quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O TRUQUE DA DONA ZIZA

Intervalo do primeiro encontro semanal da oficina que versava sobre escrita literária. Se aproxima de mim uma senhora idosa, de cabelos verdes com uma mecha alaranjada, entusiasmada com a vida. Vestida com longa saia indiana e enfeitada com brincos, colar e pulseirinhas de pedras coloridas, e um sorriso pintado de batom vermelho, desenhado bem bonito no rosto marcado pelo tempo. Nela, não se enxergava uma velha; olhos vivos de menina arteira. 

Me disse que lera repetidas vezes os grandes autores da literatura universal, e que desejava aprender a técnica para escrever contos, que teriam como pano de fundo a sua história de vida, dos seus bem vividos oitenta anos. Que tinha muito para contar. E que, também sentia uma necessidade muito grande de colocar para fora as suas inquietações, libertar os seus fantasmas e demônios; soltar a imaginação. 

Sabe, me disse ela, as pessoas mais jovens olham para mim e pensam que eu já nasci velha. Não imaginam que fui jovem um dia. Estão convencidas que fui sempre assim. Acreditam que sou uma santa, sem passado. Não lhes ocorre que tive uma juventude e que vivi como todo jovem mais ousado vive. Que aprontei cada uma nesta vida, difícil até de contar. 

Hi, hi, hi, sorriu assim, bem safadinha, colocando as mãozinhas enrugadas sobre os lábios, com os olhinhos molhados de azul, quando recordou de uns pedacinhos de antigamente. A expressão dela quase me contou tudo. Por pouco não se confessou. Mas pude imaginar o que a sua boca não quis dizer. 

Aproveitei o clima favorável e pedi para que ela me contasse alguma aventura; uma apenas já bastava. Ela me olhou pensativa, recolheu o sorriso, assim como uma flor quando se fecha, e achou melhor que não. Que ficassem onde estavam, guardadas na lembrança. A seguir, em tom solene, me disse que após dominar a técnica e os caminhos do ofício de escrever narrativas curtas, então colocaria suas experiências e segredos na boca dos personagens que criaria. E que se lhe perguntassem, se eram detalhes da sua vida que estavam no enredo de suas histórias, juraria de pés juntos, que tudo o que estava escrito era pura invencionice. Que nada daquilo acontecera um dia. Que tudo era pura ficção. 

Me falou, a espertinha, que a literatura serve de proteção para o autor mentir à vontade. Que o escritor cria e usa os seus personagens, para eles dizerem aquilo que ele, de outra forma não poderia dizer. Arrematou, maneando positivamente a cabeça esverdeada: “ - os escritores são todos mentirosos. Enganam a gente o tempo todo. Mas se eles não nos iludissem, se eles não nos seduzissem com o outro mundo que inventam, a nossa vida seria muito dura. A realidade do dia a dia, cansa, aborrece; a arte emociona, nos faz sonhar, leva nossa imaginação para andar por caminhos desconhecidos.” 

Gostei da dona Ziza, mais ainda quando ela me convidou para fumar um cigarro, ali, depois da porta. Acendi o dela e o meu. Deu uma longa tragada, depois ficou olhando as voltas de fumaça sumirem no ar; baixou a cabeça e me disse sorrindo outra vez: “ - fui tão linda quando moça, tão adiantada para a minha época, que não quis saber de casamento. Dei voltas no mundo onde amei e fui amada. Atravessei continentes, conheci cidades e povoados, conversei com as pessoas, vivenciei outras culturas. Vivi a vida. Sempre me renovei. Suguei o caldo da terra. E para completar, ainda tenho momentos de plena felicidade. Agora estou aqui, onde quero aprender este truque de enganar escrevendo!” 

Dei uma risada e voltamos para a sala para tentar desvendar sobre esta força misteriosa que obriga a gente a escrever. E também, aprender a ser mentiroso, segundo a dona Ziza.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O SINAL DE NASCENÇA

O Nandinho nasceu numa tarde escaldante de verão, com um sinal no peito, logo acima do mamilo esquerdo. Era um sinal único, em forma de estrela, marrom-escuro, do tamanho da unha de um dedo indicador. Ninguém mais tinha outro sinal igual. Só o Vilson que era amigo do João e da Helena, pais do Nandinho. E por raro, muito conhecido e famoso ficou, o tal do sinal do Vilson. 

Nasceu a criança, olharam ele peladinho. Viram o sinal e foi aquele silêncio feito de olhares de surpresa e desconfiança. Nem notaram que o menino era um lindo recém-nascido. Na hora o João lembrou-se do Vilson que era a única pessoa conhecida que tinha um sinal idêntico; marrom-escuro, do tamanho de uma unha de um dedo indicador, na forma de uma estrela, logo acima do mamilo esquerdo. Tal e qual o Nandinho. 

O quarto do hospital cheio de parentes, mais o Vilson com a mulher; e o João não se conteve: 

“ - Helena! Que sinal é este no guri?” 

“ - Ué! É um sinal. Sinal é sinal: pode nascer em alguém, assim como pode não nascer!” 

O João olhou para o Vilson, exatamente para o peito dele e não conseguiu ficar em silêncio. 

“ - Helena! O Vilson tem o mesmo sinal; no mesmo lugar, com o mesmo formato, da mesma cor que o do nosso filho.” 

“ - Coincidência, João. Coincidência. Nunca ouviu falar na palavra acaso. Aconteceu porque aconteceu. Coisas do acaso. Coincidência pura!” 

O João, na frente de todos, pediu que o Vilson abrisse os botões da camisa para mostrar o sinal. 

“ - O que é isso, respondeu o Vilson, eu tenho vergonha! 

“ - Vai ter que mostrar”, ordenou o João. 

Nesse momento, a Helena se enterrou embaixo dos lençóis. Os parentes se olhavam meio atônitos, perdidos, confusos, com aquela situação inesperada. A mulher do Vilson, assim como o João, queriam saber tudo sobre aquele mistério, ou coincidência, ou fosse lá o que fosse aquilo. Estava um alvoroço no quarto. Apenas o Nandinho dormia, inocente, só de fralda, com aquele sinal estrelado, ali, grudado no peito, para todo mundo ficar vendo. 

A mulher do Vilson disse: “ - bem que eu sempre desconfiei. A tua intimidade com a Helena sempre ultrapassou os limites da amizade. 

Foi quase a gota d'água. O Vilson disse: “ - o que é isso gente. Vamos respeitar o nascimento da criança, do Nandinho. Criança é um anjo, merece atenção. E ainda mais nós – falou dirigindo-se para a esposa - , nós que fomos convidados pela Helena para ser padrinhos do Nandinho.” 

“- Padrinhos, umas pivicas, falou fazendo uma figa com os dedos da mão direita. Vocês é que não vão batizar o guri. Quero, agora, fazer um exame de DNA; no Vilson, no Nandinho e em mim.” Disse o João, enfezado. 

Foi então que os parentes, irmãos, cunhados, mais os infiltrados chegaram para apartar aquela confusão que se iniciava. 

A Helena fez cara de doente por causa da cesariana, simulou uma indisposição, tapou novamente a cabeça com o lençol e fingiu que estava dormindo. O Vilson estava louco para ir embora. Só a mulher do Vilson e o João, ali, naquele momento, queriam botar em pratos limpos aquela história daquele sinal estrelado que nasceu marrom-escuro, logo acima do mamilo esquerdo do Nandinho. 

Aí falou o Seu Paulo, homem sério e respeitado, pai da Helena, tentando arrumar as coisas: “ 

- Vai ver que é pela convivência. Vocês são tão amigos, estão sempre juntos, que pela proximidade da amizade, pelo convívio, a Helena assimilou o sinal do Vilson e passou para o guri. É como se fosse uma fotografia uma tatuagem criada pela aproximação. Isso é coisa que acontece. É raro, mas acontece!” 

Nesse instante, aconteceu a gota d'água e a vasilha do João transbordou. Puxou o 38 da cintura, colocou todos os parentes na parede, chaveou a porta do quarto e enfiou o cano na boca do Vilson. 

“ - Fala! O que aconteceu?” 

“ - Tá bem, João. Mas, calma João. Muita calma e juízo nesta hora. Eu e a Helena temos um caso! Um caso antigo! 

Fez-se um silêncio com uns hóóóóós, naquele ambiente. 

O João baixou a arma, colocou de volta na cintura, respirou forte todo o ar do quarto, foi até a porta, e antes de sair disse para o Vilson: “ - então, agora vai lá no cartório e registra o menino como teu filho. Eu tô fora. Tchau pra vocês.” 

Lá dentro só se ouviu outro sonoro hóóóóóóó! A Helena se fez de mais doente ainda e continuou com o lençol sobre a cabeça. O Nandinho acordou e chorou forte. O pai da Helena, o seu Paulo, foi até o berço, pegou a criancinha no colo, deu uma olhada rápida no sinal estrelado do guri, e o entregou nos braços do Vilson. Aí, foi a vez da esposa do Vilson sair porta afora, correndo, desatinada. 

O Vilson com o nenê no colo, foi até a cama, sob os olhares de toda a parentada, puxou o lençol que cobria o rosto e o corpo da Helena e disse: “ - olha só querida! Como é bonito o nosso Nandinho!” 

A Helena, vermelha, sentiu graves dores da cesariana, e outra vez cobriu-se toda com o lençol. 

E o guri chorando de fome.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

GRATIDÃO

Pobrezinha que dava dó. Com uns vestidinhos surrados, pezinhos bem feitos, desfilava bonitinha pelas ruas sujas da vila, e na escola noturna onde estudava, da qual fora rainha no último concurso. Que era perfeita de corpo, isso era. Magra, alta, pernas compridas, torneadas, ombros de porte, pescoço longo, seios redondos e empinados. E um rosto que se bem tratado, mostraria jóia muito preciosa de se ver, porque realçaria os lábios carnudos , o nariz afilado, altivo, e os olhos verdes, observadores; olhos de gente inteligente. Cabelos pretos bem-nascidos, mais os dentes brancos, sadios, parelhinhos. Sorriso fácil e bom. O que atrapalhava era aquela pobreza desgraçada. 

Teve uma festa junina com fogueira e tudo. Na encenação do casamento na roça ela era a noiva. Como ficou atraente naquele vestido branco, com as maçãs do rosto tingidas de vermelho. O pessoal da vila em peso tomava quentão, comia pipoca, rapadurinha de leite e amendoim. E dançavam quadrilha, de uma música que saía de dois ou três alto-falantes, pendurados nos paus fincados no chão, que sustentavam a lona da barraca de som. 

O Barão, um velho rico da cidade, viciado em caçar meninas pobres nos arrabaldes estava lá, com o olhar matreiro, predador. Milagre, que a Maria de Fátima tenha até então escapado das suas garras! 

Quando enxergou a noivinha disparou sobre ela. Pagou quentão, pé de moleque, mostrou do bolso um maço de dinheiro, fez promessas no ouvido. Depois, ela entrou no carro dele, vestida de casamento. 

Ficou três dias fora. Quando voltou era outra pessoa, a Maria de Fátima. Cabelo tratado, pele limpa, maquiada. E as roupas então! Parecia uma modelo pronta para entrar na passarela. Mais as mãos cheias de sacolas de lojas de shopping, abarrotadas de novidades. 

Avisou em casa que iria morar num apartamento na beira da praia. Que iria se preparar para entrar na faculdade. Que iria frequentar bons restaurantes e tomar vinho de qualidade. Que iria comer comidas vindas de fora pedidas pelo telefone. Que aprenderia boas maneiras. Que conheceria gente importante. Que iria ler, ler, ler livros que ali ninguém conhecia. Que se tornaria uma pessoa culta. Que aprenderia a dirigir e ganharia um automóvel. Que iria ajudar pai, mãe e irmãos. Que dormiria e acordaria sempre bonita. Que haveria uma transformação na sua vida. Tudo patrocinado pelo Barão. Que o velho estava apaixonado por ela, tão novinha, tão fresquinha com seus 17 anos. 

Assim foi feito. Assim aconteceu. Passaram-se 6 ou 7 anos, ou um pouco mais, e a Maria de Fátima conheceu aquilo que se chama de milagre. Obedeceu às ordens, acatou as regras do jogo; pacienciosa, deu tudo de si. Acariciou os sinais do destino. 

Sabe-se que adquiriu prestígio. Agora cuida com zelo e competência os processos dos seus clientes em requintado escritório, a Dra. Maria de Fátima. Vida pura, sem cambalachos. 

A vida; ah, a vida! O destino; ah o destino! O destino... O destino! Essa maravilha chamada destino! É só aceitar a sua aparição, com as feições que estiver usando quando bater na nossa porta . Não se encher de pudores, diz ela sempre, que se não fosse aquele vestidinho de noiva do casamento na roça, jamais teria acesso à vida que usufrui. E que as desilusões morram na época certa, para cederem lugar aos novos tempos de alegria. 

O Barão fez a parte dele. Ela, a sua. Como num contrato bem cumprido cada um desempenhou o papel que lhe tocava. Mas foi o Barão quem retirou a casca suja que cobria aquele precioso diamante. Aquele banho de loja inicial mostrou que o que havia por baixo da poeira, não era coisa qualquer. 

Dizem até hoje, lá na vila, que o Barão tem isso de bom: usa as meninas, mas elas têm a obrigação de estudar. 

Estão contentes os dois. Ela, outro dia usou um vestido de noiva verdadeiro. Casou com um rapaz de boa família, médico, parece; de uma cidade vizinha. E o Barão, de vez em quando, ainda frequenta aquele corpo bonito, tratado com cremes caros, depositário daquela vida, que ele retirou certa noite, de uma pobre festa de São João. 

É que a Maria de Fátima sabe ser reconhecida. Porque, gratidão para os gratos, é coisa dura para sempre.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O VENDEDOR DE CONTOS

É natural que todo escritor tenha o desejo de que suas criações sejam lidas, que cheguem até os leitores; estes sim os destinatários de todo esforço intelectual e criativo daquele que escreve. 

Os textos após escritos normalmente vão para uma editora, que os revisa, diagrama e imprime, dá-lhes forma de livro, vestido com uma magnífica capa, e com um título atraente, vai parar nas boas livrarias, para, enfim, cair nas mãos dos tão esperados leitores. Todos precisam vender as suas obras, para, no mínimo, continuar escrevendo. 

Não foi bem assim o que aconteceu com o autor de contos que conheci nas ruas centrais de uma grande cidade. Suas obras não passavam por editoras e nem frequentavam as chamativas vitrines das livrarias. Eram digitadas, e de cada texto original tirava diariamente dezenas de cópias e as oferecia nas praças centrais das cidades por onde passava. Ali instalava uma mesinha redonda, de ferro, e duas cadeiras brancas, e sobre a mesinha uma caneta, algumas folhas de papel em branco, uma garrafa de água, dois copos e a carteira dos seus cigarros de sempre; vestido com um terno de linho branco, chapéu panamá, aquela esguia e simpática figura. Sua presença fazia bem a quem o observava, e um cartaz fixado num tripé ao lado da mesa, onde todos podiam ler: “Quem lê um conto, aumenta um ponto.” 

Os contos a venda estavam pendurados em umas cordas estendidas que se fixavam em duas lindas e copadas árvores que ali residiam já há muito tempo. 

(...) e como parava gente para ler os contos e ouvir alguns que ele ou alguém da assistência lia para deleite de todos! E também assistiam, vez por outra, ele escrever algumas linhas de uma próxima história, nas folhas em branco sobre a mesinha. Ali assistiam em toda a plenitude, como já foi dito por alguém: o ferreiro exercendo o ofício da sua forja..., e compravam um, dois, três contos cada pessoa. As vezes um conto de cada título. E aproveitava para falar de literatura, dos autores russos, e tirar dúvidas banais de alguém que queria saber qual a diferença entre a crônica e o conto. 

Parava todo tipo de gente, dos mais humildes aos mais letrados, dos mais pobres aos mais abastados, estudantes, senhores e senhoras, mendigos e moças bonitas também. 

De quando em quando, lia em voz alta um outro conto de sua autoria. Recebia bons aplausos, e alguém sempre dizia: eu quero este conto, eu também quero um destes. 

As pessoas que apreciavam este tipo de expressão literária, e mais os curiosos, iam adquirindo os contos de acordo com o título, com a temática que mais se identificavam: se o texto falasse de amor vendia vários, se falasse de desencontro também vendia outros tantos; vendia muito bem os que falavam de amor e desilusão. Entretanto, os contos campeões de vendas eram aqueles que tinham como enredo os temas voltados para o amor, os desenganos e a traição. E também aqueles que falavam das nossas intimidades; das pulsões que latejam dentro das nossas almas. 

No meio de uma tarde quente aproximou-se dele uma senhora se dizendo escritora e que invejava o vendedor de contos, porque os escritores, dizia ela, somente encontram-se com os seus leitores naquelas longas e demoradas filas de sessões de autógrafos, e ele, estava ali, em contato permanente, tendo em volta todos os que o liam. Aquela era a vida que todo escritor desejava ter: contato permanente, ouvindo elogios, recebendo abraços e sorrisos, ouvindo palavras de incentivo e também algumas sugestões para novas histórias. O sonho de interagir com o seu público estava ali materializado. Levou consigo, esta senhora, toda coleção de títulos, dizendo que também os levaria para uma filha sua, apreciadora de histórias curtas. 

Pessoas retornavam em outros dias para adquirirem outros contos avulsos, com enredos ainda não lidos. E traziam amigos, parentes, filhos, para ficarem por ali, nem que fosse por um breve instante de tempo. Muitos adquiriram o gosto pela leitura naqueles encontros no interior daquelas praças. 

Um dia, estava o escritor, escrevendo este texto, e exatamente neste momento da escrita, quando a história se encaminhava para o final, aproximou-se uma mocinha de aspecto muito frágil, com a pele muito clara a mostrar as veias azuladas, no rosto, nos braços, nas mãos, e sem cabelos, por conta de um severo tratamento que estava se submetendo. 

Disse que no hospital, recebia de sua mãe vários contos avulsos, todos os dias, e que os adorava, que a distraia, que a alegrava; que por longos momentos esquecia do seu mal, navegando no enredo daquelas histórias nascidas da imaginação. E que prometera a si mesma, quando saísse do hospital, viria conhecê-lo. 

O escritor pediu a ela que sentasse; ela olhou para este texto sendo escrito e perguntou-lhe, a quem seria dedicado. 

Ele olhou os olhos fundos e sofridos da mocinha e lhe disse: “– este é para você. Espera só um pouquinho para eu terminá-lo e escrever uma dedicatória em teu nome.” E depositou o texto nas mãos trêmulas de sua leitora; enquanto ela pedia, já em pé, para ele levantar-se, e lhe emprestou o abraço mais terno e amável que jamais recebera. 

Quando terminou aquele aconchegante abraço as pessoas que ali estavam não puderam desistir da emoção, ao presenciarem tão humana, verdadeira e comovente cena. 

Neste instante, se aproximou a sua mãe, que observava tudo a média distância, aquela senhora escritora, que levava os contos para a filha no hospital. Abraçou a sua menina, saíram prometendo retornar. 

Ele desmontou a sua mesa, agradeceu a todos que ainda estavam por ali. Mas foi neste instante que ocorreu mais uma surpresa: todos, um a um dos assistentes compraram todos os contos que ainda restavam. Não sobrou nenhum, somente os originais. 

Só pode ter sido uma forma de pagamento que aquelas pessoas encontraram para agradecer por terem presenciado tão raro e sublime encontro de almas. 

E foi o escritor para o hotel com o rosto marcado por aquelas suaves maravilhas provenientes da felicidade, sentindo-se o maior contista do mundo, laureado com o prêmio mais nobre que alguém pode receber: um abraço e um agradecimento.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

LIVRAI-ME SENHOR

Oh Deus, não lhe peço que me livre da morte porque sobre esta, decidido já está. Mas se não for incômodo Lhe convocar para intervenções tão pessoais diante dos Seus urgentes e divinos compromissos com a humanidade, peço-Lhe que retire do meu caminho, os burros, os chatos, os idiotas, os simplórios, porque esses são piores do que doença ruim. Que livrai-me daqueles seres inferiores que possuem respostas para tudo, dos que são os donos da última palavra, e que iniciam as suas falas com esta maldita sentença: “ - A grande verdade é que...” Esses sábios de araque, em geral diplomados, são insuportáveis. 

Livrai-me Pai Eterno, dos charlatões, dos falsos, dos fingidos, dos medíocres, e daqueles que falam de mal pelas costas. Fazei Senhor, com que esses não mais apareçam na minha frente. Leve-os para bem longe. Fica a Sibéria como uma humilde sugestão. 

Por favor, Supremo Criador, dá um jeito nos ciumentos, nos invejosos, nos mentirosos, nos plagiadores, porque gente pior do que esta o Senhor não colocou sobre a terra. Manda-os para o seu arquirrival; que o demônio deles se encarregue com pontaços de tridente, enquanto derretem nas brasas incandescentes do inferno. 

Oh, Todo Poderoso, castiga com trabalhos forçados, obrigando-os a quebrar blocos de pedra com pesadas marretas, de dezoito à vinte horas por dia, os pobres de espírito, os cínicos, os covardes. 

Os bajuladores, Santíssimo, esses causam nojo e arrancos de vômito. Se o Senhor aceitar outra humilde sugestão, leva-os de mudança para qualquer um dos polos gelados do nosso planeta. Tanto faz que convivam com os ursos no polo norte ou com os pinguins nas profundezas da Antártida. 

Providencia meu bom Pai, um definitivo sumiço àqueles que judiam dos humildes; deles que não podem se defender. E também nos arrogantes que se julgam os donos do mundo. E ainda, e é importantíssimo, Mestre dos mestres, transforma em pó essa outra classe de gente mesquinha, que são os que mais existem: os ladrões dos pensamentos e ideias alheias, que gastam o seu tempo de vida, anotando, decorando e pronunciando como se suas fossem, frases feitas, retiradas dos livros, dos jornais, dos almanaques; das conversas que ouvem disfarçando que não estão ouvindo. Eles que se apropriam, esses reles, de um repertório de conhecimento que jamais lhes pertenceu. Que de primeira mão nunca sairia de suas bocas, por mais que espremessem seus cérebros franzinos. 

Em tempo, Senhor; exitem os rancorosos, povo de desgraçada espécie; que são os causadores das calúnias, das difamações, das injúrias e das intrigas. Encaminha-os também para o satanás, com a rigorosa observação, de que devem receber os mais longos e dolorosos suplícios, executados que são, tão bem pelo capeta. 

E não esqueça Senhor, de dar uma ajuda para os miseráveis, que comem no lixo, dormem nas calçadas e morrem como bicho, atirados nas ruas e nos corredores dos hospitais. Por que, tantos sem nada, Senhor? Tanta desigualdade, por quê? E para os doentes terminais dá-lhes logo o fim, e a redenção no outro mundo, tão prometida. 

E com relação aos políticos hipócritas, corruptos e ladrões, sejas com eles justo e perfeito, Grande Arquiteto do Universo: dedica-lhes a lepra como presente; que ainda será pouco. E diante deste castigo, por mais que implorem clemência, não acreditai neles. Sejas forte Senhor e não os perdoa jamais. Do contrário eles retornarão piores do que já foram. Que a lepra os consuma lenta e progressivamente até torná-los em deformados monstros nojentos, acompanhados apenas das moscas varejeiras. Porque, quem rouba verba da saúde, da educação e da merenda escolar merece a vingança como punição. 

E quanto a minha morte, se é que posso fazer mais um pedido, que seja rápida, porque sofrer, já sofri o suficiente, padecendo com o inevitável convívio com esses grupos de gente, que dos outros, além do sangue e inteligência, querem sugar a alma também. 

Mas, peço-lhe, Deus Onipotente, que os boêmios, os poetas, os loucos, as prostitutas, os agnósticos e os ateus, e os que sofrem por amor; que estes o Senhor os deixe em paz. E que, do mesmo modo, não toques nos assadores de churrasco, nos fabricantes de vinho, nos mestres cervejeiros e nos donos das boas destilarias de todas as bebidas fortes do mundo. 

E peço também para o Senhor deixar onde estão, as mulheres bonitas que sabem fazer ambrosia e pudim de leite condensado; mais aquelas que fazem promessas e orações; magias, mandingas e feitiços; que acendem velas nos altares profanos nas madrugadas frias; que andam pelos sonhos, bares e igrejas, pelas ruas e terreiros de religião, como loucas, à procura de uma paixão. Elas, são os anjos que nos trazem o mais doce licor da existência. São as flores dos nossos jardins. Cuidaremos delas, Senhor. 

Oh Deus, deveria eu ter começado assim: protege e livra de todos os males, as crianças, principalmente. Por elas viveremos todos nós; os poucos que restarem aqui por baixo. Só elas são o que de puro existe.