terça-feira, 25 de junho de 2013

A PRIMAVERA BRASILEIRA

Finalmente esgotou a paciência do povo brasileiro. É tão violento o desprezo dos governantes com a saúde pública, com a educação e a segurança que a população cansada se revoltou. Explodiu. Ferveu até a boca da tampa. 

É tanta corrupção, tanta roubalheira, tanta impunidade, tanto superfaturamento, tanta bandalheira, que o povo desencantado saiu da passividade. Nossa gente não aguentou mais pagar impostos sem receber o devido retorno. Os políticos, em maioria, entram para essa atividade, para enriquecer, para roubar; e o povo que se arrebente. Os políticos pensam que são os donos do país, e rapinam os cofres públicos a mancheias. Enriquecem do dia para a noite. No brasil, mandato, significa ter a posse de um bilhete premiado. 

É muito dinheiro mal canalizado. É muito grande o desvio de verbas; fortunas que não chegam ao destino, que deu nojo, raiva, revolta, e o povo indignado reagiu. Parece um milagre, mas o povo reagiu. 

Gastos públicos excessivos e mal dirigidos, e uma interminável desatenção, um menosprezo, uma covardia da classe política com a população brasileira, que não restou outra alternativa, senão os protestos que vemos agora maravilhados. 

Os maus políticos transformaram nosso país num imenso navio pirata, onde eles são os saqueadores do tesouro de todos nós. Político ladrão é uma espécie privilegiada de criminoso, que só conhece cadeia por fora, e olhe lá. Sempre têm uma manobra que os livra do vexame. 

Alguns se queixam de excessos nas manifestações. Mas existe pior excesso do que o descaso com a saúde neste país? Como pode sobrar fortunas colossais para construir estádios milionários, verdadeiros colossos para uma copa do mundo, enquanto as pessoas morrem nas filas dos hospitais por falta de atendimento? Por que não construíram hospitais e escolas públicas com o padrão Fifa? Por quê? 

Como pode uma cirurgia no SUS demorar dois ou mais anos para ser realizada? Como pode uma consulta especializada chegar a demorar seis meses para ser feita? Como pode, tudo isso acontecer? 

Como pode as pessoas morrerem por falta de vaga numa UTI? Como pode? Onde fica o respeito à dignidade humana? Definitivamente, por aqui acabou o senso humanitário, e o amor ao próximo. É só ganância. Só ganância. A classe política atirou o povo brasileiro na lata de lixo. 

Como pode os professores do nosso país receberem um salário miserável. Logo eles que são aqueles que nos formaram e formarão as futuras gerações? Como pode, esta vergonha? 

Como pode as nossas polícias receberem tão pouco para proteger a população? Como pode? 

Agora, vão ver como vivem esses políticos corruptos. Vão olhar os banquetes que patrocinam, os charutos cubanos que fumam, as bebidas antigas que bebem, os palacetes em que moram, e o dinheiro roubado que escondem, e irão ver a vida nababesca que levam. 

Mas por felicidade a juventude acordou. Os jovens, que são sempre eles que mudam o mundo, saíram do Facebook e tomaram as ruas do país. Soltaram a voz exigindo cidadania. 

Pois é! Maltrataram, desprezaram tanto a força do povo, que o leão que parecia morto, pulou da resignação e virou fera, e quer, e vai conseguir todas as mudanças necessárias. Vocês, políticos corruptos, vão ser varridos do cenário. Vocês que jamais ouviram o povo, agora vão pagar por serem surdos. A voz das ruas está rugindo, transformada numa fera, pacífica, mas fera. 

Fico orgulhoso da nossa juventude, que em todos os cantos do país, reagiu e foi a luta. Vi uma moça com um cartaz que dizia: “ O dia vai raiar sem pedir licença.” E outra frase pintada numa cartolina: “ - Desculpe o transtorno, estamos mudando o país.” Juro que chorei. 

Sabemos que esse movimento nacional é só o começo de uma grande virada de mesa. Essa indignação, essa insatisfação, é só um aperitivo. Ninguém consegue calar esse grito. Ninguém consegue amordaçar essas bocas que clamam por mudanças. Que belo momento este levante democrático! De todos nós que não nos sentimos representados por essa corja de políticos falcatruas e arrogantes. 

E os políticos aproveitadores estão perdidos; escondidos, não sabem o que dizer. Enfiaram os seus rabos sujos e fedorentos no meio das pernas, assustados. 

Vai ser assim doravante. O coletivo em primeiro lugar. O futuro chegou. Já pertence a toda esta juventude que está exigindo mudanças; hoje nas ruas e amanhã nas urnas. 

E quanto aos movimentos de rua no país, pensem: “ - se desalojarem nossos sonhos e negarem nossos direitos ocuparemos seus pesadelos, e governo não age, só reage na pressão.” Basta ver as promessas recentes da presidente. Promessas estas, filhas legítimas da pressão popular. 

Depois de outras primaveras redentoras já feitas no mundo, agora viva a primavera brasileira. 

Basta! Chega desses políticos carreiristas, demagogos aproveitadores e safados! Chega! Não mais!

segunda-feira, 24 de junho de 2013

O DOUTOR E O MENDIGO

Ernesto Panettoni, advogado de renomado escritório, de origem muito humilde, formou-se abaixo de esforço e sacrifício. Posteriormente, adquiriu uma certa tintura de soberba que destoava, como que negando o tosco feitio e a pouca qualidade das madeiras do seu berço. 

Homem vaidoso ao extremo, 40 anos, vistoso, sempre bem vestido com roupas da alta alfaiataria e unhas esmeradamente polidas, caminhava, certo dia, devagar, após o almoço pelo calçadão central da capital. Depois de desembrulhar uma bala de chocolate ao leite, foi jogar o papel do caramelo em local apropriado. Então, aconteceu um pequeno acidente. Junto com o invólucro da guloseima, por má sorte, deslizou do seu dedo anular, a aliança de casamento, para dentro da lata de lixo. 

A pequena lixeira estava lotada até a boca com sobras de papel, embalagens diversas, copos de plástico, garrafinhas de refrigerante, latas de alumínio e toda uma quantia de descartes. 

Por instinto, sua mão voou em direção ao cesto, que trêmula e ruborizada de pudor, logo travou, suspensa no ar. Atinou, que não lhe cairia bem tal gesto. Que seria uma humilhação. Imaginou, que alguém com a sua postura e posição profissional, não podeira enfiar a mão no lixo, nem para o nobre motivo que ali se apresentava. Poderia ser visto fuçando na lixeira, por colegas de profissão; um promotor, um juiz, um desembargador, um vizinho; pior ainda, um cliente. O que iriam pensar? O que iriam dizer? “ - Seria como decretar o fim da minha carreira, “ - pensou o Doutor Panettoni. 

E foi ficando ali por perto, sem atitude, sem saber o que fazer, diante da cesta de lixo. Olhou para cima disfarçando, imaginando uma outra possível saída para aquele imbróglio. 

Se ao menos surgisse algum parente próximo. Aí teria alguém para pedir que catasse a aliança, que o metera naquela vexatória circunstância. 

Se aparecesse uma pessoa humilde, um engraxate que fosse. Até pagaria para ele resgatar a malvada da aliança fugitiva. 

Se a Anita, a sua mulher estivesse com ele, ela gente de origem modesta que era, certamente não teria escrúpulos em proceder a busca. 

Se os filhos... Não! Os filhos não! Os filhos ele não submeteria à tão humilhante situação. Afinal eles não estavam sendo criados para meter as mãos numa lata de lixo, nem que fosse para procurar a aliança de casamento do pai. 

Se a mãe aparecesse..., bem mão é mãe! É capaz de qualquer sacrifício por um filho! 

E se telefonasse para casa e mandasse a empregada vir correndo para socorrê-lo. Descartou de imediato a ideia, por levar muito tempo a operação. 

E se ligasse para o rapaz que faz os serviços externos para o escritório. Lembrou-se que por ser hora de almoço, ele estaria fora, nesse horário. 

O Doutor Panettoni, chegou a cogitar como solução para o problema, abandonar a aliança de casamento ali onde ela estava, entrar numa joalheria e comprar outra novinha em folha. Mas deu por si, que a Anita jamais acreditaria na história. Soaria como uma mentira infantil. Mais uma daquelas desculpas esfarrapadas, muito conhecidas da mulher. 

Todas essas possibilidades passaram com a rapidez de um relâmpago pela cabeça do Ernesto, enquanto ele como um mero dois de paus, permanecia imobilizado na frente da lixeira. E não apareceu ninguém. E o tempo estava passando. Ainda teria que botar os olhos pela última vez no processo de uma audiência marcada para dali a duas horas. 

Esse era o quadro de angústia, de aflição, desenhado por aquele, digamos, pitoresco acontecimento, na mente do nobre causídico. O fato é que, por costuras feitas com linha fraca, no interior da sua pessoa, sofria demais a alma do homem. 

Já estava a ponto de tomar uma decisão, quando nota a aproximação de um mendigo; em andrajos, pés descalços, unhas grossas, encardidas e compridas, viradas para baixo que pareciam garras de bicho; todo sujo e fedorento, como se estivesse apodrecendo, catando tocos de cigarro. O Panettoni olhou para o indigente e viu nele a sua salvação. 

Chamou a criatura e prometeu-lhe polpuda gratificação, pelo resgate da aliança. 

Negócio fechado, o mendigo começou a revirar o interior da lixeira, jogando na calçada todas aquelas sobras. O Dr. Panettoni, embora não colocasse as mãos no serviço, sentia-se envergonhado em estar administrando aquela empreitada, diante do intenso movimento de pessoas que passavam. Alguns paravam e olhavam com estranhamento, aquele homem bem trajado, junto com um mendigo, diante de uma lixeira sendo remexida. 

O Ernesto Panettoni, não se continha, de tanta humilhação que sentia, preocupadíssimo com a sua imagem, embora tivesse terceirizado a atividade.. 

Foi então, que lá no fundo, bem no fundo da lata de lixo, o mendigo encontrou a tal da aliança, e ficou com ela presa na mão, esperando a prometida recompensa. 

O Dr. Ernesto Panetoni, sovina como só ele, e não vendo a hora de escapar daquela cena, retirou do bolso do paletó duas moedinhas e estendeu a mão aberta para o coitado. 

O mendigo olhou com desprezo aquela oferta minguada. E quando viu que seria aquilo e nada mais, de inopino, atirou a aliança de volta para a lixeira, não esquecendo de recolocar, todo o lixo, que dela antes, havia retirado. 

E o mendigo, por não ter sido mendigo a vida toda, entendeu com quem lidava, e saiu andando, olhando para o chão, atrás de uns tocos de cigarro, dando risada do que havia acontecido, e do que ainda iria acontecer, com aquele outro pobre sofredor, que se debatia por problemas, tão fáceis de resolver.

terça-feira, 18 de junho de 2013

SEXOS PARECIDOS

Noite bonita de uma sexta-feira de verão. Estávamos, os amigos de sempre, reunidos em volta de cervejas geladas e petiscos, conversando animados sobre futebol, mulheres e outros assuntos importantes, tais como política e corrupção; que dá até nojo só de pensar em ter que votar em alguém.

De repente, surgiu na calçada uma moça muito bonita. Loira, esguia, cabelos finos, que macios se erguiam como labaredas no ar. Entra no bar, senta e pede uma cerveja.

Paramos de falar para contemplar aquela mulher, e quem sabe, um de nós, conseguir uma brecha, e ir ter com ela, cavoucando na sorte, a oportunidade, aquela que sempre sonhamos, quando estamos diante de uma fêmea de incomum beleza.

Assim como os demais me assanhei todo. Levantei a cabeça, estufei o peito, cruzei as pernas, ajeitei as mãos e a gola da camisa, fiz o melhor sorriso que tinha, e atirei em direção a ela, um olhar que tudo dizia das intenções que corcoveavam na minha cabeça.

“ - Não vai que é fria!” - Me falou o Mendonça.

“ - Fria? Do que tu estás falando?”

“ - Não é mulher! É um travesti, ou seja lá o outro nome que se dá para uma pessoa assim!”

“ - Fica quieto Mendonça. Não estraga a minha conquista.” - Falei sem perder a pose se conquistador.

“ - É um travecão sim! Mora no mesmo prédio, no mesmo andar, no apartamento ao lado da minha irmã!”

“ - Mendonça. Cala essa boca maldita e não me enche o saco! Como pode alguém, com aquela pele hidratada, com aquela boca sensual, com aquele rosto perfeito, com aquelas orelhinhas delicadas, com aquelas pernas lisas, torneadas e brilhosas, com aqueles pés e mãos delgados, com aqueles ombros femininos; como pode Mendonça alguém com aquele charme, com aqueles lábios úmidos e carnudos e toda aquela graça, ser um homem? Pode parar, Mendonça, travesti, travesti a gente conhece de longe!” - Discursei.

“ - Então tá! Vai lá e confere. Depois me conta e me diz se estou errado! Vai! Vai! Vai!” - Falou com uma estranha segurança.

Fui. Me aproximei, disse o meu nome e perguntei se podia sentar ao seu lado.

“ - Claro!” - me disse sorrindo. Sentei, e a voz dela quando disse aquele “claro”, confirmou que era realmente uma mulher, e mostrou o caráter invejoso do Mendonça, que só queria me atrapalhar. Conversamos com alegria. Me falou que era maquiadora. Que atendia com hora marcada, as principais madames da cidade. Que era muito requisitada, e que quase não lhe sobrava tempo para manter um relacionamento sério.

Abriu a bolsa, me alcançou um cartão de visita que dizia: Kassyany, maquiadora e massagista. Atende elas, eles ou ambos, inclusive em hotéis, motéis, apartamentos, quitinetes, enfim, onde houvesse quatro paredes, lá, ela poderia estar, se contratada.

Senti um frio na barriga, e uma pergunta passou voando no meu pensamento: será que o Mendonça tem razão?

Alegou compromisso, fez sinal para o garçom. Não aceitou que eu pagasse a cerveja, pediu uma carteira de cigarros, abriu a carteira, retirou o cartão de crédito, onde li o nome: Moacir Francisco das Neves.

“ - É seu irmão ou namorado, o Moacir?” - Indaguei.

“ - Segredo. Já que ficamos amigos, faz segredo e não espalha. Eu sou o Moacir. Mas já faz tempo. Agora sou a Kassyany!” - Falou baixinho no meu ouvido.

Antes de levantar, me deu, de surpresa um beijo no rosto, de despedida, e saiu rebolando aquele traseiro de quebrar o pescoço de quem passava, com aquelas pernas longas, reluzentes, e aqueles pezinhos com aqueles dedinhos com falanges, falanginhas e falangetas perfeitas, e unhas rosadas, recém tratadas, dentro de uma sandália de tiras prateadas, de salto fino, que só as deusas podem usar. Mas não esqueceu, ao passar pela nossa mesa, em dar uma insinuante e comprometedora olhada para o Mendonça, que respondeu no mesmo tom.

Voltei para a mesa com meus amigos, que curiosos queriam saber da conversa que eu acabara de ter com aquela mulher.

Fiquei quieto. Não devia falar nada. Aliás, estupefato, nem podia. Olhei rápido para o Mendonça que fingido fez uma expressão de vitória, que dizia: “ - Viste?! Eu não te falei?!”

Não sei porque, mas assim que voltei para a mesa, o Mendonça levantou-se apressado, pagou o que devia, não quis saber do troco, e foi embora, no rumo do caminho feito pela Kassyany.

“ - Tá na hora dele. A mulher do Mendonça é uma fera.” - Disseram os outros.

“ - Muito braba!” - Respondi, “ - Hoje em dia os sexos opostos estão muito parecidos. Só que agora o Mendonça está apaixonado”, - disse assim, meio confuso pelo ocorrido, e ninguém, na hora entendeu o que falei.

Foi quando o Aguiar me avisou, que uma mancha de batom, com o formato de dois lábios havia sido deixada pela moça, tatuada no meu rosto.

Peguei um guardanapo de papel e retirei aquela marca vermelha de um beijo, que naquelas alturas, não faria a menor diferença a sua origem. Se do Moacir ou da Kassyany, fosse de quem fosse a autoria do beijo, não teria a menor importância, já que, a Cecília, mulher legítima, certificada e garantida, acabava de deixar uma mensagem no meu celular. Agora, a verdade tem que ser dita: a tal da Kassyany era impressionante. Um mulherão.

É, com a genética tão evoluída e a tecnologia avançada, mais os costumes que mudaram, está cada vez mais difícil o sujeito se atrapalhar com as aparências das pessoas, trazendo com isso, a imensa dificuldade, em alguns casos, para a gente saber com exatidão, quem é quem, nessas fauna humana tão diversificada, em constante mutação.

Diante de tantas novidades comportamentais, chego até a pensar, que ninguém estranharia, se o Mendonça se separasse da sua esposa, para assumir de uma vez, e ir viver com o Moacir, digo, Kassyany, se é que digo certo; aquela loira espetacular. Aquela sofredora, dona de uma alma feminina, possuidora de um pedaço de homem, que não era para ser seu.

terça-feira, 11 de junho de 2013

A VIAGEM: UMA MENINA CHAMADA ESPERANÇA

Na noite que o ponteiro do grande relógio que marcava o tempo no mundo caiu na terra, o tempo parou e nunca mais passou. Ficou tudo como estava. Só que para melhor. E como era noite de lua cheia, noite de lua cheia, para sempre ficou. 

A lua brilhou e fez dia prateado no céu. E dela voou uma fada com olhos cor de ametista, que disse para todos que sorriam: “ - boa noite, noite boa! Doravante, nunca mais existirá pesadelos, insônia e mendigos dormindo na rua.” E a vendedora de flores ficou de dona do jardim. E a abelha fez um mel branco de uma nuvem que baixou. 

E após esse inédito acontecimento, as pessoas não mais envelheceram, e acabaram as dores do corpo e as da alma. E o amor durou para sempre. 

O operário que batia o prego na tábua largou o martelo. O guarda aposentou o apito. O soldado botou a bazuca no lixo. O vendedor deixou a maleta no escritório. O domador abriu a porta da jaula e libertou a pantera, o macaco e o leão. O poeta caprichou ainda mais nos versos, e a jovem bailarina subiu no chafariz de águas dançantes e dançou, e dançou, para todos olharem admirados. E o mágico de casaca prateada olhou os homens carrancudos que só sabiam contar dinheiro, e retirou da cartola, mil palhaços coloridos. 

O rei atirou a coroa de ouro para o povo. O juiz guardou a toga preta na gaveta. A terra seca virou lavoura. A madeira do trono do tirano fez brasa boa, e a fome acabou. E não tinha mais criança sem aula. Até o machado do lenhador quebrou e a floresta agradeceu. O rio, de novo, se fez rio. E a prostituta se casou. 

Os deuses e os demônios falaram baixinho, porque não eram mais necessários; o pecado desaparecera, e a culpa também. Nada mais seria pecado. E as proibições foram extintas. E a morte também morreu para nunca mais voltar. E como antes na história, que nunca ninguém havia visto, nasceu um arco-íris noturno que fez uma tiara sobre a lua. E o bêbado olhando aquela beleza toda, se agarrou no poste e gritou: “ - apareceu o remédio para o mundo!” As gaitas abriram os seus foles e os violinos vibraram as suas cordas, e o cantor cantou com sua voz de passarinho, e todos dançaram. Até os solitários largaram os copos de aguardente e foram formar um par. E um pombo correio azul com cauda de pavão pousou no meu ombro com um bilhete teu, minha amada, que eu nem esperava mais. 

Então acordei, pensando que havia sonhado. Abri a janela e vi que estava enganado. Era tudo assim mesmo. Dormindo eu vi tudo aquilo acontecer. 

Saí para a rua e fui com os outros comemorar aquela espantosa transformação. Tropecei no imenso ponteiro do grande relógio que marcava o tempo no mundo, que não mais possuía aparente serventia; que mostrei para uma menina linda, de longos cabelos brancos ao meu lado, com jeito de gente, que trazia um cometa dourado pintado no rosto, e o lábios bem desenhados na forma de um beijo, mais os raros olhos cor de ametista e as mãos transparentes feitas de luz. 

Montamos no ponteiro e ele levantou voo e voamos pelas estrelas. E lá de cima, ela, repetindo o gesto da mão confiante do camponês, semeava sobre a terra, coloridas sementes de sonhos; aquelas, que se bem cuidadas, depois que germinam, sempre fazem tudo acontecer. 

A menina, dona da viagem, ficou lá no seu planeta, regido pela lua. Conversei um pouco com eles, ficamos amigos e prometeram outra visita para breve, e que de lá, zelariam pelas mudanças acontecidas. 

Assim que voltei, guardei o meu ponteiro na garagem, tirei tinta da caneta e fui escrever esta história, a pedido daquela linda menina, que se chamava Esperança.

JACOZINHO, O FILHO DA LAVADEIRA

No colégio, o Jacozinho se apresentava tímido, quieto, cabisbaixo, envergonhado da calça puída nos joelhos, da camisa com remendos nos cotovelos, dos sapatos furados na sola e por estar sempre com aquelas mesmas roupas. E da pastinha colegial de lona amarela encardida, com o fecho que não funcionava. Mas, ele, todos os dias chegava limpinho, de banho tomado, com os cabelos castanhos úmidos, bem penteados, repartidos no lado. 

Na meia hora de intervalo ele não saía da sala de aula. Não comparecia na cantina como todos os demais. Ficava lá dentro estudando, revisando a matéria dada. Decorando as tabuadas, os verbos, as datas históricas, nomes de rios, mares e oceanos e as principais capitais do mundo. Sabia sobre climas, relevos e populações. Tinha na memória que povo habitava em cada lugar, e o idioma que falavam e os seus costumes também. Mas a gurizada malvada, galhofava do coitado. Diziam rindo, debochados, que ele não saia, era para não ver os outros lanchando no pátio, e por vergonha daquelas roupinhas. 

E na volta do recreio, mais por crueldade do que por dó, atiravam sobre a sua mesinha, uns pedaços de sanduíches, que ele comia humilhado. 

Terminava a aula e o Jacozinho se enfurnava na biblioteca do colégio, retirava da pastinha um pequeno embrulho gorduroso, para aliviar aquela fome que roncava dentro das tripas. Depois, lia o Júlio Verne, o Lobato, o Quintana e as revistas de quadrinhos que por lá estavam empilhadas num balcão. 

Por ser muito franzino e asmático, não participava das atividades esportivas e dos exercícios das aulas de educação física, o que significava, mais tempo na biblioteca. 

E não adiantava nada, nas provas escritas de todas as matérias, era sempre ele quem tirava o primeiro lugar. Em compensação, quando a professora pedia que falasse sobre determinado assunto, morria de vergonha, mergulhava na cadeira, ficava vermelho, escondia o rosto atrás dos braços, deitava o corpo sobre a carteira e da sua boca nada saía. 

Então, a professora perguntava para um exibido de dedo em pé, que falava o que sabia, mas nada em comparação com tudo aquilo que o Jacozinho tinha guardado na cabeça. Nos problemas de matemática, nos ditados e nas redações, ninguém conseguia ser melhor do que o menino. 

Uma vez, próximo do dia das mães, a professora de português pediu que fizessem um cartão de felicitações pelo dia. Tinha tesoura, lápis de cor e cartolina à vontade. Todos concentrados em querer fazer a mais linda mensagem para a sua mãe. O Jacozinho desenhou na capa do seu cartão, uma mulher lavando roupa na beira de um riacho, e escreveu embaixo: obrigado, mãe querida! E coloriu tão bonito com cores combinadas e sobrepostas, que os outros não puderam superá-lo. 

Depois a professora olhou o cartão de cada um, elogiava e perguntava o que a mãe deles fazia. Todas eram donas-de-casa, nenhuma tinha emprego ou profissão. Menos a do Jacozinho que lavava roupa para fora: “ - é para sustentar os meus estudos, professora!” Falou como se estivesse se desculpando, autopiedoso, oprimido, com os olhos cheios d'água e os lábios caídos, prontos para chorar. Decerto imaginando que aquele serviço fosse condenável, ou que fosse uma atividade vergonhosa, ou que nela não existisse respeito e dignidade. Era o beliscão do complexo de inferioridade dos vencidos reaparecendo. Eram as ferroadas miseráveis de uma atávica humildade servil, forçando, outra vez, a sua cabeça para baixo. 

Nunca mais souberam notícias do Jacozinho, depois daquele dia da entrega dos diplomas de conclusão do ginásio, quando uma senhora, que tossia a cada movimento que fazia, com um vestidinho de segunda mão, levantou-se; e foi só ela da plateia à aplaudir quando disseram o nome do seu filho. Também foi a única que quebrou o protocolo, subindo com certa dificuldade no palco do auditório para abraçar o seu formando, que conquistava, a duras pernas, a primeira grande vitória da vida que recém começava. E a assistência estava incomodada com a demora de tudo o que ela dizia baixinho no ouvido do filho, que sorria, ouvindo aquelas palavras que ninguém mais ouviu. Mas que deveriam ser doçuras vindas da alma e do coração, aquelas, que só as mães sabem dizer, a julgar pela expressão de emoção, segurança, contentamento e determinação, que se inscreveram brilhantes no rosto do Jacozinho. 

Seu pai não estava presente porque já há muito havia falecido. E mais ninguém, porque também, não tinha irmãos, nem parentes. Era ele e a mãe nessa vida, como dois frágeis galhos solitários, cravados em solo movediço, buscando apoio um no outro. 

Mais de dez anos depois, uma senhora abre a janela do apartamento térreo de uma rua movimentada, com uma sacola de plástico nas mãos, e grita para um vulto barbudo, sujo e maltrapilho, que estava deitado, tossindo na calçada em frente: “ - ó rapazinho, vem cá, e pega este resto de comida e mais este livro e estes jornais e estas revistas usadas!” 

Foi ser mendigo, o Jacozinho. Sua mãe morrera de tuberculose, logo depois daquele dia da formatura, no auditório do colégio.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

LEMBRANÇA DANIFICADA

Noite comum de terça-feira. Na sala de espera do cinema ele viu aquela mulher com fisionomia familiar, que chamou a sua atenção. 

Era uma senhora quarentona, ainda bonita, que trazia na aparência os traços dominantes, bem marcados, da linda jovem que fora. Porém, com o semblante abatido por indisfarçável descontentamento. 

Reconheceu as suas feições e estilo. Aproximou-se dela e perguntou: “ - você não é a Janete?” 

Vinte anos que não se viam. Duas décadas se passaram desde que viveram, por breve período, uma envolvente, fogosa e inesquecível paixão. 

Bem de perto, olhou os olhos, o rosto, o corpo, o sorriso que nela se fez, e bebeu o perfume da mulher, e sentiu desejo por ela novamente. 

“ - Sou!” Disse ela com o olhar maravilhado, pois também o reconhecera. 

Ela o fitou de alto a baixo. Sua face ganhou luz, os olhos secos brilharam, os seios se ergueram vivos, a boca se umedeceu, e mordeu a ponta da língua. Seu corpo em flor madura se abriu inteiro e seus lábios mudos disseram sim. 

“ - E você é o...! Meu Deus. Devo estar sonhando! Não acredito que este momento esteja realmente acontecendo!” 

De uma acumulada saudade antiga, nasceu repentina brisa que acendeu brasa, que se tinha dado por morta. Então, abraçaram-se e beijaram-se com força na frente de todos, que observaram a cena estranhados por inusitada atitude. Afinal, haviam pago ingresso para assistir representações na tela, e não ali, ao vivo, na vida real. 

No caminho ela lhe disse que falava sempre para a sua filha adolescente, do seu primeiro amor. Que mostrava para ela a única fotografia que tiraram juntos, num baile no Gondoleiros. Ainda falou que estava casada há 17 anos, e que seu viver estava sem graça, rotineiro, sem amor; só companheirismo. Que a sua vida sentimental tinha o marasmo da repartição de um órgão público: previsível, enfadonha, burocrática. Assustadoramente sem novidades. E que o seu corpo nunca mais havia tremido de prazer. 

No apartamento dele beberam vinho, lembraram com alegria da época passada, de quando eram tão jovens e morriam esgotados pela constante aplicação nas lidas do amor. Recordaram das promessas feitas que, ariscas, tomaram outro rumo para se cumprirem em outro lugar. E se beijaram, e se beijaram. 

Mas alguma coisa aconteceu naqueles instantes, que afrouxou o entusiamo. Veio um sumiço, um vazio inesperado, um estranhamento que tomou conta; um estorvo que chegou dizendo não. E, por não terem de volta, aquele sentimento que se apagara no meio do tempo, uma agonia implacável, indicava, que não seria como antes. E, não foi em nada parecido, com as intensas e deliciosas outras vezes de antigamente. 

Virgens, vestiram as suas roupas, e ele foi levá-la até o ponto de táxi. 

Beijinhos murchos no rosto; formais, constrangidos, dolorosos. E um adeus sem gosto, decepcionado, tal uma esperada viagem, que de súbito, se vê abortada no momento do embarque. 

De volta ao apartamento, sentou no sofá, encheu a taça com o vinho que restava, e disse em voz alta para si mesmo, olhando para a fotografia da atual namorada sobre a estante: “ - não aprendes nunca, não é seu teimoso?! Que jamais se revisita uma ex-paixão, dona de um corpo que já foi da gente! Agora, danificaste a lembrança!”

A MENINA DA PRAIA

Tarde de muito sol em uma praia de exuberante beleza do nordeste brasileiro. Me ajeito no banco do quiosque e peço água de coco. Olho para os lados, é tudo felicidade. As moças, os rapazes, as famílias, as crianças; todos dentro do paraíso. 

Destoando, se aproxima uma menina de shortinho surrado, olhar morto, vendendo amendoins enrolados em cones feitos de jornal. Quer amendoim, tio? Cinquenta centavos cada. Preso na paisagem, automático, digo não, obrigado. Então, quer fazer um programa? É só 1 real, mais o local. Assustado pergunto: com você?! Ela diz que sim, e que tem um lugarzinho seguro, com ventilador. 

Sem voz, falo baixinho: é mentira. Ela deve estar brincando. Adoeço de estranho mal e me sinto aflito, perplexo, pasmado, como quem recebe uma notícia ruim. Daquele jeito que a gente fica quando está diante de uma tragédia, sem saber o que dizer. Ela por me ver em silêncio, imagina que estou estudando a possibilidade e volta a insistir: vamos tio! É aqui pertinho! 

Pergunto a sua idade: onze, me responde. Vou completar agora em março. Desvio o olhar e vejo as meninas da sua idade junto com os pais, tomando sorvete, chupando picolé, fazendo castelinhos na areia e moldando bichinhos com as irmãzinhas menores, nas forminhas de plástico coloridas. E outras correndo, brincando dentro daquela imaculada inocência que é só delas e de mais ninguém. 

Me dá um arrepio na alma, um pavor no coração. E ela ali, diante de mim esperando ansiosa uma resposta positiva para a sua proposta. Parece um animalzinho domesticado, parada, esperando a miserável recompensa, em troca daquilo que lhe mandaram fazer. Desempenhando o número que lhe coube representar na vida, embaixo desta infinita lona de circo, que julgamos ser a mais bonita que existe. 

Uma mulher adulta quando decide vender o seu corpo, é porque nada mais lhe resta. É a última raspa de alguma coisa que sobrou, daquilo tudo que um dia existiu, e que ainda pode interessar à alguém. Mas uma menina de onze anos, sendo empurrada para esta maldita condição de vida, não é possível. É inaceitável. É repugnante. É revoltante. Esta indignidade seria motivo para uma declaração de guerra, caso fôssemos sérios. 

Fico pensando nas bonecas que aquela pobre menina nunca brincou, nos sonhos que nem sonhou, na escola que não frequentou, nas histórias bonitas que jamais ouviu, nas revistinhas e livrinhos que não leu, na família boa que não teve, nas musiquinhas infantis que não cantou, nas brincadeiras de roda que não participou, no céu do jogo de amarelinha onde nunca chegou, nos conselhos bons que não recebeu, nos presentinhos que não ganhou, no amor que não sentiu. E faço a cruel e inevitável comparação com todas aquelas outras crianças abençoadas, que ao nascerem ganharam de presente, o seu merecido pedaço de jardim. 

Me trancou um caroço de espinho na garganta. Perdi a força no olhar e vi a raça humana fracassar. Sei que todos falharam. Falhamos todos com aquela pequena criatura, que ainda continuava com os olhinhos esperançosos pelas moedas, que sonhava, que poderiam escapar das mãos deste tio. Falharam, sei de certeza, os poderosos todos; os daqui debaixo e os lá de cima. Todos de olhos fechados, omissos, tolerantes, indiferentes, não querendo ver aquela judiaria. Ferida humilhante que ninguém cicatriza. 

Acordo do pesadelo, ponho a mão no bolso, tiro uma nota de 20, compro dez cones de amendoim, e dou os outros 15 de gorjeta para ela. 

A coitadinha me olhou como quem olha para um milagre, deu um sorriso de toda boca, aquele, que só as crianças sabem fazer, e saiu pulando graciosa. A cada meia dúzia de pulinhos olhava para trás e sorria agradecida em minha direção, sem saber, que estava sendo infantil pela primeira vez, naquela porcaria de vida. 

Levantei, andei uns passos meio atônito, sem saber o que fazer, com os cones de amendoim presos nas mãos, quando outra menina, se aproxima e diz: aquela é muito novinha, não sabe fazer nada. Eu já tenho treze, e sei fazer tudo aquilo que um homem gosta! E apontando com o dedo encardido de uma sujeira antiga, afirmou: tem um quartinho com ventilador, ali naquela rua. Falou como se tivesse longa prática no ofício. Sem pensar no gesto, dei de presente para ela aqueles pacotinhos de amendoim. Me fui ligeiro rua afora em direção ao hotel, sem querer ouvir se cobrava, 1, 2 ou 3 reais pelo programa. 

Segui em frente sem vontade de olhar mais ninguém; nem adultos contentes, nem crianças felizes. Só pensando, de cabeça baixa, nas filhas que quase todo mundo tem. Mas prevalecia a imagem daquela desprotegida, sobre todas as outras, que vieram para o lugar e para as pessoas certas. 

E o dia que se fazia bonito, escureceu, fazendo luto fechado na minha alma. 

E me veio uma vergonha, uma raiva, de mim, das pessoas, da humanidade, dos céus, que permitimos que a inocência ficasse pecadora, tal uma delicada flor, igual aquela menina, que por pura crueldade nasceu no meio do lixo, escolhida a dedo, só para enfeitar o pátio do inferno.