quinta-feira, 31 de outubro de 2013

CAÇADOR DE SONHOS

Preciso de matéria-prima. As notícias recebidas através dos sonhos estão entre as melhores. Os produtos nascidos dos sonhos são jóias raras não encontradas na crua realidade. As imagens e representações oníricas se diferenciam daquelas criadas pela imaginação ou pela fantasia, por pertenceram a outra fonte. São águas de outro rio. Águas das fontes dos desejos ou repulsas escondidas. O secreto de nós brota dentro do que sonhamos. É o inconsciente se manifestando. Por melhor que seja o que inventamos, jamais se igualará àquilo que os sonhos nos oferecem. É quando o impossível dá um grito, toma forma e se apropria da nossa consciência, ingressando vivo em nosso espírito, tal como experiência vivida. 

Não sou especialista em interpretação de sonhos. Não os compreendo muito bem. Apenas sonho. Dou estrada para eles caminharem. Sou uma tela em branco onde eles pintam as suas manifestações, com as tintas próprias de sua secreta e exclusiva substância. 

O difícil é aprisioná-los. Tê-los vivos na lembrança após acordar. São ariscos e fugidios, os sonhos. São pássaros, que se não tivermos habilidade, escapam fácil, nos deixando apenas com uma vaga recordação que se aproximaram, para sumirem batendo as asas, sem deixar rastro, em voo veloz, rumo para de onde vieram. 

Por saber da preciosidade dos seus conteúdos, me interessei em aprender a caçá-los. Me transformei em um caçador de sonhos. Procurei métodos e maneiras para não deixá-los escapar. Devo dizer que já evoluí satisfatoriamente. Domei a minha mente em acordar após um sonho e anotar numa folha de papel que deixo na beira da cama, como se fosse um alçapão, pronto para aprisioná-los. Engaiolar esses canários multicoloridos, habitantes de outra dimensão desconhecida. Assim, muitos deles, os sonhos que retive, depois de trabalhados transformam-se em textos inteiros ou em parágrafos de contos e crônicas. Sirvo-me deles. Até porque, os seus conteúdos são diversos dos nascidos da imaginação, da invencionice, por mais criativas ou delirante que sejam estas. Os sonhos trazem uma espécie de realidade que não conseguimos inventar. Não é o sonho um delírio, mas uma vivência encantada, registrada por uma lente de origem misteriosa, que a consciência, por mais fantasiosa que seja, jamais alcançará. É um acontecimento, uma luz vinda das ocultas nuvens da alma. 

De uns tempos para cá investi no treinamento mental para sonhar sobre determinado assunto, lugar ou acontecimento. Não é que vem dando certo! Nem sempre, é claro. Mas às vezes me surpreendo em ter sonhado exatamente com a ideia, que antes de adormecer, eu havia plantado na memória. Estou encantado com esta descoberta. Confesso que já ando conseguindo viajar, revistando situações antigas da minha vida, através deste artifício. 

Agora que estou me tornando em um perseguidor, melhor, em um caçador de sonhos, adquiri outro território para explorar. Já me sinto um bandeirante, um garimpeiro, ou um apanhador de invulgares insetos, que eventualmente consegue ter nas mãos uma pedra de valor ou uma borboleta com asas de rara beleza. 

Sonhar, é assistir dentro de nós uma espécie de relâmpago; um clarão vivo e intenso, um transe fugaz de imagens impossíveis, com a duração de acender um fósforo, porém, com o poder de deixar impregnado em nossas mentes, as peripécias em que fomos envolvidos. Além do mais, é o sonho a melhor parte do sono. Dormir sem sonhar é apenas descansar. É não sair do corpo para viajar para dentro de um outro mundo dono de formas estranhas e desconhecidas. O sono é apenas o veículo que usamos para sonhar, possibilitando que nossas intelecto ou espíritos alcancem o que está fora de nós; distante dos nossos olhos, longe dos nossos pensamentos, impalpável do nosso tato. No sonho, o abstrato se materializa. O imaterial adquire forma. A ausência se apresenta. O milagre de outra vida acontece. 

Preciso de matéria-prima. E esta que o sonho me oferece, é daquelas que mais gosto de ir buscar.

A VACA

A Cláudia é uma vaca. Vaca! Vaca! Vaca! É isso que ela é. Uma vaca safada! Isso! Uma vagabunda. Uma vaca vadia. Descarada. Uma prostituta imunda. É isso que ela é, gritava o Antunes no hall de entrada do prédio ao saber que a Cláudia havia ido embora com o moto-boy, o entregador de pizza. 

E assim, inconsolável, gritando palavrões, com tremores generalizados, histérico, arranhando os braços, mordendo os lábios, até que o síndico e outros moradores vieram para acalmá-lo. A dona Zizinha do térreo, trouxe água com açúcar, o Seu Bento do 1º veio com um chá de camomila, a Dona Francisca do 3º apareceu com uns comprimidinhos que ela usa pra se tranquilizar, e nada do Antunes sossegar. 

Eu não quero tomar chá nem remédio. Eu preciso é de uma garrafa de cachaça e um 38, berrava o Antunes desesperado. Vou matar aquela desgraçada. Aquela vaca nojenta. Vaca! Vaca! Vaca, gritava sem parar, batendo forte com os pés no chão. Bem que eu desconfiei da quantia de caixas de pizza lá em casa. De todos os sabores. De todos os tamanhos. Não aguento mais enxergar pizza. Nem sentir o cheiro. Enjoei pra sempre, e aquela vaca dê-lhe comprar mais. Dê-lhe portuguesa, calabresa, com tomates secos, com queijos e mais queijos, com catupiri e sem catupiri, com borda recheada e sem borda recheada, mais aquelas adocicadas. E aquelas de banana com gemada, credo, que horror. 

Vou matar aquela vaca nojenta que me encheu de pizza só pra agradar aquele motoboy f.d.p. Aliás não vou matar só a vaca da Cláudia, vou matar também o motoqueiro e botar fogo naquela moto de bosta. 

Depois, de tanto xingar a Cláudia, o Antunes foi se acalmando, se acalmando, relaxando, se apagando, sentou na poltrona ao lado da portaria, sob os olhares de compaixão do zelador, do síndico, da Dona Zizinha, do seu Bento, da Dona Francisca e de todos os outros moradores que desceram dos quinze andares pra conferir o motivo daquela gritaria. 

E dormiu o Antunes. Dormiu de boca aberta, babando queixo abaixo por quase uma hora, enquanto todos comentavam a fuga da Cláudia com o motoqueiro. Em pouco tempo o caso virou fofoca na quadra inteira. Já havia uma aglomeração de curiosos na calçada espiando através das grades da frente do prédio, a situação ridícula do homem abandonado. “ - É, fugiu com entregador de pizza, dizia a Dona Zizinha, a maior fofoqueira do edifício, com um sorrisinho matreiro, escondido com as palmas das mãos. 

Quando já estava todo mundo se retirando o Antunes abriu os olhos, pulou da poltrona, olhou em volta, colocou as mãos no rosto, se arranhou com as unhas compridas e bem tratadas que usava e gritou: vaca! Vaca! Vaca! Vagabunda! Mil vezes vaca. É isso que ela é... e se calou. 

“ - Gente, começou tudo de novo”, gritou a Dona Zizinha, avisando o pessoal que já estava indo embora. 

O Antunes fungou forte e aspirou um catarro que estava preso na garganta e um ranho frouxo do nariz, e deixou sair pelos olhos as lágrimas de uma tristeza infinita, e sem se importar com quem estava por perto, disse, com o tom de voz das almas recém traídas: “ - Não. Não e não. Não pode ser verdade. Quem ama aquele moto-boy sou eu. Muito mais do que aquela vaca da Cláudia. De verdade, só eu amo aquele rapaz. Lindooo!” 

A Dona Zizinha, não aguentou e explodiu numa grande gargalhada. Todos os presentes riam daquele inusitado dramalhão. O Seu Bento teve um acesso de tosse. A Dona Francisca sofreu mais um ataque de nervosismo. Lá fora, junto as grades, em coro o povo gritava: bicha! Bicha! Bicha! 

Só o Antunes Chorava.

ANOS DE CHUMBO


Domingo. Início dos anos 70. Tarde chuvosa, fria e escura de um inverno rigoroso. Próximo da capital, o Vilson e o Nenê pararam o carro na frente de um armazém, na beira de uma estrada deserta de chão batido. No balcão de tábua rústica pediram dois aperitivos para esquentar o corpo.
Nem olharam para os lados, quando o Moreira vestindo uma gabardine e terno pretos, perguntou:
“ - De onde vocês estão vindo?”
“ - Da casa dos meus pais.”
“ - Moram aqui perto?”
“ - Logo ali, depois da curva. Atrás daquela coxilha, numa casinha branca, com dois cinamomos na frente.”
“ - São irmãos?”
“ - Não. O Nenê é meu colega.”
“ - Trabalham onde?”
“ - No porto.”
“ - Ah, no porto?!”
“ - Sim no porto!”
“ - Estivadores?”
“ - Não no escritório.”
Foi quando o Fonseca, sujeito forte e mal encarado, também vestindo terno, impermeável e chapéu pretos, enfiou entre os dedos da mão direita uma soqueira de ferro cromado, se aproximou dos dois e disse:
“ - No sindicato?”
“ - Mais ou menos”, respondeu o Nenê.
“ - Mais ou menos?! Como, mais ou menos?! É no sindicato ou não é?”
“ - Sim. Somos escriturários. Datilografamos o movimento do pessoal.”
“ - São do partidão?”
“ - Não. Não! Somos apenas funcionários.”
“ - Mas lá, todos são do partidão!”
“ - Nós não. Somos datilógrafos.”
“ - Não. Não! Lá no sindicato só trabalham os camaradas do partidão!” Falou grosso o Fonseca.
“ - E o Júlio onde anda?” Perguntou o Moreira, chegando mais perto do Vilson e do Nenê.
“ - Júlio? Que Júlio?” Responderam os dois ao mesmo tempo. - “ Não conhecemos nenhum Júlio.”
“ - Fecha as portas e as janelas do armazém”, ordenou o Moreira para o Samuel, dono do estabelecimento.
O Moreira e o Fonseca retiraram os chapéus, os sobretudos, os paletós, arregaçaram as mangas das camisas brancas, encostaram os olhos nos olhos do Vilson e do Nenê:
“ - Quer dizer que não conhecem o Júlio? Pensam que nós somos otários, seus comunistas de merda?”
Começou uma sessão de pancadaria com cassetes, socos e pontapés por mais de 30 minutos. Depois ficaram o Vilson e o Nenê deitados, encolhidos no chão, destroçados, sobre uma imensidão de sangue.
O Moreira sacou do 44, e o Fonseca também, depois de arrancar a soqueira da mão.
“ - E o Júlio, porra? Onde está o Júlio? Fala, comunista desgraçado!” Forçou com cara e alma de bandido, o Moreira.
“ - Não sei. Não sabemos! Não conhecemos nenhum Júlio! Nunca ouvi falar.” Respondeu o Vilson gemendo baixinho, com o rosto deformado; já sem os dentes da frente, assoprando uma gosma avermelhada.
Dois tiros. Em seguida, mais dois disparos completaram o serviço nas cabeças do Vilson e do Nenê.
O Moreira olhou para o Samuel e disse: “ - Coloca os corpos no automóvel deles, com muita gasolina e atira o carro no barranco de sempre. E depois lava esse assoalho e não deixa um fio de sangue. E se te perguntarem alguma coisa, tu não viu nada. Tu nunca ouviu nem viu nada! E qualquer movimento estranho, nos comunica. Continua nos mantendo informados. Entendeu?
“ - Claro. Sim senhor!”, respondeu subserviente o Samuel.
Entraram na camionete Veraneio, que estava escondida nos fundos do armazém do Samuel, seguiram pela estrada de chão, fizeram a curva, passaram a coxilha, estacionaram embaixo dos dois pés de cinamomos, bem na frente da casinha branca. Desceram, e o Moreira gritou:
“ - Júlio!”
Avançaram em direção a porta.
E o Moreira gritou de novo:
“ - Júlio! Júlio! Abre a bosta dessa porta, Júlio!
A porta continuou fechada. O Fonseca deu um empurrão com o ombro e as duas folhas se abriram.
Entraram com os 44 em punho, e de imediato, na cozinha, deu-se um estampido.
Lá fora, a chuva batia forte e o sol continuava escondido atrás das nuvens negras, que anunciavam uma longa e assustadora escuridão.

MOÇO, POR FAVOR, NÃO COME A MINHA MÃE

Igual a outras moças desamparadas, a Angelita começou cedo na prostituição. Veio para a cidade grande com o firme propósito de se esforçar para espantar a miséria em que vivia. 

Primeiro trabalhou numa casa de família, logo depois num balcãozinho vendendo bugigangas até que aprendeu a ganhar a vida vendendo o próprio corpo. Em seguida engravidou do Pedrinho e de mais duas meninas, sem contar os abortos feitos com agulhas de tricô. 

Na rotina do seu ofício, recebe alguns clientes em casa e outros atende onde é chamada. Onde mora, eles entram e saem na frente das crianças, que ela pensa que não compreendem o motivo daqueles rápidos encontros. E dos que frequentam a sua cama, tem um antigo, que desde o começo se satisfaz naquelas carnes vendidas por quilo. Até leva a mulher pra jantar de vez em quando, num restaurantezinho escondido ali por perto. 

Pois, de novo chega esse senhor, o Júlio, numa camionetona prateada, e antes de entrar, alcança uns doces e uns trocados para o Pedrinho, que de cabeça baixa estende a mão frouxa e faz um sorriso amarrado por um sufoco, complexado, daquele jeito que os envergonhados sorriem quando agradecem qualquer ajuda. 

Angelita já passou dos trinta. Está gasta, se terminando, de tanto servir aqueles que lhe procuram. Ultimamente, apareceu uma tosse seca e insistente pra atrapalhar, mas ela não pode parar. As suas crias precisam comer. Não tem hora para trabalhar: de dia, de noite, de madrugada. Quando falha a clientela fixa, vê o dia amanhecer, com as pernas de fora numa esquina fria, esperando pra virar despejo de alguém. Muita bebida, cigarros e drogas para conseguir suportar o desgaste da atividade. 

Nas suas prolongadas ausências, fica em casa o Pedrinho com dez anos e sem escola, cuidando das duas pequenas: uma com quatro, outra com três; todos de pais incertos. 

Magra, amarelada, cai de cama a Angelita. Tossindo e botando no escarro os primeiros traços de um sangue vermelho vivo misturado com umas manchas amareladas de pus. Abandonada, ninguém lhe atende, a não ser uma colega de profissão, um ou outro travesti que levam a cada semana uns pacotes de comida, umas notinhas miúdas e umas moedas; naquela pobre solidariedade que brota daqueles que vivem como marginais. 

Passam os dias, e não mais do que em meia dúzia de semanas aumenta a debilidade física da Angelita. Os olhos se encondem opacos lá no fundo tal dois bichos assustados em suas tocas. Os lábios murchos trincam, as mãos descarnadas tremem, e por cima do assoalho e das cobertas sai um cheiro podre dos catarros cobertos de sangue e daquele suor feito de água doente, filhos daquela tuberculose desgraçada que empestam as três pecinhas da casa. Está ali, a Angelita, sem se alimentar, febril, sem forças, esquelética; voz rouca no último fiapo e uma dor insuportável no peito, se aprontando pra partir daquela vida sem valor. 

As duas meninas ranhentas, há muito tempo sem banho, pés descalço, com uns vestidinho de terceira mão, brincam de mamãe com umas bonecas velhas e sujas, abandonadas no pátio poeirento. Pedrinho, perdido, choroso, quase só no mundo, atordoado, não sabe o que fazer. Fica por ali, frágil, sentado nos degraus da porta com as duas mãos segurando o rosto, olhando meio pai, meio irmão, meio nada para as meninas, sentindo no coração as ferroadas venenosas vindas daquele insensato desmazelo. 

Tardezinha, véspera de natal, estaciona a camionetona prateada. Desce o Júlio e vai em direção a porta. O Pedrinho levanta a cabeça e vê aquele homem enorme na sua frente. Sem pensar, e pela primeira vez decidido, olhou firme o rosto do Júlio e disse: “ – Moço! Por favor, não come a minha mãe. Vai lá dentro, e só olha, o jeito que ela está !” 

Na saída, três minutos depois, Júlio deixa umas notas graúdas e o cartão de visita nas mãos do Pedrinho, com uma aviso: “ – Quando tudo terminar, telefona, meu filho”.

AS MULHERES QUANDO SE AMAM É PRA VALER

No colégio, no tempo que um dos ciclos de ensino se chamava ginásio e o seguinte de científico ou clássico, coisas essas estranhas, que os mais novos nunca ouviram falar, a Suzana, a Cristina e o Oscar, estudavam na mesma turma. Além de colegas eram amigos. Tão próximos que dia sim, dia não, alegando a necessidade de revisar as matérias, a Cristina pernoitava na casa da Suzana. Aos domingos iam os três nas matinés, que é outra expressão jurássica, que o pessoal de hoje nem sabe do que se trata. 

Assim passaram-se os anos, a faculdade, e os três sempre juntos, desfrutando aquela afetuosa convivência. Até que, por razões desconhecidas, a Suzana, inesperadamente, aceitou casar-se com o Oscar, pra desespero da Cristina, que em protesto não compareceu na igreja. Nem na festa. Ficou em casa chorando no quarto. 

Com a formação de uma dupla, desfêz-se o trio. 

O casal, recém formado em medicina foi trabalhar no hospital de uma cidadezinha distante: Areia Santa. E por lá viveram aproximadamente um ano e meio. O Oscar além dos plantões dos dias de semana trabalhava nos sábados e domingos quando a Suzana viajava para a capital. Enquanto que a Cristina, também médica, atendia no seu concorrido consultório, aqueles que tinham a cabeça desnorteada. 

Um dia não suportaram a monotonia e a rotina da cidadezinha e das suas vidas como marido e mulher, e resolveram se separar, e separados voltaram para a capital e foram de início morar com os seus pais e não mais tiveram contato. Durante três anos não mais se viram. Nenhum deles sabia nada sobre a vida do outro. 

Numa noite de sexta-feira o Oscar sai atrás de diversão. Está passando por um local movimentado, ponto de encontro na noite numa rua com grande concentração de barzinhos legais e descolados. Lugar de gente bonita e alegre. Um cenário onde lançam moda, idéias e procedimentos, e onde ninguém repara os comportamentos de ninguém. Coisa de cidade grande que deixou de ser provinciana, onde, até os artistas famosos são levemente notados sem serem assediados com todo aquele devotamento piegas que os fãs mais simplórios dedicam para as celebridades. 

Pois, vai andando pela calçada, faceiro o Oscar, assoviando. De mãos nos bolsos. Para diante de um barzinho, olha lá pra dentro, vai adiante, para noutro, escuta uma música ao vivo, anda mais um pouco, olha o movimento na calçada, para de novo e assiste um artista de rua que com habilidade maneja os seus malabares. Dá mais uns passos, levanta a cabeça e vê entre os prédios altos o encanto da lua cheia brilhando bonita no céu. 

Desce o olhar, e então os seus olhos viram aquilo que jamais deveriam ter visto. Pois viu, reviu, piscou e viu de novo, confirmou a visão e tremeu. Chegou mais perto, quase encostou-se na mesa, apoiou as mãos no espaldar da cadeira vazia. E viu outra vez, e sofreu. 

Ali estavam, abraçadas, com as bocas grudadas num beijo apaixonado, com a felicidade reluzindo em suas peles douradas, a Suzana e a Cristina, cada uma usando idênticas alianças de matrimônio no anular da mão esquerda. 

Todos ouviram um grito de bicho: “ - O que é isso Cristina? Pelo amor de Deus, o que é isso Suzana?” 

As duas desfizeram o abraço, desmancharam o beijo, desarmaram a paixão e olharam sem surpresa para o Oscar. 

- É o amor, meu querido. Sempre nos amamos - disse a Susana. 

- Sempre se amaram?! De que jeito? Desde o tempo do ginásio? Do científico? Da faculdade? 

- Claro bobinho. Desde sempre. Vais dizer que nunca suspeitaste? 

- Lógico. Agora faz sentido. As noites que vocês duas dormiam juntas, na tua casa, Suzana. As viagens nos finais de semana que tu fazias de Areia Santa pra cá. Fechou. Caiu a ficha. Entendi tudo. 

- Mas Suzana, por que tu aceitaste casar comigo? Vai, seja sincera? 

- Queres saber? Queres mesmo saber? Então tá! É o seguinte: antes de casar com a Cristina, eu precisava ter certeza que viver com homem não era o meu negócio. Desculpa, se te usei, Oscar!!! 

Passado o susto, o Oscar afastou a cadeira da mesa e sentou-se junto com as duas. Pediu uma rodada de bebida e com um certo ar de deboche perguntou: tem uma vaguinha nessa dupla? 

- Se olharam os três, brindaram e tomaram de um só golpe as tulipas de chope. Se levantaram e se abraçaram. Depois encostaram as cabeças e disseram umas palavras doces que só eles ouviram. Pareceu que selavam um acordo e comemoravam alguma coisa importante. 

- Lá fora, a lua cheia já tinha ido embora para encantar outro lugar.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A LANCHA VERMELHA

Aquilo que desconhecemos não nos faz falta. Se nos passa despercebido é como se não existisse. Inexistindo, ignoramos; então, não precisamos. Quando o nosso campo de visão é pequeno, este é o tamanho do universo, e os nossos desejos são saciados com o que contém o mundo que nos rodeia. O restante fica por conta dos nossos sonhos, da imaginação. 

Quando eu era guri lá na fazenda do meu avô, os brinquedos, a gente não ganhava. Tínhamos que inventá-los. Brinquedos comprados em lojas, com esses, a gurizada não brincava. O jeito era, de ossos de animais fazer tropa de gado, nadar nos rios, açudes e lagoas, pescar, andar a cavalo e ouvir causos de assombração. E não me lembro de ter sido infeliz. 

Eu tinha 10 anos quando viemos para a capital. Era preciso deixar a escola rural e continuar estudando. Na frente da minha rua existia (ainda existe) um grande parque e dentro dele um lago, onde as pessoas se divertiam nos pedalinhos. 

Um dia passeando na sua margem enxerguei naufragada no fundo barrento, uma pequena lancha de lata, colorida de vermelho. Quase não acreditei no que estava vendo. Entrei na água, mergulhei com roupa e tudo, e trouxe-a entre as mãos. Era um lindo brinquedo; novinho ainda, recém ali deixado. Uma exata miniatura daquelas que existiam de verdade; que eu nem sabia que existia brinquedo assim no mundo. 

Sabe, sobre a emoção de ver uma estrela no céu, brilhando só para ti? Foi o que significou aquele barquinho de lata para mim. Iluminou a minha alma, esquentou o meu coração de menino ainda desacostumado com tanta novidade. 

Agarrado na lanchinha corri que nem um louco para casa. Lavei, sequei, acariciei o meu tesouro, a minha preciosidade que eu havia buscado no fundo das águas do lago. Aquele barquinho, além de ser uma descoberta, trouxe embarcado nele, o sabor da conquista, da aventura; da sorte em possuí-lo. Sequer brincava com ele, com medo de estragá-lo. Só apreciava a minha lancha de lata vermelha. Seria minha para sempre, pensei. Precisava durar aquela surpresa. 

Depois ela se perdeu nas mudanças desta vida. Mas foi o primeiro brinquedo; brinquedo mesmo, que eu tive, que não havia sido feito pelas minhas mãos. 

Devia estar ali me esperando. Decerto, um outro menino tão acostumado com esses brinquedos comprados, que devia ter dezenas deles, pensou: “ - vou deixar este barquinho aqui no fundo do lago, para aquele outro guri que está chegando do campo, e que nunca teve um nem parecido com este. Vou dar de presente para esse menino que não conheço, este divertimento que ele tanto necessita!” 

Assim foi, que recebi daquele menino desconhecido, por via indireta, quem sabe, o mais valioso presente da minha infância. 

Mais adiante ganhei uma bola de futebol. Que alegria me deu aquela bola. Até dormia agarrado com ela, bem assim como depois de adultos nos seguramos nos amores da gente. Depois veio uma bicicleta que fez a liberdade ser minha companheira. Ainda chegaram outros adequados à idade que eu tinha. E vieram livros, muitos livros onde descobri outros mundos que também não imaginava que existissem. 

Mas aquele barquinho de lata vermelho, com motorzinho movido à pilha, mais do que todos os outros, até hoje bate forte na minha lembrança, navegando bonito na minha memória. 

E quero ter a certeza que ele não estava ali por acaso. Prefiro que seja assim: que um menino ali deixou-o para mim. Sabendo que eu estava chegando de um universo restrito, esqueceu o barquinho de propósito, no fundo d'água, para eu ir lá no fundo buscá-lo; brinquedo tão querido! 

Hoje, sinto saudades dessas emoções simples, puras. Os sonhos atuais ficaram muito complicados. O tempo endureceu a caminhada. Até me aconteceu, neste instante, agora mesmo, já menino velho, de me surpreender precisando brincar um pouco. De ter sido aquele barquinho que, outra vez, se mexeu dentro do meu peito. 

Obrigado, menino que não conheci, que agora deve ser um homem e um pai feliz, que ainda deve manter o generoso hábito, ensinando os seus filhos, a deixarem, distraidamente, barquinhos mergulhados nas águas dos parques, para que outros, assim como eu, possam ter a alegria e a felicidade de encontrá-los. 

Gracias, viejo!

A VIAGEM: UMA MENINA CHAMADA ESPERANÇA

Na noite que o ponteiro do grande relógio que marcava o tempo no mundo caiu na terra, o tempo parou e nunca mais passou. Ficou tudo como estava. Só que para melhor. E como era noite de lua cheia, noite de lua cheia, para sempre ficou. 

A lua brilhou e fez dia prateado no céu. E dela voou uma fada com olhos cor de ametista, que disse para todos que sorriam: “ - boa noite, noite boa! Doravante, nunca mais existirá pesadelos, insônia e mendigos dormindo na rua.” E a vendedora de flores ficou de dona do jardim. E a abelha fez um mel branco de uma nuvem que baixou. 

E após esse inédito acontecimento, as pessoas não mais envelheceram, e acabaram as dores do corpo e as da alma. E o amor durou para sempre. 

O operário que batia o prego na tábua largou o martelo. O guarda aposentou o apito. O soldado botou a bazuca no lixo. O vendedor deixou a maleta no escritório. O domador abriu a porta da jaula e libertou a pantera, o macaco e o leão. O poeta caprichou ainda mais nos versos, e a jovem bailarina subiu no chafariz de águas dançantes e dançou, e dançou, para todos olharem admirados. E o mágico de casaca prateada olhou os homens carrancudos que só sabiam contar dinheiro, e retirou da cartola, mil palhaços coloridos. 

O rei atirou a coroa de ouro para o povo. O juiz guardou a toga preta na gaveta. A terra seca virou lavoura. A madeira do trono do tirano fez brasa boa, e a fome acabou. E não tinha mais criança sem aula. Até o machado do lenhador quebrou e a floresta agradeceu. O rio, de novo, se fez rio. E a prostituta se casou. 

Os deuses e os demônios falaram baixinho, porque não eram mais necessários; o pecado desaparecera, e a culpa também. Nada mais seria pecado. E as proibições foram extintas. E a morte também morreu para nunca mais voltar. E como antes na história, que nunca ninguém havia visto, nasceu um arco-íris noturno que fez uma tiara sobre a lua. E o bêbado olhando aquela beleza toda, se agarrou no poste e gritou: “ - apareceu o remédio para o mundo!” As gaitas abriram os seus foles e os violinos vibraram as suas cordas, e o cantor cantou com sua voz de passarinho, e todos dançaram. Até os solitários largaram os copos de aguardente e foram formar um par. E um pombo correio azul com cauda de pavão pousou no meu ombro com um bilhete teu, minha amada, que eu nem esperava mais. 

Então acordei, pensando que havia sonhado. Abri a janela e vi que estava enganado. Era tudo assim mesmo. Dormindo eu vi tudo aquilo acontecer. 

Saí para a rua e fui com os outros comemorar aquela espantosa transformação. Tropecei no imenso ponteiro do grande relógio que marcava o tempo no mundo, que não mais possuía aparente serventia; que mostrei para uma menina linda, de longos cabelos brancos ao meu lado, com jeito de gente, que trazia um cometa dourado pintado no rosto, e o lábios bem desenhados na forma de um beijo, mais os raros olhos cor de ametista e as mãos transparentes feitas de luz. 

Montamos no ponteiro e ele levantou voo e voamos pelas estrelas. E lá de cima, ela, repetindo o gesto da mão confiante do camponês, semeava sobre a terra, coloridas sementes de sonhos; aquelas, que se bem cuidadas, depois que germinam, sempre fazem tudo acontecer. 

A menina, dona da viagem, ficou lá no seu planeta, regido pela lua. Conversei um pouco com eles, ficamos amigos e prometeram outra visita para breve, e que de lá, zelariam pelas mudanças acontecidas. 

Assim que voltei, guardei o meu ponteiro na garagem, tirei tinta da caneta e fui escrever esta história, a pedido daquela linda menina, que se chamava Esperança.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A VOCAÇÃO DA JUANITA

A Juanita desde pequena tirava a roupa. Em público. Bastava um descuido e pronto, lá estava a Juanita nua. De nada adiantavam os conselhos, as repreensões, os castigos e os longos discursos moralizantes; uma e duas e a guria ficava em trajes de Eva. 

Depois, no colégio, a mesma coisa. Chegava a hora ao recreio, todos no pátio pegando sol para a Juanita repetir o antigo gesto. Foi expulsa da escola. Daquela e de todas as outras. 

Sem resultado as consultas com psicólogos, psiquiatras e medicação pesada. Pura perda de tempo os serviços espirituais, rezas, promessas e despachos na encruzilhada. Quando menos esperavam, ela aparecia bem faceira, toda orgulhosa, mostrando o corpinho, que já, prematuramente, pegava jeito de mulher. 

Festa de aniversário em casa era um problema. Nem tinham mais gosto em comemorar. O pai e os irmãos mais velhos faziam longas reuniões; pediam pelo amor de Deus para ela se comportar. E a Juanita prometia bom comportamento. Mas na hora do parabéns a você, como sempre, bem naquela hora de alegria, a danada subia numa cadeira para dar início no seu espetáculo particular. Vergonha geral diante dos vizinhos, parentes e demais convidados. 

No seu baile de 15 anos foi um horror. No momento da valsa, todas as debutantes alinhadas com seus pares no meio do salão. Foi iniciar os primeiros acordes do Danúbio Azul, para a Juanita arrancar pelo pescoço, o bufante vestido branco, depois a calcinha e o sutiã. Ficou só de sapatos para escândalo da sociedade local, ali toda reunida. Isso sem falar, que com essa pouca idade, já havia experimentado os prazeres do sexo, com todos os rapazes do bairro, mais os amigos dos irmãos, mais os desconhecidos que atraia por onde andava. Aquilo já nem era um desvio moral ou safadeza, parecia uma forte vocação. Uma espécie de dom. Uma predisposição que surgia ao natural, assim como a planta que brota da semente. 

De tanta vergonha acumulada decidiram colocar a Juanita num rígido internato de freiras, reconhecido pelo severo regime disciplinar, famoso por endireitar as moças mais rebeldes da redondeza. Carregava esta decisão do pai, uma desesperada e derradeira tentativa de correção. Se ali não desse certo, o problema, definitivamente, não teria solução. 

Até que ia tudo bem. Já havia passado mais de um semestre sem que Juanita tiveste uma recaída. Parecia curada, diziam em casa, aliviados. 

Pois chegou o fim do ano, com a cerimônia de entrega dos boletins. As famílias das internas em peso lotavam o auditório. As freiras com seus hábitos engomados deram início naquela tão aguardada solenidade anual, com a presença das autoridades locais: bispo e sacerdotes, vereadores, secretário de educação e o prefeito, delegado de polícia, promotor de justiça e o meritíssimo juiz da comarca, além de outros metidos a coisa importante. Foi, a freira mestre-de-cerimônias, chamando uma a uma cada interna até o palco, que abaixo de longos aplausos do público, receberiam das mãos da madre superiora o tal do boletim. 

Quando chegou a vez da Juanita, seus pais e irmãos aclamaram em pé, não apenas a aprovação para o ano seguinte, mas, principalmente, a recuperação da guria daquela estranha e vergonhosa maldição, ou fosse lá o que fosse aquilo. 

Pois aconteceu. O que não podia acontecer aconteceu novamente. A Juanita subiu os degraus, parou na frente do palco, virou-se para a assistência, abriu um sorriso desavergonhado e desbotoou o vestido azul marinho, uniforme da instituição, e ficou, para espanto geral, completamente pelada. Um escândalo. Duas ou três feiras correram até ela, cobrindo seu corpo com o vestido caído. O bispo e os padres levantaram da mesa das autoridades desceram apressados a escadinha e dispararam em retirada. Nova expulsão. 

Em casa, a Juanita levou uma surra, mas uma surra tão grande, que se fosse nos dias de hoje, seria caso de polícia. Ficou com o corpo, agora já de moça feita, todo marcado pelos lanhaços da cinta do pai. 

Encerraram a guria no quarto, para sempre, diziam com raiva. Nem sol teria direito. Mas foi a Juanita completar dezessete anos, para fugir de casa. Deve ter fugido para sempre, porque apesar de intensas buscas pela cidade, nem rastro da sua existência. 

Depois, surgiu um rumor que ela estaria trabalhando numa requintada boate, em famosa praia uruguaia, onde fazia shows de streptease e programas com clientes de boa fortuna. 

O pai nem foi procurá-la. Certa noite, quando perguntado, na hora do jantar, apenas disse: “ - deixa ela por lá. Agora a Juanita deve estar feliz, afinal, vocação é vocação. Não se deve interromper uma carreira feita de um talento nascido dentro do berço. É uma dádiva poder trabalhar no ofício para o qual a gente nasceu!” 

Terminou de falar, olhou recriminador para a mulher e pediu outro prato de sopa e mais um copo de vinho para o filho mais velho. 

“ - Porque essas inclinações, sempre passam de mãe para filha. Com DNA o assunto é sério. Genética, é coisa que não se brinca.” Concluiu.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A BATINA DO PEDÓFILO

Esta história me foi narrada por um morador do lugar onde o fato aconteceu, e pai de uma das crianças atacadas, logo após a sua absolvição em demorado processo criminal. Vou me ater apenas no que escutei, portanto, sem invencionice. Então, lá vai: 

Fala a verdade, desgraçado! Diga por esta boca nojenta porque você estuprou minha filha! Fala, padre canalha! É tão menina, ela ainda. Só 11 anos, a coitadinha; um anjo inocente. Vai, te confessa agora monstro, filho do satanás! Você acabou com a nossa vida; desonrou a minha família, seu miserável! 

Com as mãos de homem forte agarradas no pescoço do padre, o Joaquim, buscando forças no ódio, na revolta, no desespero, estrangulou o homem da igreja. Depois da besta caída, levantou a batina e cortou fora a genitália e atirou-a no fogo que ardia na lareira da casa paroquial, naquela tarde fria de inverno. A seguir, após enterrar até o cabo, a lâmina da faca no peito do padre desfalecido, disse: “ - esta tua morte é por conta de todos os meninos e meninas que você estuprou aqui na nossa cidadezinha, seu crápula; demônio fantasiado de santo!” 

Antes, porém, assim como todo covarde, o padre pediu clemência para o Joaquim, e para Deus, misericórdia,. - Ora Deus numa hora dessas! Ora pedir perdão por crime dessa espécie. Onde já se viu perdoar esse tipo de crime. Nunca se dá ouvidos para este tipo de bandido! A justiça é aqui e agora, feita pelas minhas mãos! - Gritava o Joaquim, transtornado. 

“ - Vieste há anos para o nosso lugar. Colocamos em ti toda a nossa confiança. Entregamos para ti, com pureza na alma, todos os nossos filhos, para aprenderem os ensinamentos de Deus. E vem você, padre imundo, e abusa das nossas crianças; as mais bonitinhas e indefesas. Traíste a nossa mais pura confiança. Tínhamos a infinita certeza que elas estariam protegidas nas tuas aulas de catecismo, homem infame! Escutamos com respeito os teus sermões, recebemos em nossas bocas as hóstias envenenadas por estas tuas mãos sujas.” 

“ - Agora, por toda a cidade, as famílias choram seus filhos deflorados. Foste dono da nossa boa-fé. Você nos destruiu padre pedófilo. Escondeste atrás da fachada de homem religioso, por trás das imagens dos santos que ornam as paredes deste templo, por trás de gestos estudados e desta voz treinada para ser macia, as tuas taras mais sórdidas, os piores defeitos de caráter que um homem pode desenvolver. Por que não suspeitei de ti? Por quê? Dizia o Joaquim desesperado junto ao corpo do padre; um senhor com mais de 60 anos, o sacerdote. 

Colocou o corpo sobre os ombros e atirou-o no gramado da praça em frente a igreja e mandou chamar o povo para presenciar aquela inevitável vingança. 

Veio a população; as mães e pais dos meninos e meninas seviciados. Confusos, choravam e riam ao mesmo tempo. 

As crianças ficaram em casa, adoecidas. Não saíram mais dos seus quartos. Algumas delas destruíram os seus brinquedos. A infância foi arrebentada. Nada mais teve graça e encantamento. A inocência fora ultrajada. Sentiam-se sujas, culpadas, pecadoras, aquelas pequenas almas que tinham tudo para crescerem felizes. 

Depois, as famílias vítimas do padre foram de mudança para cidades distantes. Buscavam a esperança que um novo lugar cicatrizasse tão profundas feridas. Também não suportaram conviver com o trauma e a vergonha diante da pequena comunidade. Ser apontado na rua, é ser ferido de morte todos os dias. 

Nunca mais ninguém foi o mesmo. E as crianças cresceram traumatizadas. Os especialistas dizem que a dor vai durar para sempre. Que algumas não terão forças para viver. 

Bem que podia ser apenas obra de ficção, esta história. Infelizmente, aconteceu e ainda acontece próximo de altares, crucifixos, livros sagrados; sob os olhares de imagens adoradas; e tão distantes do que o Filho do Pai ensinou, que me deu repulsa em escrevê-la. Mas, nossas vozes devem gritar a nossa indignação. Que eles devem parar e desaparecerem da face da terra junto com suas batinas pecadoras. 

Durante o tempo em que escrevia, uma amiga jornalista e escritora me acompanhava na mesa do café. Pediu que eu não publicasse este texto. Enquanto ela relia, refleti sobre a divulgação. Por fim decidi. Discordei: - “ escrito está. Agora leia quem quiser. Enquanto existir um pedófilo vivo ou em liberdade, alguém tem que denunciar, registrar a raiva no meio onde atua, deste crime tão hediondo. Não podemos permanecer indiferentes. Porque, minha querida, sempre foi assim. Quando não posso gritar, minha caneta grita por mim.” 

Era o que tinha para dizer.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

AS CONTADORAS DE HISTÓRIAS

Catarina perdeu os pais muito cedo. Era ainda uma criança. Depois foi criada pela avó, viúva. Viviam só as duas naquele casarão antigo, que de tão grande não cabia inteiro dentro dos olhos da menina. Cercada de livros tomou gosto pelas histórias de ficção, dessas que saem da invencionice. E esperava ansiosa a hora de dormir, para escutar atenta, todas as noites, com os olhinhos azuis bem acesos, que pareciam duas bolinhas de luz, os causos que a Vó Zilda lhe contava. Então adormecia envolvida por um mundo mágico, feito do mais puro encantamento. 

A história que a Catarina mais gostava de ouvir era aquela da girafa que tinha um pescoço muito comprido, tão comprido, que subia tão alto, que podia enfiar a cabeça dentro das nuvens que navegavam pelo espaço. Acontece, que a dona girafa era muito mentirosa, e inventou que espiava tudo que acontecia lá no céu, e relatava para os outros animais da floresta, tudo aquilo que havia visto lá em cima. Disse, a girafa mentirosa, que quem mandava no céu era um girafão enorme que usava uma coroa de rei na cabeça, e que todos os bichos que lá viviam, lhe obedeciam. Esperta, ela avisou, que o rei girafão do céu, mandou dizer que aqui na terra, todos os animais, a partir daquele dia, deveriam respeitá-la e obedecer as suas ordens. E todos acreditaram na lorota da espertalhona. Assim, ela se transformou na rainha girafona, que chefiava, mandava e desmandava em todo o reino animal. Todos corriam para atender tudo o que ela ordenava. Até que um dia, quando a danada foi espiar no céu outra vez, um macaquinho muito esperto e curioso, o único que tinha o rabo vermelho, subiu rápido, pescoço acima da dona girafa, sentou na sua cabeça, e agarrado nas suas orelhas, meteu a cabeça no meio das nuvens, olhou em volta e desceu correndo, de rabo erguido, louco para contar o que havia visto. Trepou no galho de uma árvore gigante e gritou para a bicharada: “ - é mentira dela. Não tem ninguém lá em cima daquela nuvem. O rei girafão não existe. É tudo invenção da girafa.” 

O leão que havia sido expulso do seu trono pela força da história enganosa, criada pela impostora rainha girafona, voltou a ser majestade, e nomeou o macaquinho do rabo vermelho como seu secretário particular, e colocou a girafa mentirosa de castigo, obrigada a repetir, enquanto vivesse, em voz alta para todos ouvir: “ - mentir é feio! Mentir é feio! Mentir é feio...” Além da proibição de nunca mais poder espichar o pescoço para espiar o que existe acima das nuvens. 

A Catarina ocupou a sua infância, ouvindo e lendo as mais bonitas histórias, aquelas feitas para trazer um mundo novo na imaginação das crianças. Passou o tempo, estudou, tornou-se professora de literatura e escritora de histórias infantis. Normal e boa andava a vida, até que a Vó Zilda já muito idosa, e necessitando de cuidados especiais foi morar numa casa geriátrica. E lá estava a Catarina, todos finais de tarde, sentada ao lado da cama, conversando e contando histórias para a velha senhora, quando ela adormecia com a expressão de bem-estar. 

Um dia, a Vó Zilda pediu para a Catarina: “ - me conta aquela história que você tanto gostava. Aquela da girafa mentirosa e do macaquinho do rabo vermelho. E depois conta aquela da galinha que ficou careca, e mais aquela outra, tão bonita, do anjo que cuida das crianças e dos velhos.” Bem quietinha a Vó Zilda dormiu, antes que a última história terminasse. 

Certo final de tarde, já anoitecendo, muito enfraquecida, a Vó Zilda chamou a Catarina para bem perto de si e disse: “ - vou morrer esta noite, e quero te agradecer, minha neta querida, a tua presença permanente, e por teres animado e tornado fantástico os meus últimos tempos de vida, com as narrativas que você me contou. Aquelas mesmas histórias, que lá atrás, quando você era menina eu te ensinei. E repetiu uma antiga sentença que sempre dizia: é o circulo se fechando. Ele sempre se fecha, minha filha! A missão do círculo, é um dia se fechar. O círculo sempre se fecha... sempre se fecha... 

A Catarina deitou mimosa na cama ao lado da avó, a envolveu com um quente e amoroso abraço, e com os rostos encostados um no outro, falou baixinho, com todo o carinho que tinha guardado no coração: “ - mas a morte não existe não existe, vó amada! Isso que todos chamam de morte, é apenas um sonho bonito que não termina nunca. A gente faz de conta que vai dormir e solta a imaginação, pensando nas imagens boas, nos bons momentos que vivemos, nas pessoas que enfeitaram a nossa vida, nos jardins que plantamos e nas belas flores que colhemos, e nos nossos bichinhos de estimação. Aí então, vó querida, a gente dorme e vem o sonho que embeleza tudo na nossa volta, e a agente nem sabe que morreu. Fica ali sonhando para sempre! Sabes vó? É lá onde nasce o sonho que são fabricadas as ilusões, as fantasias; todas as histórias que contamos uma para a outra e que tanto maravilharam as extremidades das nossas vidas.” E continuou a Catarina: “ - Vó Zilda! Não somos ossos, corpo, pedra, muito menos ferro. Somos feitos de sonhos e imaginação. Estes sim, fazem os ossos, o corpo, a pedra, o ferro, e as asas que trazem a alegria para a nossa existência. A fantasia, vó! A fantasia vó! Sem ela é impossível a gente viver!” 

A seguir, a neta contou várias histórias para a vó, de um jeito que nunca antes havia contado: com mais força, mais vida, com mais humanidade, até o momento em que a Vó Zilda, amparada, subiu para o céu. 

Morreu a Vó Zilda nos braços da Catarina, com um sorriso desenhado no rosto. Decerto achando graça da história da girafa mentirosa e do macaquinho do rabo vermelho. 

A Catarina levantou-se da cama, abriu a janela do quarto e jurou que viu a Vó Zilda bem faceira, montada e agarrada no pescoço da girafa, que passara voando embaixo da lua cheia, com o macaquinho sentado na sua cabeça, que sacudia o inquieto rabo vermelho; festeiros, acenando, como que fazendo um convite para ela, a Catarina, também participar daquela brincadeira. 

A Catarina sentiu uma brisa suave lhe invadir a alma. E com os olhos firmes na imagem que via, retribuiu o aceno com as duas mãos, e pensou: - sempre que alguém conta uma história, cria uma surpresa e um sonho na imaginação das pessoas; que as vezes, até se transforma em realidade!