqueles campos; um infinito oceano verde coberto pelo céu azul, que mais azul nunca mais vi, e nunca mais reencontrei. 

Ainda de olhos fechados recordei das brincadeiras, dos jogos de bola, o movimento do gado, da escola rural, dos colegas; das meninas e dos meninos. Dos causos de galpão, das frutas do arvoredo, do medo de assombração; dos desejos todos que eu tinha. E feliz, me lembrei da vontade de crescer logo, para namorar pela primeira vez. 

Deitado, e querendo sonhar de novo, senti na boca o sabor dos doces que a minha vó fazia num velho tacho cigano. Consegui encontrar novamente com a minha mãe, jovem ainda e muito bonita. E enxerguei nós dois estirados, um ao lado do outro, cada um com o queixo apoiado na concha da mão, sobre um acolchoado no assoalho da sala, quando ela, com paciência e zelo, lia as histórias dos livros para mim. De onde teriam vindo tão grandes e inesquecíveis momentos, se não saídos das doçuras do amor? A minha mãe lendo e eu viajando com a imaginação, junto com os personagens do Lobato, nas aventuras do Júlio Verne e nos sonetos do Alceu Wamosy e os do Bilac, este o poeta preferido dela. Mais os lugares distantes e exóticos que visitávamos, retratados nas belas fotos e reportagens que a revista O Cruzeiro trazia. Nós ali fabricando sonhos, quando eu, e acho que a minha mãe também, nem imaginávamos da importância que aqueles momentos teriam na minha vida. 

Não quis abrir os olhos. Aquela viagem iniciada pelo sonho daquela noite, e depois perseguida pela memória, não podia terminar. Então, recordei do meu pai escutando no antigo rádio de válvulas, os tangos vindos da Argentina, os noticiários e os jogos de futebol. E eu, inocente, imaginava que todas aquelas vozes de todos os que cantavam e falavam, vinham de pessoas em miniatura que viviam dentro do aparelho, mais os jogadores, que de certeza, por lá habitavam. Lembrei do dia que perguntei para ele, intrigado: “ - pai, como é que cabe tanta gente dentro deste rádio?” 

Após essa última lembrança, tive que abrir os olhos e sair da cama, porque a realidade estava muito apressada e ordenou que eu reagisse. 

Depois que terminou a minha infância viemos para a capital, para a gente estudar. Bem, aí começou outra vida, com outras descobertas; novos encantamentos, rios de surpresas, que não servem para este momento. 

Mas, sempre que olho para trás sinto ciúme daquele período. Uma nostalgia pelo paraíso perdido. Agora, já tanto tempo passado, quando revisto a minha infância, em silêncio, quase suplicante, peço para aquele menino que fui: “ - ei guri! Me dá uma mordida do teu doce. Me dá um gole da tua água. Me dá um pedaço do teu abraço e sorri para mim outra vez. Me dá um pouco dos teus sonhos e vem brincar um instante comigo. Um instantinho só, que eu já fico morrendo de contentamento.” 

E insisto nos pedidos, para que ele me ajude a encontrar tudo aquilo que ele tanto desejou, porque já é fácil eu me perder, e abstraído não sei onde procurar. Mergulho tão fundo nos afazeres da escrita, que me atrapalho com as coisas simples e a minha vida se desgoverna. 

Então, peço que ele nunca me abandone, e que não esqueça de me presentear, de quando em quando, com algumas gotas perfumadas, da sua alma tão querida. 

E se o menino da minha infância, não ficar ofendido por tantas solicitações, ainda lhe peço, que continue me trazendo, também, enquanto durmo, esses pedacinhos coloridos de vida, esses retalhos mágicos de lembranças daquela época tão boa de ter sido vivida. 

Assim sendo, não morreremos, e viveremos um no outro. Ele sobrevivendo em mim, e eu não permitindo que ele morra. 

Enfim, seremos um só!

sexta-feira, 5 de julho de 2013

PONTOS DE VISTA

Dois amigos escritores, o Tom e o Vinícius, se encontraram pela terceira vez num boteco para finalizar um texto sob encomenda, que estavam escrevendo em parceria. 

Só faltava para concluir a obra, escolher entre duas palavras, aquela que desse mais ritmo e sentido para a frase final. 

Empacaram entre aquelas malditas palavras e nada de conseguirem decidir por uma delas. Já haviam discutido nos encontros anteriores, quase brigaram, até que resolveram tentar naquela noite, mais uma vez. 

“ - Afinal, vai ficar complexo de culpa ou sentimento de culpa? É “complexo” ou “sentimento”? Qual delas se encaixa melhor? “Quis saber o Vinícius.” 

“ - Que merda. É tudo quase a mesma coisa. Ninguém vai notar diferença. Os leitores que irão ler este conto não são tão exigentes assim. Vai ser publicado numa dessas revistas de celebridades, e você conhece esse público. Dá um jeito, emenda, e coloca logo as duas juntas.” - Respondeu o Tom. 

“ Não! tá louco, é? As duas não podem ficar juntas neste final. Cada uma delas leva a frase para entendimentos diferentes. Ou é “complexo” ou é “sentimento.” 

Então tá! Vamos escolher logo uma delas! Põe aí “complexo”, complexo de culpa.” 

“ Não gostei! Não gosto desta palavra, Tom! É muito pesada. Prefiro sentimento. É mais leve, mais romântica! Escuta só que bonito fica: ... Sentimento de culpa! “sentimento”; quando a gente fala esta palavra “sentimento”, os lábios se unem rápidos, e depois se soltam um do outro tão suavemente, que até parecem imitar um beijo!” 

“ Pode parar. Essa do beijo foi para matar! “Complexo” é mais forte, mais sonora. É até menos vulgar, porque a palavra “sentimento” todo mundo fala, sem nem saber o que significa. É um tal de “sentimento”pra lá, “sentimento” pra cá. Tudo é sentimento. Agora a palavra “complexo”, é como colocar uma gravata colorida na frase. Ilumina qualquer frasezinha boba! Sente só: complexo de culpa, “complexo”! Que palavra mais linda! 

“ - Credo! Essa de gravata colorida na frase me quebrou ao meio.“ 

“ - Queres saber de uma coisa? Chega dessa ladainha! Não aguento mais. É a terceira vez que nos reunimos, fora os telefonemas e não conseguimos decidir. Que merda essas duas palavras. Vai, Vinícius, coloca logo aí, complexo de culpa, e acabou!” 

“ - Também não é bem assim, Tom. Autoritarismo, não! Calma Tom. Se a gente coloca a palavra errada, ela vai ficar ali para sempre. O que a crítica vai dizer? E depois, sempre tem uma meia dúzia de cães ferozes patrulhando tudo que a gente escreve; atrás de um erro qualquer. 

“ - Não estou nem aí para essa gente. Já falei Vinícius, dá um jeito, resolva! Aumenta a frase, sei lá. Quem sabe damos outro final, então, com outras palavras?” 

“ - Agora não dá mais. Fazendo outro final, teríamos que mudar todo o enredo, trocar o local da ação, os personagens. E o conflito entre eles está ótimo. Refazer todo o texto é uma loucura. Tô fora! A frase final tem que ser curta, objetiva, como um tiro no coração, e não temos outra melhor do que, “sentimento de culpa.” 

“ - Não repita isso pelo amor de Deus. Vou explodir com toda essa indecisão. 

“ - É o seguinte. Pensei melhor e decidi. Vou inventar outro final, mantendo a mesma história. Sou bom nisso. Deixe comigo!” 

“ - Não mesmo! Não tem outro final. Pense na sacada genial que foi escrevermos este final. E agora desistirmos dele, por conta dessas palavras: “complexo ou sentimento.” É “complexo”, ou as duas e pronto. Eu não falo mais. Tô ficando maluco com essa história. 

“ - Tom, é uma droga quando se atravessa diante do escritor esta busca interminável pela melhor frase, pela palavra exata. Já teve gente que sofreu uma espécie de ataque epilético, quando atravessou dia e noite atrás da palavra certa que não encontrava. Eu sinceramente, largaria de mão este final e inventaria outro, agora, já, já; queres ver? 

“ - Não. Não, não! Vamos fazer assim, Vinícius: vamos deixar este texto descansar mais uma vez, e daqui a uma semana a gente volta sobre ele novamente. 

“ - Negócio fechado. Guarde estas folhas sujas de cinzas de cigarro e manchadas de vinho tinto, e vamos beber, até porque, já está ficando tarde. E pode ser que aquelas duas loiras sacanas apareçam. Elas que quando chegam, espalham ouro nessas noites desgraçadas! 

“ - Vamos beber, mas vamos combinar uma coisa: hoje não se fala mais sobre o final do texto; se é “sentimento” ou “complexo de culpa!” 

“ - Claro!” 

- Só mais uma coisa. Quando a gente fica assim indeciso, ficamos parecendo dois asnos teimosos. Tô me sentindo um idiota. Além do mais, escrever em dupla sempre trás algum tipo de desentendimento! 

“ - Pronto. Hoje não tocaremos mais no assunto!” 

“ - Tá bem, meu velho. Aperta a mão aqui, vai!” 

“ - Garçom! Mais duas doses com bastante gelo em cada copo!” 

“ - Que coisa boa, não pensar em nada!” 

“ - Garçom! Mais duas doses em cada copo, com bastante gelo!” 

“ - Que alívio, conseguir ficar um tempo sem pensar em história, personagens, enredo, conflito e final! Que delícia!” 

“ - Garçom! Mais...” 

“ - Puta que pariu, Vinícius, já está quase amanhecendo e aquelas duas loiras safadas ainda não apareceram. Vai ver que já se arranjaram bem por aí.” 

“ - Chama o garçom, pede umas doses de saideira e vamos embora. Mas antes, me diga Tom, o que vamos colocar no final do nosso conto: “complexo” ou “sentimento” de culpa?” 

“ - Vamos para casa. Outro dia a gente resolve. Até porque, escrever bêbado, nunca saí nada que preste.” - Falou o Tom, já em pé, pagando a conta. 

“ - Bobagem. Aí é que eu fico bom. Eu e o Bukowiski.” - Disse o Vinícius. 

E lá no céu, a noite cansada também se preparava para ir embora, bem apressada, porque o dia já vinha chegando novinho bem disposto, pronto para cumprir o seu turno de trabalho.

A NOIVA DO CAIS

Agora estava envelhecida prematuramente por inesperado desgosto. Judiada! Mas os estivadores mais antigos diziam que ela fora a prostituta mais linda do cais. Uma mulher que por uma desgraça da vida foi parar dentro dos cabarés e bares imundos, frequentados por aquela gente que vivia em volta do porto. 

Chegou naquela região e foi ficando, até que se apaixonou pelo dono de uma pequena embarcação, o Pelicano, que fazia fretes nas águas ali de perto. 

O Pelicano prometeu casamento. Comprou um par de alianças, um vestido de noiva com cauda longa e um terno preto num brechó. E disse, que assim que voltasse daquela viagem, quando levaria uns pescadores até uma traineira em um mar mais afastado, no outro dia casaria com ela; com a sua Gaivotinha, que era como amorosamente passou a chamá-la. Minha Gaivotinha, dizia o Pelicano, depois que a gente casar, você vai morar comigo no meu barco. E nós vamos andar longe, e vamos conhecer todos os lugares distantes, até onde chega este marzão de Deus! 

E foi o Pelicano fazer a dita viagem com os pescadores. Um dia e meio de ida. Depois, retornou ele e o Tainha, o seu velho amigo e ajudante. 

Veio um temporal que trouxe uma onda mais forte, mais uma e mais outra, e cada uma ficando maior do que a outra. E lá, mais longe, vinha se formando uma crescia assustadoramente. Quanto mais se aproximava, muito maior ficava. Já perto deles não era mais uma onda. Era um paredão. Um monstro feito de água com uma crista gigante que dobrava, tal uma língua monstruosa, faminta por destruição. Quando bateu no barco de madeira acabou com tudo. Só restou pedaços do barco boiando naquelas águas enfurecidas. 

O Tainha, por um milagre, juntou forças que não tinha, agarrou-se num pedaço de tábua e ficou olhando o estrago, o céu e o mar. E gritava: - Pelicano! Pelicaaano! Pelicaaaanooo! Sumiu o Pelicano, sepultado naquele mar com raiva de fera. 

Um barco pesqueiro, mais de um dia depois, resgatou o náufrago do Tainha. 

A Gaivotinha quando soube, não chorou só por amor. Chorou ainda por ter perdido o seu sonho mais precioso. O sonho de sair daquela vida nojenta, de ter que vender o seu corpo para aquela gente suja e suada que nem banho tomava. Chorou a Gaivotinha, por ter morrido novamente, naquele sem fim das várias outras vezes, que também se dera por morta. Mas chorou por amor a Gaivotinha. Como chorou a Gaivotinha! 

Colocou o seu vestido de noiva, e agora, muito tempo depois da morte do Pelicano, ainda está lá, pronta para ir até o altar com o seu noivo que não mais apareceu. 

Fica sentada na amurada do cais com o olhar fixo no horizonte, esperando o barquinho que nunca chega, que nunca chega, sempre com o vestido branco sobre outra roupa que usa; que dele só resta uns trapos, não lembrando em nada, que já foi a vestimenta que usaria, no dia mais especial da sua vida. 

Dizem os estivadores que a Gaivotinha ficou muda, distante, fechada para o mundo, e que se alimenta com o que eles, por solidariedade, alcançam para ela. Dizem que se comovem, por ver tanto tempo investido numa espera. 

E afirmam que nunca mais, homem nenhum, por maior que fosse a oferta, conseguiu comprar aquele corpo, que por essas coisas vindas do coração, deixou de ser mercadoria. Que ninguém mais se deitou sobre ela; porque um corpo que reveste uma alma apaixonada e guarda um coração que ama, não aceita ser profanado. Transformou-se num templo sagrado, o corpo da Gaivotinha, depositário das mais íntimas e honradas leis; aquelas que governam, enfeitam e trançam, os verdadeiros laços do amor.

terça-feira, 2 de julho de 2013

PROPOSTA DE CASAMENTO

“ - Antes de reclamar, pensa Thomás, no preço deste anel de diamante, deste colar e brincos de pérolas legítimas, desta pulseira de esmeraldas, deste relógio de ouro maciço. Valoriza Thomás, este chanel nº 5, este pretinho básico francês, esta bolsa Louis Vitton autêntica, esta sandália exclusiva. Olha Thomás, este corpo malhado, este rosto bonito, esta postura, este charme, esta classe. Avalia Thomás, esta boa conversa, esta cultura, estes modos bem-educados, este jeito de fazer sexo bem-feito. Perceba Thomás, este bom gosto e conhecimento em gastronomia, vinhos, cinema, teatro, literatura e das outras expressões artísticas. Não esqueças Thomás, dos meus dois cursos superiores, dos idiomas que domino, da minha exuberante beleza e este comportamento de mulher de sociedade. Atenta bem Thomás, este conjunto que te faz companhia e te dá prazer 24 horas por semana. Tem tu em mente Thomás que esta dama aqui te fornece a possibilidade de iludires à todos os teus amigos e filhos, ao ponto deles pensarem que sou tua namorada; sem jamais suspeitarem que eu sou uma prostituta.” 

“ - Está certo Bruna, reconheço todos os teus méritos, virtudes e habilidades, mas, agora, três mil e quinhentos dólares por 24 horas semanais é muito dinheiro. Desculpa querida, mas mulher nenhuma no mundo vale tudo isso. Bukowski dizia que não existe mulher que possa valer mais de cinquenta dólares por noite!” 

“ - Caro? Achas demasiado caro o meu preço? Então faças as contas do preço de um casamento. Quanto custa no mercado de negócios matrimoniais, uma esposa de alto padrão? Não existe mulher mais cara no mundo do que uma esposa! Vamos Thomás, vamos às despesas: cabeleireiro, massagista, personal trainer, maquiador, serviçais, cobertura, cirurgias plásticas, festas e jantares requintados, cobertura na praia, mansão na serra, automóveis, viagens para o exterior sempre na primeira classe, vestidos e sapatos de grife, cartões de credito sem limites, jóias, amante; só para ficar nessas maiores e tão necessárias. Viste Thomás, como te onero financeiramente em insignificante importância. Isto que não adiciono no preço o fato de não levar à tua presença, essas coisas que muitas mulheres casadas praticam sem dó; tais como, TPM, brigas, problemas, reclamações, dores de cabeça; ataques de fúria, chiliques e maus humores; aborrecimentos e desarmonias. Só te ofereço alegria, contentamento, descontração, boa companhia e prazer. Quando sais de mim, Thomás, és o homem mais feliz deste planeta: rejuvenescido, otimista, confiante na vida e no futuro; disposto, recompensado. E vens agora me falar em carestia! De todos os teus grandes empreendimentos, esses quatorze mil dólares mensais que gastas comigo, não são despesa, e sim, o teu melhor investimento, Thomás! Que preço pode se dar à plena satisfação, ao infinito contentamento?” 

“ - É Bruna, pensando bem, fazendo as contas bem direitinho, você me sai muito em conta. Me convenci! Aliás, você me convenceu! Sabe? Quando eu fui casado com a Margot Elisabeth Santiago – Alcântra de Castro Bulhões, aquela dondoca fútil, ela me custava muito mais do que pago à você. Sem contar com aquele gênio de cobra venenosa que tomava posse da desgraçada. Era uma despesa enorme com uma mulher de pouco valor. Um abalo financeiro sem retorno algum! Uma transação desastrada. 

“ - Claro querido! É evidente, que por tudo o que te ofereço, com esta valiosa coleção de atrativos que coloco à tua disposição, o meu preço, até está defasado. Não faço apenas relações sexuais remuneradas. Não vendo pra ti, apenas o meu corpo.” 

“ - Bruna, você é tão linda, tão encantadora, tão doce, tão refinada, tão envolvente, que tenho até vontade de casar contigo. Não devia dizer, mas estou apaixonado! 

“ - Não. Por favor Thomás! Vai te custar muito dinheiro além do que, tenho mais dois clientes, assim, do mesmo teu padrão.” 

“ - E se eu dobrar os teus ganhos?” 

“ - Só se triplicares! Ah, e com todas as demais formalidades materiais que o evento exige!”

A REUNIÃO DE CONDOMÍNIO

Naquele início de noite, com a presença dos mesmos moradores de sempre, a assembléia, como das vezes anteriores, começou uma hora e dezessete minutos de atraso, por conta das inevitáveis conversas banais, prática exigida, usada e abusada nos reencontros e eventos sociais. 

Comparecer nas reuniões do condomínio era um ato sagrado, uma obrigação inadiável para aquele grupo de pessoas; todos já entrados de corpo e alma no inverno da existência. Era um ritual imperdível, que não podia ser quebrado. Aquela breve convivência possuía o efeito de um remédio em suas vidas, já que trazia uma quebra na rotina do cotidiano comezinho em que viviam. 

A dona Zizinha,a síndica, pertencia àquela espécie de senhoras enérgicas, porém tolerantes com as novidades paridas pelo progresso, além de possuir o tato político de acomodar as situações, por mais conflitantes que fossem. 

Já o Dom Tibério, o subsíndico, fazia o tipo linha dura de capitão reformado do exército, mas seguidor da arte de não mexer muito nos incômodos, para deixar intactos, sem arriscar, os interesses adquiridos. E a Bibi, professora de literatura aposentada, boêmia incorrigível, ferrenha defensora da ideia da presença de extraterrestres entre nós, e eficiente em anotar na ata, tudo que se passava nas sessões, letra por letra, palavra por palavra, frase por frase. Nada lhe escapava. Desempenhava com orgulho e capricho o papel de secretária. 

Após a abertura dos trabalhos no salão de festas do antigo e tradicional prédio do centro da capital, veio à tona aquela velha e costumeira maçaroca de reivindicações, queixas e protestos, que brotavam nas bocas dos enfezados condôminos. 

A dona Candinha do 6ª andar reclamou da infiltração no seu apartamento, causada pelo encanamento do banheiro do 723. A dona Zica do 8º disse que não suportava mais a feiúra daquela pintura horrível da fachada do prédio, mais as pichações nas paredes do 7º andar. O seu Filomeno falou da goteira na garagem que estava manchando o teto do seu carro. O seu Zacarias disse que era uma pouca vergonha o porteiro assistir TV o dia inteiro, e cochilar atrás do balcão da portaria. O seu Afrânio alegou que as escadas estavam sujas, e que a faxineira nem varrer direito sabia. E que o valor do condomínio estava muto alto, para o pouco investimento no prédio. Que aquilo era uma safadeza. Que pagavam caro e não obtinham retorno. Que o condomínio estava igual ao país, quando os impostos não beneficiam os contribuintes, indo parar direto no bolso desta cambada de corruptos e ladrões. 

E a Bibi anotando tudo que ouvia, tirando fumaça da ponta da caneta. 

Foi então que a coisa esquentou! 

O Arruda, ex-deputado federal, sujeito discreto, solteirão, sem filhos, que diziam ser uma bichona enrustida, se queixou do barulho durante a noite, dos saltinhos finos dos sapatos da vizinha do 734, que faziam tóc-tóc, lá dentro da sua cabeça. Que iria matar aquela desgraçada. 

O Santoro do 727, jornalista aposentado, comunista de martelo e foice na testa, Marx no discurso e boina do Che na cabeça, que só queria ficar bem longe daquela gente reacionária, protestou dos sacos de lixo no corredor do 7º andar, que o seu Afonso do 731, já caduco, esquecia no lado de fora da porta. Entrou, falou rápido e se foi porta afora. 

Aí foi quando os moradores do 6º e do 8º se queixaram do pessoal do 7º andar. Liderando o movimento e falando por eles, o seu Ambrósio, dono de uma estância na fronteira, ficou de pé acompanhado por sua esposa, a dona Firmina, que não tinha boca para nada, quando passou a citar a lista de reclamações: a moça do 722 que recebe visitas masculinas remuneradas, quatro a cinco por dia; uma barbaridade. A lésbica da Vanuska do 728 com sua coleção de namoradas; uma afronta. O Edinho, o gay do 724, com seus rapazinhos; uma vergonha. A doida do 721 que grita sem parar que vai se atirar pela janela; uma loucura. O baterista do 725 que bate dia e noite naquela lataria dos diabos; uma falta de respeito. As festas madrugada a dentro do Juca, do 733; um horror. Os urros e gemidos histéricos quando transam, e como transam, o casal do 726; uma obscenidade, uma indecência. Aquele desafinado metido a cantor de ópera do 720; uma agressão para os ouvidos. A vizinha do 729 que lava roupas e panelas de madrugada; uma tortura . Os cachorros da dona Chiquinha do 730, que latem desesperados; um suplício. O seu Joaquim do 735 que não paga o condomínio há mais de dois anos; um caloteiro safado. 

Para concluir o rol de queixumes, o seu Ambrósio, com o apoio da esposa, a Dona Formina, que sacudia afirmativamente a cabeça sem parar, pediu em tom grave, com o dedo indicador em riste e o rosto vermelho de raiva, que o 7º andar fosse banido do prédio. Que o 7º andar era um caso de polícia. Um hospício, um gueto, que não mais deveria pertencer ao edifício. Exigiu em tom solene, que o 7º andar fosse definitivamente excluído do prédio. E frisou com tintas bem fortes que aquelas queixas eram muito antigas e que já estava cansado de tocar nesse assunto em todas as reuniões. 

Por fim, a dona Maricota, uma ex-bailarina com um passado muito suspeito, pediu que o guri do 732, filho do Mourão, conhecido veterano de um time de futebol local, agora contrabandista de uísque, parasse de tocar aquela maldita vuvuzela, toda vez que assistia um gol, de qualquer time, na televisão. 

Ainda, a dona Leucádia, dada aos estudos das coisas do vaticano, divorciada de um prefeito de uma cidadezinha do interior, cassado por compra de votos e corrupção, sugeriu que o condomínio comprasse vacinas para serem aplicadas no Edinho e na lésbica da Vanuska, já que ouvira falar na tal da cura gay. 

E encerrando a lista de denúncias, lembrou que as câmaras de vigilância não estavam funcionando, e que um dos elevadores vivia no conserto, e que, de certeza, haviam sido danificados pelos habitantes daquele outro mundo que fica no 7º andar. 

Terminada a reunião, a Dona Zizinha, como sempre, foi até a geladeira e trouxe, com a ajuda da Bibi, doze garrafas de vinho, cervejas, refrigerantes e salgadinhos sortidos, mais um bolo coberto de apetitoso glacê. Beberam, comeram, falaram outros assuntos da vida antiga, e deram gostosas risadas. E comemoraram dizendo, de como era bom morarem num prédio tão bem localizado, pertinho de tudo, principalmente das farmácias e do hospital. 

Depois foram saindo alegres e satisfeitos para os seus apartamentos, como se acusações greves não tivessem sido feitas. Não sem antes abraçarem e elogiarem a síndica, a dona Zizinha, pela sábia condução dos trabalhos daquela noite. 

Até esqueceram do pessoal do 7º andar. Pelo menos até a próxima reunião.