sexta-feira, 27 de setembro de 2013

CHARLOTTE

Conheci a Charlotte numa cidade do interior. Francesa, de pele muito branca e boca vermelha e tentadoras pernas longas e um jeito bonito de falar naquele sotaque sensual que fazia questão de acentuar, por saber que muito lhe acrescentava. E um olhar de bicho faminto, de quem queria sempre mais. 

Na época, devia ter trinta anos; não mais. Mas que significavam um século de existência, se fossem computadas todas as suas experiências sexuais adquiridas neste vasto mundão. Detinha todo o conhecimento das técnicas do prazer e dos atalhos sentimentais, para fazer um homem por ela se apaixonar. Tinha-se a obrigação de afirmar que tratava-se de requintada profissional dos pecados da carne, e conceituada especialista em causar transtornos existenciais nos ingênuos que a conheciam. Sua presença no salão provocava galopes na testosterona dos que assistiam tamanha desenvoltura e elegância, a cada aparição. 

Não que fosse linda. Não! Era quase bonita, apenas. Entretanto, possuía charme, treino, cheiro, pose, enfim, as armas fundamentais para o pleno exercício da arte da sedução; aquele encanto natural que nasce por bondade da natureza, para tão poucas mulheres. Tinha a posse de uma espécie de luz interior que aflorava com energia e beleza, iluminando toda a sua pessoa. Parecia que havia se apoderado de uma invencível e sobrenatural força de atração. 

Assim, via-se a Charlotte, dona de uma casa de mulheres, que vendiam, a preço combinado, além dos préstimos sexuais, leviana companhia e ilusões para quem as havia perdido. Nove ou dez, eram elas. De longe vieram todas. Algumas, da Banda Oriental. Mas a clientela, das outras moças, quase nada queria. Queriam, esperavam horas se preciso fosse, que folgasse a Charlotte, que passava a noite inteira ocupada, no vaivém do salão para o quarto, com seus clientes de estimação. As demais moças faziam sala; aborrecidas, suportavam aquela concorrência desleal. Evidente que também trabalhavam, mas permaneciam pela moradia, pela alimentação; pelo ambiente festivo, pela proteção. 

Mas, havia um estancieiro, o velho Galdino, poderoso coronel, proprietário dos eleitores, dono de muita terra e gado gordo da região, que apaixonou-se, de ficar louco pela Charlotte, e exigiu que ela só saísse com ele. Mais ainda: propôs em tom severo, que fechasse o cabaré, para ela ser sua, somente sua. Que bancaria vida cara e luxenta. Que teria tudo que sonhasse. 

Fechar a casa, ela disse que não. Porém aceitou as mordomias oferecidas e prometeu exclusividade com aquele olhar falso no semblante; aquele olhar que se usa quando se faz promessas, feitas para não serem cumpridas. 

Feito o acordo, entrava o Galdino todo garboso no salão, e os presentes cochichavam, respeitosos: “ - chegou o dono da Charlotte!” Para as outras gurias até que foi um bom negócio aquela aparente espécie de monogamia. Sobrou para elas, os clientes da francesa. 

Andava tão bem aquela parceria que o velho Galdino já estava decidido e instalar a Charlotte num apartamento na capital. Só, que na vida, quase sempre, a escrita não é corrida. Sempre aparece um empecilho para atrapalhar os planos da gente. 

O garçom Jeremias, que sempre acompanhou a Charlotte em todas as casas que ela botava para funcionar, sentiu no coração, os puaços da traição. Por dinheiro a Charlotte podia ser de quem pagasse. Aquilo seria uma forma de um breve arrendamento ou de uma locação temporária. Mas atenção especial com ânimo de exclusividade, isso não. Isso ele jamais aceitaria. Amor, amante fixo e beijo na boca, isso só ele, só ele e mais ninguém, teria este direito. 

Certo final de noite, o Jeremias esperou o velho subir para o quarto com a Charlotte, aguardou mais um instante, abriu a porta com um 38 na mão, pronto para liquidar com resto de vida do Coronel Gladino. 

A cama estava vazia. Por de trás de uma cortina saiu a Charlotte que disparou contra o Jeremias. Caiu morto sobre o tapete persa ao lado da cama. 

O velho disse que assumiria aquela morte. Que ela não se preocupasse. Depois ela exigiu um apartamento de cobertura, de papel passado, e um cabaré fino na capital. Foi assim comentado o ocorrido, e assim permaneceu. 

Foi ali, naquele ambiente requintado, embalado ao som de um conjunto que tocava música francesa, boleros famosos e tangos de Gardel, mais cantoras e bailarinas que, anos mais tarde reconheci a Madame Charlotte, que usava vestidos feitos por renomados costureiros e adornava a sua pele branca como uma nuvem, com pesadas jóias de ouro cravejadas com diamantes, rubis, safiras e esmeraldas. E na ausência do Coronel Galdino, que mais permanecia na estância, satisfazia a custa de muito dinheiro, todo ricaço que aparecesse. Que mulher que nasce para ser puta, não tem remédio que cure, nem religião que ajeite! 

“ - É tudo lenda o que falam a meu respeito. Tudo lenda! Basta subir na vida para surgir histórias mentirosas sobre o passado da gente.” - Me disse a Charlotte, passando os olhos pelo ambiente que ia muito além daquilo que se entende por cabaré. Era uma bela casa de espetáculo, daquelas, que não existem mais. 

Se a morte do Jeremias não tivesse acontecido numa cidade conhecida por mim, teria acreditado nela, cegamente. Porém, certeza, certeza mesmo, essa ninguém tinha. 

Vai ver que ela, imaginando que eu pudesse saber do seu passado, mandava me servir as melhores bebidas e me oferecia sempre, a moça mais bonita da casa. Tudo cortesia, porque se torna poderoso aquele que guarda, embora incerto, um segredo de valor. 

Depois andei casando duas ou três vezes, não me lembro bem, e desapareci da boêmia. 

Dizem que a Charlotte, após a morte misteriosa do Coronel Galdino, de quem recebera polpudo testamento, se bandeou para o Uruguai ou Argentina, onde mantém, agora já idosa, em prestigiada praia, luxuoso cabaré. 

Gente muito boa, a Charlotte. Com a devida distância, sendo mantida. É claro.

VIDROS FRÁGEIS

Acordei suando no meio da noite, quando no sonho, uma espécie de anjo com quatro asas pretas, pés feitos com cascos bifurcados, olhos vermelhos de brasa acesa e um longo bico adunco de abutre, me disse: 

Pega um saca-rolhas e retira de dentro de cada um o que cada um tem para dar. Mas o quê cada um tem para dar? Interroguei. A frase queria dizer tudo e ao mesmo tempo não dizia nada. Quem são vocês? Me perguntou aquele bicho. São aquilo que pensam ou o pensamento independe dos vossos corpos? Há um outro ser dentro de vós? São dois, então? Ou quatro, cinco, ou mais lutando no interior dos vossos corpos? Que espécie de ser, sois vós? Quem pensam que são? Estava confuso o sonho. Mas foi bem assim que ouvi. 

Pois bem. Vamos adiante. Quem são vocês, afinal? Não sabes? Então, explico, continuou aquela figura: são vocês apenas breves passarinhos que voam com tempo marcado numa régua que vos diz: vão lá. Voem, se refresquem, sintam dores e alegrias, sofram e sonhem, e depois voltem para suas gaiolas; para as mortes que cada um de vocês terá que cumprir..., hoje, amanhã, ontem; desde todos os tempos que já se foram, dos atuais e dos que virão! 

Mais falou o anjo, ou o que fosse aquilo: aí, surge um de vocês, bem desafiador, que diz: “- eu não! Esse assunto não é para mim! Vou me cuidar e escolher ou adiar a época da minha morte.” - Bobalhão! Que bobagem esses cuidados que só enriquecerão os falsos curandeiros e os curadores que em vão te prometerão saúde e vida longa. Vais morrer assado sobre uma grelha, desgraçado. Depois do churrasco pronto, as tuas carnes, teus ossos, teus olhos, tuas partes íntimas, tua alma, serão servidos para os lobos famintos do além, que ficarão mais fortes ao te devorarem, pobre homem medíocre. Que infeliz pretensão a tua, pobre ser; meu transparente vidrinho quebradiço. De onde tiraste tamanho orgulho? Qual o sentido da tua empáfia? Te convence de uma vez por todas, assim, definitivamente, serzinho insignificante: está lá na bíblia, não por ser a Bíblia, mas por ser um livro bem escrito: dez anos mais, dez anos menos; este é o tempo que viverão. É só isto. Esta é, no máximo, a distância que vos diferencia uns dos outros. Pequeninha, não?” 

Ainda aquela sombra me falando: irão vocês todos encher com vossos corpos apodrecidos e seus líquidos fedorentos, todos os cemitérios do mundo. Pestearão a terra, o ar, o mar, as nuvens, com vossas carniças contaminadas por todas as doenças do mundo. Não se deram conta, que vocês são quase nada? Que terão que alimentar aqueles bichos brancos com mandíbulas poderosas, os vermes que roerão até os ossos, as vossas mais escondidas, entranhas? Que essas pequenas feras, em bando, ferverão dentro de vós? Eles que nasceram para vos devorar. E, nasceram vocês, para alimentá-los. E quem pode impedir essa macabra comilança? Quem? Vai, responda! 

Disse mais o bicho no meu sonho: - A morte está sempre vos espiando pela frestas das portas, pelos buracos das fechaduras dos vossos quartos, principalmente no escuro, logo após apagarem a luz. É deste ambiente que ela gosta. Pode ser que ela não te leve desta vez. Aparece só para te escolher, ver se já estás no ponto. Assim, tu não notas, mas ela passa os olhos e as mãos pelo teu corpo. É carinhosa, a morte, com os seus filhos. 

Agora, o estranho gritou comigo: - Quem são vocês? Que força lhes falta, se morrem ainda criancinhas, crianças, adolescentes, jovens ou com algumas décadas vividas? Quem imaginam que são, se morrem em idades que ainda não se deveria morrer? Por que não vivem 300 anos? Por quê? Se são tão inteligentes, tão criativos, tão importantes, tão arrogantes, tão poderosos, então, por que não vencem esta barreira da morte? São feitos vocês, de vidro muito vagabundo, e pensam que são de cristal. Vidrinhos, cacos de vidro que choram, que pedem, que imploram, que prometem fortunas por mais uns poucos anos de vida. Deviam parar com esses desejos bobos, meus vidrinhos frágeis, coloridos artificialmente. 

No sonho que já era quase um pesadelo, aquilo que parecia um fantasma vestido de preto, me cutucou o peito com sua unha comprida e suja de terra, e falou com voz rouca: e logo, quando menos esperarem, vem a doença que enfraquece o forte, que derruba o gigante, aquele que se achava imbatível. Vem a morte que acaba com o vivo, vem um calorão que faz cinza dos vossos esqueletos. E disso que vocês chamam de alma, nada sabem, nada sabem, meus fracos vidrinhos! Essa coisa de alma, pode ser apenas a mesma energia que faz a planta crescer, o boi andar, o corvo voar, a hiena gargalhar. Vocês não sabem de nada. Estão perdidos neste imenso deserto que é a vida. Se desesperam por qualquer pouca coisa. Tenho pena de vocês. Coitadinhos dos meus vidrinhos. E ainda querem que tudo seja do jeito de vocês. Se acham donos dos seus destinos. Não é assim, meu vidrinho? Buscam feito loucos uma recompensa, imaginando a fantasia de viverem outra vida após suas mortes. Quanta ilusão, meus frágeis vidrinhos. Nem vou pronunciar as palavras “perda de tempo”, mas que perda de tempo tudo isso! 

Antes de ir embora batendo suas asas negras, concluiu, dizendo: - escutem, meus pequenos vidrinhos frágeis, vocês são apenas adubo da terra. Esta é a grande missão de vocês, de todos vocês, meus caquinhos. Apenas, para deixá-los crescer, pegar mais volume, recebem sobre suas cabeças, um instantinho de luz; a vida, como vocês gostam de dizer. Ah, e sobre os destinos, no universo, somos dois, os que mandam: - eu e o outro aquele. Aquele para quem vocês tanto pedem. Agora, basta. O que tinha para dizer era apenas isso, meu vidrinho querido. E nada mais. Nada mais! 

Dei um pulo da cama com o corpo todo molhado, sem ter tido tempo de perguntar quem era ele, respirando um cheiro de enxofre que tomou conta do quarto. Mas não me saía da cabeça: meus vidrinhos. Meus caquinhos de vidro. Vidrinhos frágeis. Vidrinhos quebradiços. Vidrinhos coloridos artificialmente... 

Que coisa! Ora vejam só; nós, apenas um vidrinho! Um caquinho de vidro! Um vidro frágil! 

E não é que é isso mesmo!

sábado, 21 de setembro de 2013

OS CARTEIROS E AS CARTAS DE AMOR

Nunca mais ninguém recebeu uma carta de amor! Desaprenderam de escrevê-las. Até os carteiros ficaram tristes por não trazerem em mãos as notícias postadas pelos corações bêbados de amor. Nunca mais os carteiros viram um rosto apaixonado, com as mãos trêmulas, rasgar apressadamente um envelope e ler com emoção, logo na primeira linha: “ meu inesquecível amor! Minha eterna paixão! Amor da minha vida!”

Sabia o carteiro antigo, que na Rua da Ladeira ou na Rua da Subida ou na Rua do Meio, sempre havia uma moça enamorada esperando ansiosa a sua chegada. E a carta, quando nas mãos da moça, adquiria o valor de um tesouro, que ele precisava assistir, meio que de longe, toda aquela reação emocionada.

Se a moça chorasse o carteiro chorava junto, adivinhando o conteúdo de cada frase. Era capaz de soletrar baixinho, palavra por palavra, aquelas que a moça lia. Chorava também o carteiro, não assim tão declarado quanto a moça. Mas chorava uma lágrima teimosa que lhe descia rosto abaixo, que ele disfarçando, com o nó do dedo indicador, limpava aquela gota de felicidade, da saudade quase vencida, daquela felicidade que nem era toda sua. Apenas emprestava o sentimento, um pedaço do coração; o abraço invisível da solidariedade.

Nunca mais ninguém esperou, dias, semanas, meses até, por uma carta de amor que trouxesse uma frase de esperança, uma palavra reanimadora do sentimento envolvido, uma declaração sentida, um incentivo que valeria muito a pena esperar.

Os carteiros de hoje só trazem contas de luz, telefone, condomínio; malas diretas e correspondências comerciais. Estão agora, invisíveis os carteiros. E andam entristecidos. E sentem uma ponta de inveja dos seus colegas de décadas atrás, aqueles carteiros antigos, mensageiros que traziam cartas perfumadas, tatuadas com o beijo de batom vermelho, feito pelos tão desejados lábios da mulher amada. Mais aquelas, que as senhoritas agoniadas esperavam dos seus amados, que reforçariam necessárias juras de amor, que prometiam para breve tão aguardado noivado, seguido por um enlace que só traria felicidade.

Os carteiros de hoje nunca presenciaram uma jovem apaixonada, beijar a carta enviada por seu namorado distante, na frente do portão da sua casa. Disso, nada viram os carteiros atuais.

Como ficou monótona a vida dos carteiros. Não existe mais ninguém à esperá-los. Agora lidam com frias e impessoais caixas de correspondências. O destinatário é apenas um número de apartamento, de uma sala comercial ou uma anônima caixa postal. A atividade perdeu o encanto. Deve ser por este motivo, que eles não mais se aposentam no ofício. De certeza, anda fazendo muito mal para os carteiros, não mais entregarem cartas de amor.

Novos tempos. Hoje, outros meios servem para os amantes distantes se comunicarem. Os celulares, as redes sociais acabaram com a missão romântica dos carteiros: ninguém mais envia uma carta de amor. A ansiedade da espera da missiva tão desejada, sumiu. As cartas que eram lidas, relidas e guardadas como objetos de estimação por toda a vida, desapareceram.

Como ficou triste a vida dos carteiros e das pessoas apaixonadas, que nunca mais receberam, um bilhetinho que fosse, que falasse das coisas íntimas, ditadas em segredo pelo fogo da paixão.

Só eu, que sempre pergunto para o carteiro, já meu velho conhecido, na frente do meu prédio: - “ ela continua sem me escrever?”

Ele me olha compadecido, destruindo minha esperança, confirmando minha solidão. E cruel, acrescenta: “ - já faz tanto tempo. Nunca mais ela vai escrever!”

Só para ressecar o meu coração!

RECOMEÇO

Coisa mais triste do mundo era ver aquelas crianças chorando. Se não eram doze, menos do que dez não eram. Uma escadinha, com a última de colo, e as mais velhas, ranhentas, pançudas de lombrigas; umbigos saltados pra fora. Com o corpo e os cabelos duros de sujeira. Sem falar naquela outra sem sorte, que estava recém se formando na barriga da Lindaura. 

Choravam, não por manha, mas de fome, as coitadinhas. E ninguém fazia nada. E a negra parideira só paria e atirava na terra suja, o indigente resultado vindo do seu único prazer. 

Ninguém afirmava que daquela turma houvesse dois filhos do mesmo pai. Como era oferecida a Lindaura, que por ignorância não sabia se acasalar, sem que ficasse uma semente viva se retorcendo no seu ventre. 

Andavam soltos na vila, sem rumo, como uma ninhada de cadela de rua. Os menores sem roupa, atrás de um pedaço de pão, choramingando sufocado aquela choradeira aflita dos desamparados; da cria humana que ainda não sabe que é um animal imprestável e, que, se sobreviver, irá se transformar, por desforra e falta de oportunidade, em cruel e indomável fera. Quando anoitecia dormiam amontoados feito bichos, uns aquecendo os outros com o pouco calor dos seus corpinhos inocentes. 

Os vizinhos quase não podiam ajudar. Eram tão ou mais miseráveis que eles, que não tinham nome, só apelidos: era Dinha para cá, Dinho para lá, Niquinho e Niquinha, e dos outros que nem é bom lembrar; daquelas crianças que só choravam, que não tinham data de nascimento, que nunca faziam aniversário. 

Viam, noite adentro, a Lindaura entrar nuns matos com um bêbado qualquer e voltar toda faceira, rindo uma risada desdentada, agradecida pelo coito oferecido, segurando como pagamento, um pacotinho de uma guloseimas vagabundas. No mais era só choro, só xingamentos, só brutalidade. Só miséria. Só fome. 

No inverno apareceu um andaço de uma moléstia desconhecida que matou gente sem parar. Principalmente os pequenos. 

O cemitério pobre já estava lotado de covas rasas de tanta criança que morria. Era uma cruzinha de tábua ao lado da outra, sem tinta, sem data, sem nome. Sabiam que eram de gente miúda, pelo tamanho do montinho. 

E veio vindo aquela doença dentro de um vento endiabrado em direção do barraco da Lindaura. Entrou pelas frestas aquele ar envenenado, que só foi embora depois que acabou com a vida de toda aquela criançada. 

Ela nem chorou naquele enterro coletivo. Até pareceu aliviada. 

De volta para o casebre, a Lindaura acariciou a barriga grande, pronta para expelir outra desgraçada, e disse: “ - agora vamos fazer a coisa certa. Com menos gente em casa, você nunca vai passar fome.” 

Juntou um caramelo que se derretia no chão, deu um sorriso sem graça, e engoliu aquela meleca, com formiga e tudo.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A FERA

Uma vez eu tive uma namorada que se transformava, não em outra pessoa, mas em fera. Assim, de um instante para o outro, meio que do nada, sem um motivo aparente, como que obedecendo uma ordem diabólica, acatando um chamamento maligno , ou incorporando um espírito sofredor, a mulher se modificava. O seu rosto endurecia, os lábios empalideciam, os olhos cor de brasa lançavam faíscas, as sobrancelhas encrespavam, os cabelos se arrepiavam, a testa se enrugava, o queixo tremia, a pele do corpo se avermelhava, e da boca saia uma voz como se fosse o demônio gritando. 

Enchia o peito, erguia os ombros, levantava o pescoço que engrossava, e se armava de vassoura, rodo, faca e garfo e partia para cima de mim, braba como uma onça, com os dentes cobertos de espuma, querendo porque querendo, acabar com a vida que me restava. 

Eu recuava até uma parede, e ali, acuado diante daquele ser enfurecido que me caçava, não sabia o que fazer. Ela parava na minha frente e queria ouvir o que eu não tinha para dizer e prometia vingança e ameaçava de morte a mim e todos aqueles que tivessem o meu sangue. 

Depois passava aquela crise, e a fera se acalmava e queria abraços, beijos e esforços físicos de amor. E lá ia eu cumprir essas tarefas. Diante daquele perigo constante, até que eu as cumpria com eficiência. 

Aconteceu que com o tempo foram piorando os acessos de fúria da mulher. Já não ficavam apenas nas ameaças. Aquelas vassouras começaram a cair com força sobre a minha cabeça. O garfo passava raspando a minha barriga. A faca zunia no meu ouvido. O rodo quase entrava no meu peito. 

Já estava com receio de passar a noite com a onça. Comecei a dormir de bruços para proteger de um possível ataque terrorista, as partes do meu corpo que eu ainda tanto precisava. 

Tinha medo, ah isso eu tinha, que um golpe traiçoeiro, no meio do sono, me estragasse para o resto da vida. 

E quando ela brigava, a vizinhança ouvia os berros selvagens da fera. Deviam pensar que eu era um monstro, um safado ou um grande covarde. Que ela fosse maluca, histérica ou endemoninhada, isso, de certeza não pensavam. A mulher desse tipo leva vantagem nessa hora. E disso ela sabia muito bem se aproveitar. E eu cada vez mais encolhido. Envergonhado, não mais olhava o rosto dos moradores do prédio. 

O interessante é que ela criava estas cenas, as levava próximo ao extremo, para logo após ficar frágil, dengosa, tirar a roupa e pedir amor. Em que coisa mais estranha eu estava metido. O pior, é que já estava me acostumando com a onça, leoa, serpente, ou fosse lá o que fosse aquilo, quando, custasse quanto custasse, resolvi abandonar aquela selva, antes que eu me viciasse com aquela forma exótica de excitação sexual da parte dela. 

Certo dia, após uma investida muito forte, que nem quero lembrar, peguei minhas roupas e livros e uns textos em andamento, atirei dentro do carro e me fui sem rumo para bem longe; outra cidade, melhor dizendo. 

Depois saí do hotel e fui jantar. No restaurante, em uma mesa próxima da minha, uma mulher furiosa, com cara de bicho do mato, xingava um homem aos berros, urrando ameaças com toda espécie conhecida de palavrões. Me deu um tremor no corpo. Baixei a cabeça para não olhar. Senti vergonha por ele e por mim também. Devia, ela, ser da mesma raça daquela que eu tinha; dessas que de vez em quando surgem na vida da gente. Que fabricam espalhafatosos momentos de guerra, para depois fazer amor. Ativistas radicais que são, da ideia, que o melhor sexo acontece no entrevero da reconciliação. 

Já que estou no assunto, devo dizer que, não sei se por simples azar, propensão ou praga rogada, o fato é que em seguida conheci mais uma destas feras endiabradas, e depois mais outra, e depois... bem, melhor deixar para lá. Deixemos de lado estas outras histórias. Elas que esperem outra ocasião. Mas o certo é que, desta maneira, por repetição, me tornei especialista, também, em mulheres deste feitio. Tanto é que ando pensando seriamente em fundar uma associação, uma ONG talvez, sobre o assunto. Uma organização que trate da prevenção e de que maneira as vítimas devem lidar com essas delicadas situações. A demanda, neste segmento está crescendo assustadoramente. A organização, que se chamará AHVME (Associação dos Homens Vítimas das Mulheres Endiabradas), terá a finalidade de fazer um equilíbrio com a Lei Maria da Penha, e funcionará dentro da garantia de absoluto sigilo e anonimato. A ideia, é no futuro pressionar o Congresso Nacional e criar lei específica para esses casos. 

Agora, voltando ao casal do restaurante. Passados não mais de cinco minutos do fim das agressões verbais vindas da mulher, estavam abraçados, aos beijos, contentes, trocando carinhos e assoprando aos cochichos, palavras quentes, cada um no ouvido do outro. 

Credo! Conheço muito bem este tipo de encrenca, pensei. Nisso ela foi ao banheiro. Levantei para ir embora, e não resisti a tentação. Parei diante do sujeito e perguntei: “ - ela já chegou na fase da faca e do garfo, do rodo e das vassouradas?” 

Ele, com a força moral enfraquecida, me olhou meio abobado, surpreso, parecendo não saber do que eu estava falando. 

“ - Então te prepara, meu velho. Porque o bicho vai pegar! Que esta doença é progressiva!” - Falei.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

A DESPEDIDA


 “ - Um dia, para continuar vivendo, tive que apagar as lembranças da minha memória. As boas e as ruins. Elas vinham e batiam forte, quebravam a porta e me arrebentavam por dentro. Olhava para os lados, e todos aqueles que me apareciam na mente, estavam distantes ou já haviam morrido. Aprendi a esquecer. Com o esquecimento parei de me sentir culpado e afastei a saudade para longe.”

Foi o que ouvi do Irineu numa conversa que tivemos quando ele enfrentava no leito do hospital, uma terrível doença terminal.

Éramos grandes amigos, e eu sabia dos seus segredos, dos seus desencontros, daquilo que lhe machucava. Conheci o seu calvário e admirava o esforço que fazia para encontrar uns pedacinhos de alegria para continuar em pé, com dignidade.

Domingo, final de tarde, após duas semanas de internação, quando foram embora as últimas visitas, ameacei levantar para sair, vi a sua mão fazendo sinal para eu permanecer.

Ficamos nós dois a sós, quando o Irineu me pediu para chavear a porta do quarto. Obedeci. A seguir, com a minha ajuda sentou-se na cama com muita dificuldade. Apontou para o pequeno roupeiro, de onde retirei uma camisa branca e um terno preto, com sapatos combinando.

“ - É a minha mortalha” - me disse num tom pesaroso. “Mas hoje vou usá-la pela última vez, ainda vivo.” E me pediu para ajudá-lo a vestir-se.

Entendi naquele silêncio o que iria acontecer e não interrompi. Não questionei, não impedi, não censurei e muito menos julguei. Deixei andar. E não me neguei a participar do que viria pela frente. Apenas reuni a devida coragem para aquela derradeira e necessária aventura.

Anoitecia na cidade e o meu amigo ficou em pé, com as pernas frouxas diante do espelho. Arrumou o cabelo, ajeitou o colarinho da camisa, passou as mãos nas lapelas do casaco, enfiou o braço no meu, me olhou com cara de menino travesso, apesar dos seus 50 anos e da doença; fez um sorriso maroto e me disse: “ - vamos?”

“ - Vamos! Claro que vamos! Mas que desculpa esfarrapada daremos na portaria desta ala e para os guardas lá embaixo?” Perguntei.

“ - Não te preocupa com essas bobagens. Já acertei tudo!”

Com muita dificuldade chegamos até o elevador. Era um andar pesado, arrastado, demorado, nervoso, claudicante. E eu nervoso, pensando que aquela espécie de fuga não daria certo. Só me acalmei quando uma moça vestida de branco, ao passar por nós, deu uma piscada de olho para o Irineu. Então entendi que eu não era o único cúmplice naquela humana rebeldia.

Pegamos um táxi, e ele ordenou que fôssemos até o bar onde durante décadas, a nossa turma sempre se reuniu.

Surpresa! O Irineu já havia providenciado os detalhes para aquele momento. Lá estavam todos esperando. Os velhos amigos de uma vida inteira. Éramos mais do que uma família, afinal nós escolhemos e fomos escolhidos uns pelos outros. Entre nós era puro coração, um céu de afinidades, rios de eternas discussões.

Conversamos animadamente em sua volta e ouvimos comovidos ele falar também daqueles assuntos que aprendera a esquecer. Tirou para fora todas as suas dores emocionais. Depois ficou mais leve, com ar sereno; mais mortal. Buscando forças na fragilidade. Falou, sorriu, chorou e choramos todos, abraçados numa imensa comunhão. Recordamos das nossas trapalhadas com as namoradas e da boa boemia que não existia mais. Dos bons e velhos tempos que haviam desaparecido junto com nossas juventudes.

E bebemos e ele também. Tarde da noite, já sentindo dores lancinantes espalhadas pelo corpo e pelos ossos, pediu para voltar para o hospital.

Foi uma despedida difícil, desgraçadamente dolorosa. Sabíamos que se tratava do nosso último encontro, e que o desfecho vinha a galope para buscar o nosso Irineu.

Entramos no táxi e rumamos para o hospital. Desde o guarda da portaria central e os outros funcionários vieram ajudá-lo, com gestos de cortesia, com palavras amáveis, e com uma cadeira de rodas.

Depois no quarto, deitado e medicado, após se negar a retirar o terno preto, segurou firme a minha mão e me falou: “ - obrigado meu velho! Eu sabia que só você teria a coragem e o entendimento para me dar esta alegria. Foi um grande presente, e estou muito feliz. Podes acreditar. Agora é tudo comigo!”

Ainda pediu para que me abaixasse sobre o seu peito, quando recebi um abraço e um beijo no rosto e um sorriso conformado de quem já estava com as malas prontas para partir. E me disse para eu ir para casa. Que agora queria ficar só. Compreendi a intenção, porém sem alcançá-la por inteiro.

No instante que cheguei em casa, tocou o telefone. Suicídio.

O Irineu acabara de se atirar pela janela do quinto andar. Não teve paciência para esperar a chegada do sofrimento da agonia final, que lhe traria a glória do eterno descanso. Foi encontrá-la, ainda pelo caminho.

No velório, batemos palmas para ele.