terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

UMA MULHER DIFERENTE

O Guaraci era um rude peão de estância. Quase não conhecia cidade. Nasceu e se criou no campo envolvido nas lidas campeiras. Apesar da idade, trinta anos, mulher, assim, na intimidade, ainda não havia experimentado. Se desapertava sozinho, ou com as potrancas e leitoas da fazenda. 

Fim de ano, reuniu as notas poupadas, fez um vale com o patrão e se veio para a capital saber das novidades e provar as doçuras da cidade grande. 

Início da noite desembarcou na rodoviária e hospedou-se num hotelzinho ali por perto. Tomou um banho e colocou a melhor pilcha que tinha. Informou-se com o porteiro onde poderia farrear com as mulheres da vida. 

Entrou numa boatezinha decadente, com luz negra e música dor de corno. Chegou no balcão, pediu um liso de pura e uma cerveja, quando se aproximou a Kris no seu costado: 

“ - Paga uma bebida, meu bem?” 

Olhou aquela baita loira quase pelada que já se enroscava no seu pescoço, e feliz, disse que sim. Beberam, dançaram. Sentaram no sofá, se abraçaram e se beijaram. E a noite foi passando. 

“ - Mas que flor de mulher! Lá nas minhas bandas não existe nada parecido! Nem as filhas do patrão!” Falou baixinho, pensando alto, o Guaraci. 

“ - Vamos subir para o quarto, meu bem?” Falou com uma voz meiga e aveludada, a Kris. 

Deram de mão em mais duas cervejas, e um copo grande de pura e subiram as escadarias de madeira encardida. A Kris tirou a pouca roupa que usava, e o Guaraci estremeceu, olhando aquela belezura de seios fartos, nádegas fortes e salientes, pernas grossas e longas, e uma boca mágica, capaz dos melhores beijos. Viu ali, pela primeira vez na vida, o que antes só imaginava e que fazia doer o seu pensamento. 

Deitaram, e o Guaraci, por instinto, deliciou-se no corpo perfumado da Kris. Na verdade, esgotou-se. E gostou. E ela igualmente. E ele por ela apaixonou-se. É difícil acontecer, mas ela, também com trinta anos, experiente profissional do sexo, quedou-se pelo Guaraci, e lhe dedicou o melhor dos seus carinhos. 

Início da tarde acordaram. A Kris colocou uma roupa mais discreta e rumaram para o hotelzinho onde ele estava hospedado. Depois, foi uma semana de noitadas, cervejas nos botecos, muito sexo e troca de palavras doces, que o Guaraci nem sabia que existiam. 

Uma noite, antes de partir de volta para a fazenda, o Guaraci disse para a Kris: 

“ - Casa comigo?” 

“ - Mas amor, eu sou uma mulher diferente. Eu sou quase um homem! Melhor, sou travesti! Melhor, sou transex! Vai dizer que não notou?” 

“ - Isso não tem a menor importância! Vamos lá pra estância. Vai morar no meu rancho e ser a minha mulher!” 

“ - Mas o que vão dizer por lá? Eu não sou uma mulher! Mulher; mulher legítima, eu não sou!” 

“ - Ninguém vai notar nada. E se comentarem, eu grito forte, dou de mão nos meus ferros e exijo respeito! E, de mais a mais, não vamos desperdiçar todo esse empenho. Não posso botar fora esse interesse xucro, que agora, feito um potro mal domado, corcoveia forte no meu peito. Neste coração já assoleado de tanto viver solito; solto campo afora, sem um sentimento bom pra lhe botar cabresto.” 

Sem voz, ela sentiu a manifestação preciosa da mão mágica, aquela que oferece a dádiva da felicidade tocar-lhe as fibras mais íntimas do coração, e desenhar em seu rosto, um sorriso que desconhecia; que veio de dentro, manso, reconhecido. E entregou na boca do Guaraci, de olhos fechados, o beijo do primeiro amor. 

Vivem, lá na estância há cinco anos. E precisam ver, a horta, o jardim e o pomar que a Kris plantou em volta da moradia. Dá até uma vontade, de ficar mais tempo ali por perto. 

O rancho é simples, como é o rancho de uma peão, mas limpinho, limpinho! Com toalhas, cortinas e lençóis, que quando se olha, sabe-se que foram bordados pelas teias vindas de um sincero encantamento. E por receber tanta dedicação, por lá, não existe ninguém mais afortunado do que o Guaraci, que nunca mais proseou sozinho olhando o céu na noite escura. Porque, a vida para ser boa, precisa de um raio de sol.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

SANTA MARIA E O FORNO ASSASSINO

Santa Maria é o coração do Rio Grande. Bate bem no meio do espaço geográfico do estado. E foi de lá que veio a punhalada bandida que acertou os corações de todos nós, rio-grandenses e brasileiros. 

Foi lá, dentro daquele forno assassino que exterminaram 238 vidas jovens; quase crianças, que recém iniciavam a busca para a realização dos seus sonhos. Foi lá, no interior daquele forno assassino que todos os irresponsáveis desta terra dizimaram aquelas vidas que recém afloravam. 

Foi lá, dentro daquele forno assassino que mataram, que assassinaram não só 238 vidas daqueles meninos e meninas, mas também dos seus pais, avós, irmãos, tios, parentes, amigos, namorados, esposas, que agora andam por aí, perdidos, sem encontrar um sentido para suas vidas, se perguntando: por quê? Por quê? Por que, meu Deus? 

Foi lá dentro daquele forno assassino que ficaram depositados, além dos corpos dos jovens as nossas alegrias, as nossas esperanças, a nossa confiança. 

É quase o fim de todos nós. 

Agora, nos resta uma dor no peito, um sufoco, uma ferida na alma, um corte no coração. E lágrimas. Oceanos de lágrimas vertidas neste país inteiro, que se fossem juntadas apagariam todos os incêndios do mundo. 

E ficamos nos perguntando, em quem confiar: nesses comerciantes malandros que montam essas arapucas, essas ratoeiras, para venderem luzes, bebidas, som e alegria para os nossos jovens?; nas autoridades que não fiscalizam e que amiúde, recebem propina para se fazerem de cegos?; nos governantes que não assumem os seus erros e responsabilidades? 

Como pode, esse bando de irresponsáveis, omissos, carreiristas, covardes, que se dizem autoridade, transformarem aquilo que era para ser diversão num forno assassino, comparado só aos usados pelos nazistas? 

Mataram um primo meu em terceiro grau, o Guilherme Pontes Gonçalves, de Cachoeira do Sul, minha terra, filho da Mariângela e neto da Hilda, que tinha só 19 anos. Lá ficou com sua namorada, a Stefani Posser Simeoni, com somente 18 anos; com todos os seus ideais ainda não realizados, dentro daquele forno assassino. Um menino e uma garota, lindos, interessados e inteligentes, os dois - tragando até morrer aquela fumaça bandida. 

Fico revoltado, me entristeço e choro, e me tranca a garganta, me turva o pensamento e me trava a mão e quase não consigo dizer de tudo o que penso nesta hora. Mas fico com nojo, quando ouço ou leio, um jogo de empurra entre todos aqueles que com suas parcelas de culpa, contribuíram para tão brutal extermínio. 

Penso em todos, mas me fixo especialmente nas mães. Aquelas que são só dedicação e amor para os seus filhos, tê-los agora desaparecidos dos seus olhos, dos seus abraços, das suas atenções, dos seus cuidados e dos seus carinhos. Os beijos de amor dessas mães morreram junto naquela fornalha desgraçada. Secaram os seus lábios. Viraram torresmo os seus corações. 

Porque as mães que hoje choram, são as mães de todos nós. Porque em todas as raças a alma de mãe é uma só. Quando uma mãe chora a morte de um filho, choramos todos juntos, porque somos filhos do mesmo sentimento. 

Não existe dor mais forte, mais verdadeira, mais sentida, mais humana, mais desesperada, mais cruel, do que uma mãe debruçada, chorando sobre o caixão do seu filho. Elas são aquelas mulheres sagradas, únicas proprietárias do útero que fabrica, que tece e acalenta todas as vidas do mundo. 

Não consigo resistir o desgosto, quando me volta à lembrança daquela quase centena de chamadas registradas no celular de uma das vítimas, com a palavra MÃE estampada no visor. E do depoimento de um bombeiro que disse, que dentro da boate, todos os celulares tocavam sem parar, ao mesmo tempo, como se fosse uma orquestra desesperada. 

Eram, eu sei, das mães agoniadas, procurando uma vozinha no outro lado que dissesse: fica calma mãe! Fica calma, eu estou bem! Duzentos e trinta e oito celulares não responderam. Os seus donos já haviam sido assassinados. 

Nunca mais seremos os mesmos!