sábado, 30 de novembro de 2013

VIVER, DEPOIS ESCREVER

O apartamento estava uma bagunça. Cinzeiros transbordando, a cama de casal desarrumada. Diante da janela, na escrivaninha, rascunhos, folhas amassadas e outras em branco e as contas de luz, aluguel e condomínio vencidas. Sobre o sofá uma mala vermelha estufada com sandálias, tênis, vestidos, blusas, saias, camisetas, sutiãs, perfumes e um casaco estampado e uma revista de moda.

Ouve-se um barulho na porta e após insistentes batidas, João Francisco, meio depressivo, sonolento, tentando curar a quinta ressaca consecutiva, vê pelo olho mágico a imagem da sua Antônia.

– Vim buscar as minhas coisas, Francisco!

– Não faça isso querida. Vamos tentar mais uma vez!

– Nada de tentar outra vez! Não aguento mais essa tua vida. Olha só a sujeira deste apartamento. Depois que resolveste ser escritor, só te preocupas com isso, Francisco! As demais atividades importantes, e eu principalmente, fomos deixadas de lado. Chega! Não quero saber de ti e desses teus escritos malditos.

– Antônia, eu te prometo, eu juro por tudo que é mais sagrado que vou mudar. Vou arrumar um trabalho fixo, vou te levar ao cinema, ao teatro. Vamos passear novamente de mãos dadas pelos parques da cidade como dois apaixonados namorados. E só vou escrever, de hoje até o dia da minha morte, não mais do que quinze minutos por dia. Podes acreditar Antônia, vou disciplinar a minha vida. Vou ser outro homem!

– Quantas vezes já me prometeste essas mudanças, João Francisco? Quantas? Dez, cem, milhares de vezes, e continuas o mesmo egoísta, relaxado e desatencioso de sempre. Tu só amas a literatura e essas ideias malucas que a toda hora, incessantes tal um olho d'água brotam desta tua cabeça irresponsável. Cabeçudo! Cabeçudo! Tchau, tchau e tchau. Tchau pra sempre, cabeçudão. Devoraste a minha juventude, seu canalha! Todas as minhas carnes se consumiram nas tuas mãos, desgraçado!

Foi até o sofá, decidida e braba como nunca, pegou a mala vermelha, o casaco estampado, a revista de moda e sem olhar para trás bateu a porta nas fuças do Francisco.

Ele foi até escrivaninha, sentou-se, apoiou o queixo dentro da concha da mão esquerda e pensou: “Tá bem! Ela se foi, mas me deixou um bom enleio cheio de altos e baixos; encontros bonitos, brigas e reconciliações. Separações e reencontros. Foi muito instável esse relacionamento! Mas, quem sabe, esta não seja a história que eu sempre procurei? Afinal, só o que dá errado pode render uma boa trama!”

Olhou pela janela e viu a praça com os ipês e os jacarandás floridos, e os sabiás trinando suas canções de acasalamento e sentiu o ar gostoso da primavera bater suave no rosto e invadir a sua alma.

Com um renovado vigor, abriu um cabernet antigo, pegou a caneta e foi tentar escrever o livro da sua vida.

Então fez vibrar a ponta da pena que lascou quente no papel, o título: “primeiro viver, para depois escrever.”

A PERUCA

Patrícia, moça tímida, universitária, filha de uma conhecida família do interior que por não gostar dos seus cabelos, do seu rosto, nem do seu corpo, nem da sua alma, nem das suas mãos, comprou uma peruca feita de cabelos humanos, de um loiro legítimo, bem tratado. Pensou que esse adereço lhe daria aquele encanto, uma simpatia que naturalmente não possuía. 

Acordava cedo, tomava um banho, passava um gel pra baixar os cabelos enfiava a peruca loira. Pronto. Se achava outra mulher, com a longa e brilhosa cabeleira postiça. E colocava a cada dia no braço direito um dos relógios falsos, baratinhos, coloridos, combinado sempre com a cor das sandálias de borracha, também de pouco preço. Colecionar reloginhos era uma das manias que tinha. 

Uma semana após inaugurar a peruca começou a sentir uma espécie de náusea, um mal-estar seguido de uns pensamentos estranhos que traziam uma vontade compulsiva de transgressão. Uma força negativa tomava conta da sua alma, contaminada com ímpetos severos de ferir e até matar alguém. 

Entretanto, bastava chegar em casa, retirar a peruca para voltar a ser aquela pessoa de sempre: tímida, solitária, carente, colecionadora de manias. Depois do banho ligava para o Ronaldo Tavares, motorista de táxi, trinta e cinco anos mais velho que ela e dizia que o amava e que estava com saudades e que estava precisando do seu apoio emocional e ficava horas no telefone desabafando as suas instabilidades. 

Certa noite de céu sem lua, quando vai abrir a porta do prédio, por coincidência, o Ronaldo vem chagando para visitá-la. Elogia o seu novo visual, mas nota uma expressão diferente no rosto, no olhar, nas mãos da Patrícia. 

Sobem pelo elevador em silêncio até o décimo quinto andar. Que estranha está a Patrícia, hoje. Pensou o Ronaldo, sem ter coragem de romper aquela quietude. 

Senta no sofá, de novo elogia a Patrícia e não recebe resposta. Se distrai olhando uma caixa de sapatos cheia de relógios de plástico que estava sobre a mesinha de centro. 

A televisão e o aparelho de som estavam desligados, diferente das outras vezes, quando ela os mantinha em alto volume. Que coisa! Pensou o Ronaldo. 

Sem falar nada, a Patrícia vai até o quarto, abre a porta do ropeiro, retira lá do fundo, debaixo de uma acolchoado, uma adaga, herança do seu bisavô, das velhas revoluções, e vem macia, em silêncio, sem ruido, pelas costas do coitado do homem. 

Sente um forte arrepio que torna áspera toda a sua pele, e com a mão esquerda faz um gesto que pretende retirar a peruca. A mão para no meio do caminho. Uma força poderosa e incontrolável se apodera da outra mão. 

Ela dá três passos adiante em direção ao sofá, para e levanta a espada o máximo que pode, perpendicular ao seu corpo. Segura firme o cabo com a mão direita e a lâmina com a outra. Está possuída por gigantesca determinação maligna; precisa matar. 

Nesse exato momento, Ronaldo vira a cabeça para trás, e vê, estupefato, quando toda a lâmina afiada do ferro branco se enterra até o cabo, no peito da Patrícia. 

Quando levantou-se pra telefonar, com a moça agonizando, já com a metade daquele espírito no outro mundo, o Ronaldo sem entender o que havia acontecido, viu as mechas dos cabelos loiros da peruca se erguerem do tapete, vibrando, parecendo labaredas de fogo que dançavam dando risadas, fazendo uma festiva algazarra como se estivessem comemorando uma grande vitória. 

Lá fora, chovia forte na noite escura e todos os reloginhos de plástico pararam marcando o mesmo horário.

A JAPONA DO BRECHÓ

Tarde enferruscada de um inverno malvado, com pouco agasalho, Arcádio procurou um brechó, atrás de uma japona grossa, de lã pura, para espantar o frio. 

Encontrou uma, de cardadura natural, mesclada com filaças torcidas, tingidas de marrom, e outras brancas, da cor que brota do couro da ovelha; já meio surrada, um pouco grande; além do seu corpo. 

Mas com o escasso dinheiro que era dono, tinha que ser aquela, ou trincar os dentes por levar os relhaços do Minuano na cara. E foi dentro dela morar. 

Vestiu, e se foi rua afora. Ombros encolhidos, grudados no pescoço, gola levantada acima das orelhas e as mãos enfiadas nos bolsos, como dois bichos enfurnados em suas tocas. 

E o vento zunindo, desgovernado, sem patrão. 

Sentiu-se gente de novo, metido dentro daquela moradia quentinha. Sorriu contente pelo aconchego da nova proteção. 

De tão feliz que estava caminhou tanto que esqueceu de parar. Só parou no banco da praça, com as barras do amanhecer anunciando que outro dia vinha chegando, novinho em folha. 

Deitou e dormiu, e no meio do sono sentiu uma sensação estranha; no corpo e na alma. 

No corpo, uns arrepios, de um arzinho assoprado, e na alma, uma outra coisa estranha se mexendo junto. Parecia que tinha outro por dentro. 

Sentou-se no banco de cimento, e soube, que quando se cobriu com a japona do brechó, vestiu junto os eflúvios, do outro, que antes ali vivia. Aquele, que com ela se vestia. 

Entendeu, que a japona estava forrada, não de tecido, mas da alma do antigo habitante. 

E se deu por conta, vestido com aquela roupa de segunda mão, que as vestes daqueles que morrem ficam impregnadas de suas almas. Compreendeu, que quando usamos a roupa de quem já morreu, vestimos também o seu fantasma; a parte do defunto que não morre nunca. Que ficamos com a alma do outro, misturada com a que já temos, feito um encosto a nos atarantar. Associa-se, se amalgamando em uma estranha liga, a energia que está entranhada nas costuras, nas pregas e fios das vestiduras do falecido, e vem se fundir com a outra energia que está aprisionada em nosso corpo. 

Derrepente, já final de tarde, deu por si, e morrediço estava a caminho de um cemitério, empurrado por um vento misterioso; um outro vento; levado sem saber por quem. 

Comprou da florista, a mando do inconsciente, um crisântemo amarelo, com a única moeda que sobrou, e viu-se diante de um túmulo bem acabado; onde pescou com os olhos, no retrato grudado no mármore, a figura de um velho sorridente, que parecia lhe cumprimentar. 

Deteve-se com atenção na fisionomia do morto, e observou surpreso, que o defunto estava usando a mesma jaqueta, recém adquirida. 

Foi quando estranhou uma batida forte no ombro. 

Tomado inesperadamente por um pavor que lhe paralizou os movimentos, arrepiando todos os pelos, endurecendo a face e trancando o maxilar; que apesar do frio cortante que atravessava os ossos, sentiu um suor amornado correr rosto abaixo. 

Entretanto, nada de sobrenatural, naquele entardecer de nuvens pretas arrodeando tontas pelo céu. Era apenas o porteiro avisando que estava na hora de fechar os portões do cemitério. 

Retirou a jaqueta do corpo, a atirou por cima da cruz da sepultura, devolvendo-a para o seu antigo dono, e saiu à rua, batendo queixo, de frio e medo, e cabisbaixo o Arcádio pensou: “- bem-feito. Quem foi que te mandou usar roupa de gente que já morreu!”

AMOR BANDIDO

Noite na praça, ajuntamento dos que perderam. Bêbados, mendigos, prostitutas velhas e velhos doentes, drogados de todas as idades se amontoam bebendo cachaça, tossindo deitados em tapetes de papelão. Aldeia dos derrotados. É a sociedade dos esquecidos, dos marginalizados, que corre ao lado desta outra que se tem por digna, feliz, higienizada e exemplar; bem arrumadinha. 

Um deles que faz papel de esposa, está enrolado num pedaço de pano lilás para servir de saia e outro retalho amarrado no peito querendo ser sutiã. Sandália velha de saltinho folgada no pé e os lábios lambuzados de batom encarnado. Unhas compridas imundas pintadas de vermelho. Brincos de argola, colares, pulseiras e anéis encontrados no lixo. Rude indumentária feminina revestindo corpo rijo de homem. Gestos e fome de fêmea dentro do corpo forte de macho. Físico de quem já trabalhou no pesado precisando renascer mulher. Dedos encardidos que seguram preciosa lata de alumínio, por onde fuma desesperado a pedra do alívio, da redenção, do esquecimento; do sonho, talvez. Ou da morte. 

De repente seu companheiro se aproxima com jeitão de bandido mandão, o baixinho, cheio de pose de valentão, com outra lata grudada nos beiços. Estufa o peito, arma o braço e lhe dá um soco na cara, mais outro no queixo, mais uma porrada no meio da boca seguido por um violento direto no nariz. O travesti cai gemendo. Recebe mais coices nas costelas, no peito, no pescoço. 

Rola no calçamento frio urrando de dor. Chora as lágrimas de quem apanha. De quem sempre foi surrado pela vida e que deu depois da paixão para apanhar de marido. Encolhe-se em posição fetal, soluça baixinho como se estivesse no colo da mãe que nunca teve, com os olhos atirados, quase santos para os pés do amante, que lhe dá, um, dois, três, quatro chutes na cabeça. 

Os habitantes da praça olham e não reagem, acostumados com brutalidade e selvageria. Desta vez não foi com um deles; que sorte! A regra na vida sempre mandou dizer, que não importa onde alguém esteja; seja no ápice, no meio, na base ou enterrado no barro podre do subsolo da pirâmide social, é lei, que em briga de casal ninguém deve se intrometer. Que resolvam por si as suas encrencas. 

O travesti levanta a cabeça do chão, busca os olhos do amante, diz que está com sede. Ele alcança meia garrafa de aguardente vagabunda que é sugada em goles que estouram na garganta. O homem senta ao lado do travesti e faz uma cara de felicidade. O travesti que atende por Flor sorri e se abraça no parceiro, que diz se chamar Rei, rei de Reimundo; é o que sempre explicou, desajeitado, sem ter bem certeza do que fala. 

Abraçados, corpos sujos, suados, fedorentos, deslizam colados um no outro degraus abaixo da escadaria e se beijam apaixonados no meio do jardim. Sem rancor, sem raiva, sem ressentimentos. Só paixão; tesão da pura. 

Os dois, protegidos pelas folhagens, com as bocas tingidas de sangue continuavam se beijando. Os braços se agitam nervosos, as mãos alisam pernas, peitos, e apertam demoradamente as partes um do outro, quando ele, a Flor, afasta o rosto e diz no ouvido do Reimundo: 

- Perdão Amor! 

- Que nada minha Flor. Esquece. Não aconteceu nada! 

Depois fizeram amor, ali embaixo das estrelas.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A CIGANA MENTIROSA

Andava numa secura de dar dó. O coração parecia um deserto sem fim. Nada de chegar um amor para me fazer sorrir. Com as mulheres, andava tudo dando errado. Que fase aquela! 

Decerto por me ver carente, uma cigana com jeito de sabichona me atacou na rua, me cobrou bem caro, leu a minha mão e me encheu de esperanças: “que no outro dia, entre o nascer do sol até a noite trocar de data, eu conheceria um novo amor. Uma moça linda se apaixonaria por mim; tipo amor a primeira vista.” 

Amanheceu o dia, tomei banho, fiz a barba no capricho, coloquei a melhor roupa, tirei um par de sapatos da caixa, botei um perfume bom, ajeitei um sorriso na cara, esperei a hora certa e fui para a rua, esperar e procurar o tal do prometido novo amor. 

Olhava as moças bonitas; quanta indiferença. Elas passavam reto por mim. Era como se eu não existisse. As de meia idade estavam já desiludidas, não queriam mais problemas. E as velhas, bem, estas, para o amor carnal há muito estavam aposentadas. 

Mas não desisti. No horário do almoço procurei um restaurante movimentado, próximo a um centro financeiro, onde as executivas de bancos, multinacionais e grandes empresas costumam almoçar. Quanta mulher bonita! Bem vestidas, elegantes. Parecia que estavam prontas para uma festa. Decepção total. Nenhuma me notou. 

Como sou persistente, insisti, afinal tinha ainda a tarde toda e um pedaço da noite pela frente. Fui até um grande shopping, pois é lá que elas sempre estão. Andei atento pelos corredores, desci e subi infinitas escadas rolantes, tomei 18 cafezinhos, almocei outra vez, fui na fila dos cinemas, cansei de olhar vitrines e ninguém, nenhuma daquelas lindas mulheres se deu conta que eu existia. Cheguei a pensar que eu estava transparente. Que havia me transformado, numa espécie de fantasma. 

Já final de tarde, exausto de tanto andar tentando encontrar a minha amada, aquela que a cigana me prometera para aquele dia, fui até o banheiro me olhar no espelho. Me achei bem, e pensei que era uma injustiça aquilo que estava acontecendo comigo. Mas era preciso continuar insistindo. 

Saí do shopping e depois fui ao teatro. Outro lugar frequentado por mulheres interessantes. Me exibi, desfilei, fiz poses de galã, sorri bem simpático para todos mundo, puxei conversa; tudo em vão. Ali não se encontrava o meu amor. 

Terminou a peça teatral, as dez e pouco da noite. Então, fui para um boteco encher a cara, desiludido com o empenho que tive, com o sacrifício e o cansaço que arrumei; tudo inútil, sem conseguir o amor prometido. 

Bebi todas, todo metido a bonito naquela espelunca desgraçada. Quase meia-noite; hora de fechar, anunciou o bodegueiro. 

Paguei a conta, olhei para o relógio que marcava, que ainda faltavam cinco minutos para a profecia se concretizar. Como não sou de desistir fácil, fiquei ali até o último instante. Morro, mas morro em pé, lutando, nem que seja com um toco de espada na mão! 

Foi quando assim do nada, quase uma geração espontânea, apareceu bêbado na minha frente um travesti enorme. Parecia um operário da construção civil vestido de mulher. Me olhou nos olhos, sorriu feliz, me chamou de lindo e disse que queria casar comigo. Disse com uma voz melosa, que afinal encontrara o amor da sua vida. Abriu os braços para um abraço e ajeitou a boca para um beijo. Cruzes! Levantei e fui correndo para casa, sem o travecão, é claro. 

Safada! Ainda vou encontrar e matar aquela cigana mentirosa. No mínimo, pegar o meu dinheiro de volta. 

Quando a fase está ruim, meu velho, não existe santo que ajude. Muito menos promessa de cigana.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O JOGO DE CANASTRA

Nas noites de sexta e sábado, a Nanci e o Cléber, a Mirtes e o Pascoal se encontravam para jogar canastra. Um fim de semana no apartamento de um casal, o próximo, na casa do outro. Bebidas fortes e comidinhas, cerveja, aperitivos coloridos e salgadinhos, azeitonas sem caroço e martini com cereja espetada no palito; mesa com pano verde e baralho novo, apostas em dinheiro para dar graça ao jogo, falatório da vida alheia, fofoca sobre as últimas separações e velhas anedotas para descontrair. 

A mesa retangular na sala servia de palco para os encontros semanais. Os olhares de cumplicidade das duplas de marido e mulher, mais os sinais combinados de véspera, se manisfestavam discretamente, pedindo as cartas que precisavam. Era uma roubalheira deslavada. Mas assim matavam o tempo. Desmanchavam um pouco aquela rotina infame que se apossa desses casamentos antigos, que se afundam em crise precipício abaixo, agonizantes rumo à inevitável decadência. Flores murchas, não mais regadas pelo orvalho refrescante da novidade e da surpresa; que desanimados, sem reação, sem resistência, vão se enfraquecendo descontentes, dia-a-dia, por cima dos braços da indiferença, do desamor e da traição conjugal. Porque pensam que a felicidade, que o tão sonhado jardim está sempre no terreno alheio. Imaginam, que tolice, que é lá que encontrarão os seus tão almejados pedaços de paraíso. 

E o que acontecia sobre a mesa, os dois casais observavam atentos. No entanto, o que se passava por baixo do tampo revestido com a toalha verde, estampada em toda a sua extensão com os quatro naipes do baralho, era pura sacanagem. Invasão de território. O micróbio do proibido invadia solto, livre e despudorado, as intenções pecaminosas dos parceiros. 

O dedão do pé do Cléber roçava, deslizando dos joelhos até as virilhas da Mirtes, que sorria encantada, disfarçando que havia fechado uma trinca. O pé inteiro do Pascoal desfilava faceiro entre as coxas da Nanci, que sorria maravilhada, disfarçando que havia fechado uma sequência. Noite adentro aqueles pés adúlteros dançavam sob a mesa, cutucando, acariciando, desbravando, testando, conquistando pouco a pouco, pedacinho por pedacinho, tão desejada e perigosa propriedade. 

Certa noite, o Pascoal já meio bêbado errou as pernas da Nanci e acertou o joelho do Cléber, e alisou bem carinhoso. O Cléber gritou: “ - o que é isso meu amigo?” Mais adiante foi a vez do Cléber enfiar o dedão no meio das canelas do Pascoal, que deu um pulo da cadeira, e reclamou do engano: “ - que se passa, meu camarada?” E o jogo não parava. Dê-lhe canastra real. Dê-lhe canastra suja. Ganha uma dupla, logo a outra também. 

Já madrugada, os quatro jogadores já possuídos pelo efeito do álcool, quando os pés do Cléber e do Pascoal se encontraram no cruzamento por baixo da mesa. Colocaram as cartas sobre a mesa, se olharam firmes um nos olhos do outro e o Pascoal tomou a iniciativa: “ - vamos parar com esta enganação. Faz tempo, meses até, que eu acaricio as coxas da Nanci, por baixo da mesa, e você faz o mesmo nas pernas da Mirtes. Vamos acabar logo com essa encenação. A casa tem dois quartos; vamos decidir no par ou ímpar em qual deles fica cada dupla e realizar logo esta troca que tanto queremos.” As duas mulheres se olharam e sorridentes disseram que sim. 

Na próxima noite de sábado para domingo, já mais domingo do que sábado, estavam os quatro lutando com coringas, trincas e sequências, completamente sem roupa, nus, um na frente do outro, quando a Mirtes, a mais solta da turma, falou: “ - todo cuidado é pouco. O jogo que corre por baixo das mesas pode ser mais interessante do que um inocente carteado. Para os casais que estão com o casamento em crise, então, canastra é um perigo. Ou uma solução.” 

Agora, há mais de três anos que continuam se encontrando, todos os finais de semana. 

E a canastra? Ora, o jogo de canastra é só um pretexto. Mais importante que lidarem com sequência e trincas, para eles o bom mesmo é aquela gostosa troca de par.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

RATO SECO PASTEL PRENSADO

É recente. O fato aconteceu há poucos dias atrás. Estava passando por uma rua abandonada que também servia de moradia para mendigos, drogados e cachorros sem dono. As casas, poucas, muito simples, de madeira sem pintura, levantadas a grandes intervalos umas das outras. E muito lixo amontoado naquilo que era para ter o nome de calçada. Festa para os enxames de moscas, mosquitos e baratas. 

Olhando aquela paisagem decadente me distraio e quase piso em cima de um rato morto caído no meio dos vivos, que em bando, roliços de gordura, corriam por entre aqueles montes de sujeira. 

Pois tinha, esse rato que quase nele pisei, mais de um palmo de comprimento, coisa assim semelhante ao tamanho de um filhote de cachorro. 

Desviei do bicho esmagado, que estava ali, achatado no chão. Tinha as patas e o rabo estirados, bem abertos, feito um pequeno tapete estendido. As tripas e fezes enegrecidas, junto com o sangue coalhado, davam um aspecto asqueroso na pelagem marrom-escura da ratazana. Só a cabeça inteira, ilesa do ataque que resultou na sua morte. E as orelhas em pé, com a boca arreganhada mostrando os dentes no formato de agulhas afiadas; e os olhos pareciam que ainda enxergavam, saltados para fora da cabeça, como se olhassem, indefesos, para as moscas e formigas que nele se banqueteavam. 

Bem, daqui para a frente fica difícil eu prosseguir. Longe de mim ter a intenção de revirar o estômago de alguém; de querer provocar náusea e nojo em quem quer que seja. Registro o caso não para causar repulsa, mas tão somente, por ter sido o que vi, um ato desumano, cruel, indigno, inaceitável, uma agressão à dignidade humana. Aquilo não era outra coisa, senão a desumanização ali presente. 

Sei que com esta narrativa corro o risco do descrédito, já que o que segue beira a inverossimilhança, a estupidez, ao inacreditável. Daí que relutei em escrever este caso, por ele conter a matéria exata para ofender os mais sensíveis. No entanto, é minha obrigação registrá-lo, não para chocar, mas sim, movido por um sentimento de indignação, de protesto, de repúdio, de denúncia, até. Nesta história em particular, não posso inventar. Por tratar-se de um fato verídico, devo resistir à tentação e não utilizar as tintas coloridas da invencionice; a força da imaginação. 

Então, vi um homem subnutrido com jeito e cara de gente louca, pés descalços, longas barbas imundas e cabelos do mesmo feitio; vestido em andrajos, desmoralizado pelo álcool. Carregava no rosto, na boca e nos olhos saltados a mesma expressão do rato morto. Após, vi incrédulo, aquele homem dobrar os joelhos em pose de oração para apanhar o bicho pelo rabo. Nem se importou com a minha presença ali por perto. Com o rato pendurado numa das mãos saiu apressado em direção ao mato do terreno baldio ao lado. 

O que aconteceu a seguir eu não sei. Mas a julgar pela maneira que olhava faceiro para o rato seco, me deu a certeza que estava faminto. 

Está bem, confesso. Eu menti quando disse agora mesmo que não sabia o que depois havia acontecido. Foi uma negação inconsciente, uma resistência em precisar esquecer a cena que presenciei. Um ato falho criado pela minha mente, vindo de uma vontade oculta em querer pensar que aquilo jamais aconteceu. 

Em seguida, assim bem nítido, diante dos meus olhos, por entre as macegas e arbustos enxerguei o homem com as duas mãos na boca, fazendo força com os braços, pressionando-os tal uma fera, para estraçalhar aquela coisa com os dentes. 

Naquele momento senti um suor frio descendo testa abaixo, ao mesmo tempo que um caroço pegajoso me enchia a garganta, e com o corpo esvaziado da alma que eu tinha, perdi a fé em todas as divindades. E sem esperança também na humanidade saí ligeiro, com as pernas cambaleando, para bem longe, sem rumo; em direção, não pensei, mas acho que em direção ao inferno; que na verdade, era dele que eu fugia. 

O homem comeu o rato!

O FIAT 147

O detetive Jorge Augusto recém havia chegado em seu escritório. Nem tinha retirado do corpo a capa de gabardine preta e as galochas molhadas pela chuva, que caia rigorosa lá fora, quando entrou porta adentro, com as roupas escorrendo água, a Virgínia, chorando desesperada, e disse: – Jorge Augusto, roubaram o meu Fiat 147.

– Calma Virgínia. Era só um carrinho velho.

– Era de estimação. Eu amava o meu 147.

– Te dou outro, e para de chorar, Virgínia.

– Não é a mesma coisa, Jorge Augusto. Aquele, tu me deu de presente de casamento. Agora não tem graça nenhuma. Estamos separados há dez anos. Esqueceu, Jorge Augusto.

– É mesmo. Tinha até esquecido.

O Jorge Augusto e a Virgínia estavam separados, mas continuavam sempre, um perto do outro. Eram como uma espécie de almas gêmeas geradas em placentas diferentes. Os corpos estavam separados mas os espíritos continuavam unidos. Na época, separaram-se por incompatibilidade de gênios, por causa das rusgas intermináveis. Brigas por ciúme bobo. Falta de maturidade. Entretanto, permaneciam com a mesma conta conjunta, dividiam as despesas das duas casas; quando um adoecia, lá estava o outro, solidário, prestando amparo. Só sexo, não mais faziam juntos.

Então, ela se aproximou do Jorge e ele a abraçou bem forte, e assim ficaram até acalmar os soluços da Virgínia, que batiam forte, feito pequenos murros, no seu peito.

– Vou me matar, se não encontrar o meu Fiatizinho.

– Bobagem. Vão os anéis, ficam os dedos.

– Tu não compreende mesmo, Jorge Augusto. Aquele carrinho possuía alma. Eu falava como ele, e ele até entendia. Quando eu ficava triste, louca de saudade de ti, era com o meu carrinho que eu desabafava. Sentava, me debruçava na direção e contava tudo pra ele. Entendeu agora, Jorge Augusto?

– Entendo. Eu também desabafava a saudade que sentia de ti. Só que não era com o meu carro. Era no bar, enchendo a cara.

– Viu, Jorge Augusto. Cada um desabafa do seu jeito, não é mesmo? Quero o meu amiguinho de volta. Investiga, procura, faz um B.O., reage, vai atrás, faz alguma coisa pelo amor de Deus, Jorge Augusto!

– Tá bem Virgínia.

Investigou, procurou, fez um B.O., reagiu, foi atrás, fez o possível e o impossível, durante um mês, e nada de encontrar o Fiat 147 de Virgínia.

Um dia, telefonou para a Virgínia a marcou um jantar no restaurante que sempre frequentaram. Aliás, ali, noivaram, comemoraram o casamento, e depois, festejaram todos os seus momentos felizes.

No horário combinado apanhou a Virgínia em sua casa e rumaram para o restaurante. Ela com o rosto inchado, marcado por mais de trinta dias de choradeiras compridas, intermináveis, cumprindo um longo e doloroso luto.

Após o jantar, ele convidou a Virgínia para irem até a rua , e lá mostrou pra ela um Fiat 147 estacionado. Do mesmo ano e da mesma cor. Igualzinho ao desaparecido.

Ela, surpresa, disse: – É o meu 147?

– Não. É outro.

– Mas, é pra mim, de presente? Vai; diz que sim!! Diz que sim Jorge, querido!!!

– Só se tu casares comigo novamente.

Ela acariciou emocionada a lataria do carrinho, e dava pulos e gritinhos de felicidade. Depois se abraçou no Jorge Augusto, e após um grande beijo, com cara de apaixonada, disse:

– Onde vamos morar. Na tua casa ou na minha?

– Nas duas!

terça-feira, 12 de novembro de 2013

A PRAÇA DOS AMORES COMPRADOS

Enquanto ele passava, uma velha gorda lhe disse: “ - vamos amor, minha experiência vai te custar muito pouco.” Mais adiante uma mulata com cara de sono, falou: “ - Só pela passagem do ônibus.” Outras com as pernas varizentas, propuseram: “ - nós duas, por um dinheiro qualquer.” Alguém que devia ser um travesti se ofereceu em troca de uma miséria para comprar droga. Uma loira de cabelo amassado falou alto: “ - vamos meu bem, por um prato de comida sou toda tua.” Outra que estava grávida, desdentada, implorou: “ - serviço completo, por uns trocados. Preciso levar pão para os três filhos pequenos. 

Ele sem responder as ofertas, meio desiludido, já havia quase atravessado a praça, quando uma delas, que não conhecia, com não mais que 17 anos, sorriu e lhe pediu um cigarro, com um sotaque do interior. Tinha os cabelos dourados, todos os dentes, unhas no capricho e um sorriso fácil que lhe vinha. Aparência de folhagem criada na estufa. 

Contou que estava perdida na cidade. Que não tinha onde dormir, nem outra roupa para vestir e nada para comer. 

Olhou para aquela moça que podia ser sua filha, falou qualquer coisa e foram para uma lanchonete ali por perto. 

Como come feio, uma pessoa quando está faminta. Devorou apressada três pastéis com duas xícaras de café-com-leite, e pediu mais. 

Disse que se chamava Florinda. Bem que era uma flor, e se descansasse seria linda também. Afirmou que fora expulsa de casa por conta de uma gravidez e um aborto feito às pressas. “ - Cidade pequena, pai antigo e conservador, sabes?” E que o 'causador' da gravidez, assustado com as ameaças, sumiu sem deixar rastro. 

Levou a Florinda para o seu apartamento. Um achado! Ela tomou banho, vestiu uma bermuda e uma camisa de homem e uns chinelos enormes de borracha. Lavou no tanque o vestido de seda e a minúscula calcinha vermelha, e limpou as tiras das sandálias prateadas. Deitou no sofá e dormiu com a televisão ligada na novela, depois do jornal. Ele olhava aquele corpo magro, comprido, bonito de se ver, e teve vontade de beijá-la. 

Bem que podia acontecer, pensou. Afinal, cinquentão, solitário há muito tempo, aposentado. Bem que podia acontecer e a Florinda ser a sua salvação. Bem que podia! Um socorreria o outro, como é do jeito que sempre acontece na vida. Sempre um está salvando o outro. Um escora, o outro segura. Parece que estamos sempre correndo perigo. Quase ninguém sabe viver sozinho. 

No outro dia foram no shopping comprar roupas. Como ficou jeitosa a Florinda arrumada; mais tranquila, cresceu a estampa da guria. Depois almoçaram no restaurante. Ela demostrou intimidade com os talhares e dizia coisa com coisa. 

“ - Queres morar comigo e ser minha mulher, Florinda?” Ela quase se engasgou com o cafezinho e olhou para ele como se precisasse muito daquela pergunta. 

Viveram juntos por aproximadamente três semanas. Estava indo bem a parceria, até que apareceu o Tobias, o rapaz que lhe havia engravidado. 

Mais uns dias, lá se foi ele de volta passear na praça. Ali, sempre aparece uma surpresa boa. Bem verdade, que tudo passageiro, nada definitivo. Porque, todo mundo sempre tem um pedaço de si, preso num gancho do passado.

POR CINCO DIAS DE AMOR

Verão. Praia. Sol. Noite. Movimento. Festa e gente bonita. O mundo aquele era só felicidade. Ali, ninguém tinha problemas. Estes, se haviam, ficaram guardados, chaveados num cofre, lá no lugar de onde toda aquela gente veio. 

Conheci uma moça linda. Chegara com seus amigos de Belo Horizonte. Alugaram um ônibus e partiram para as praias de Santa Catarina, comemorar a formatura no curso de Medicina. 

Ficamos juntos, eu e a Suzana por cinco dias, e as noites inteiras também. Depois conheci as suas colegas; as amigas da sua turma. E nos divertimos juntos. Às vezes. Nem sempre. Porque já éramos um casal formado às pressas pela urgência da atração, e precisávamos de longos momentos de intimidade, que aquele breve, inesperado e intenso relacionamento, de nós, tanto exigia. 

Foi um daqueles romances que acontecem nos verões, nas areias, nos bares; embaixo do sol e testemunhados pela lua. Amores que duram apenas aquele período e depois se terminam. Viram farelo ou estrelas luminosas na lembrança da gente. 

Mas que a Suzana e eu já estávamos apaixonados um pelo outro, ah, isso, tínhamos certeza. E os outros também. Durante aqueles cinco dias, onde um estava, junto estava o outro; bem agarradinhos, aos beijos e abraços. Quem olhasse, pensaria: “ - como se dá bem aquele casal de namorados. Um foi feito para o outro! Serão felizes para sempre!” 

Acordamos numa manhã iluminada. Entramos no carro e ficamos dois dias e duas noites longe do seu pessoal. Fui mostrar para a Suzana os lugares mais bonitos da terra. Andamos por Itapema, Bombinhas, Zimbros, Canto Grande e Tainhas. Na praia do Retiro dos Padres permanecemos uma tarde inteira e dormimos, se é que dormimos à noite em um hotel antigo que havia por lá; um palácio para nós dois. Ela, extasiada diante de tanta beleza criada pela natureza; eu, deslumbrado por toda a beleza dela. Nós dois liquidados pelos constantes exercícios dos prazeres amorosos. 

Quase que ela me prometeu voltar de Minas Gerais para ficar comigo. Quase que eu fui de mudança para ficar com ela. Nem sei porque uma dessas viagens não aconteceu. 

Domingo, já quase anoitecendo, todos reunidos na frente do hotel em Balneário Camboriú, prontos para partirem. A turma dentro do ônibus, menos a Suzana que estava ocupada comigo, ali sobre a calçada. Beijos, beijos e mais beijos e abraços de despedida, com uma ilhazinha ali na nossa frente, fazendo o cenário exato para o que entre nós acontecia. As suas colegas gritavam para mim: “ - vem, vem, vem; vem, embarca e vem!” 

A Suzana entrou no ônibus. Pedi para o motorista esperar mais um pouco. Ele gentil e conivente com o que via, abriu a porta. Entrei, abracei a Suzana e nos beijamos em pé no corredor. E choramos nós dois. E vi lágrimas no rosto das suas amigas. 

Sempre choro nas despedidas. É porque não sei me despedir direito. Sou muito fraco na hora de dizer adeus. Me emociono, me engasgo, choro e não consigo falar palavras bonitas. E eu nunca mais soube nada da vida da Suzana. 

Um grande amor de cinco dias!! Mas uma certeza eu tenho: é a Suzana, a médica mais linda que existe por lá. E tenho também outra certeza: que de vez em quando ela se distrai, com o queixo descansando na concha da mão, e atira os olhos para o passado para reviver aqueles cinco dias. E fica saudosa, bem fêmea, toda delicada, fazendo um leve sorriso com o canto da boca, lembrando de nós dois. 

É nesses instantes de ausência, que o homem que por ela se apaixonou, o seu marido, deve dizer: “ - por onde andas querida? Até onde foi este teu suspiro? Voltes aqui para pertinho de mim. Vem, preciso tanto te abraçar!” 

Para a Suzana, a mulher mais doce e bonita deste mundo. Porque ninguém precisa mais do que cinco dias, para viver uma grande história de amor.

PREJUÍZO

Solteirão, o Armando guardava a caveira do pai sobre a estante, ao lado de uma antiga bíblia com capa de couro endurecida pelo tempo. 

Nos momentos de aperto abria o livro sagrado em uma página qualquer, lia em voz alta o primeiro versículo pescado aleatoriamente pela ponta do dedo indicador, e pedia, respeitoso, um conselho para a cabeça descarnada do velho. Depois fechava a bíblia, agradecia, e saía para cumprir suas obrigações. 

Passou a infância, a adolescência; veio a vida adulta, chegou a maturidade e o Armando sempre dependente das orientações do pai. Não tomava decisão sem que houvesse intervenção paterna. Não dava um passo sem que o pai não lhe dissesse o que fazer. Não possuía iniciativa para agir por conta própria. Por esse motivo jamais casou, porque mulher nenhuma estava à altura do Armando, de acordo com a crítica severa do velho general Alcides, caudilho de remotas revoluções; homem acostumado a mandar e se intrometer na vida de todo mundo. 

Certa noite, o Armando levou a Francisca, uma colega de trabalho, quarentona, que se dizia ainda virgem, sedenta por casamento, para conhecer o seu apartamento, já que estavam mantendo há alguns meses, sério e recatado namoro. 

Abriu a porta, ascendeu a luz da sala, sentaram no sofá. A Francisca percorreu os olhos pelo ambiente, e observadora como costumam ser as mulheres, quis saber daquela caveira. 

Formal e respeitoso, o Armando levantou-se, foi até a estante e dirigiu o olhar submisso para aquilo que havia restado do general Alcides Aguirre de Aguilar: “ - Pai! Esta aqui é a Francisca, a moça que vou casar! 

Falou, fez uma reverência e voltou para o lado da namorada, que curiosa, procurou compreender mais sobre tão estranha, e porque não, macabra forma de veneração. 

Foi quando de dentro da caveira saiu uma voz cavernosa que só ele ouviu: “ - vagabunda. Esta mulher é uma vagabunda, Armando! Uma oportunista. Não inventa de casar com esta aventureira. Vai te trair na primeira oportunidade!” 

Ele sentiu um tranco na alma, uma secura na língua, um arrepio no pescoço, procurou forças respirando fundo e disfarçou, como se nada tivesse escutado. 

No outro dia, por influência da Francisca, devolveu a caveira para o cemitério, guardou a bíblia numa gaveta e marcou data para o casamento. Mas ficou latejando na cabeça do Armando: “ vagabunda! Ela vai te trair na primeira oportunidade!”, enquanto pensava acovardado: “quanto prejuízo esse velho causou na minha vida!” 

Amanheceu enforcado no galho de uma majestosa figueira, na praça em frente do edifício.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

QUANDO A CHUVA PASSAR

O tempo está de chuva. Antes que anoiteça vou comprar um vinho bom; melhor, por precaução, dois, e telefonar para você passar a noite comigo. Ando me roendo, faz tempo, de uma saudade que não tem cura. Vou preparar o ambiente bem ao teu gosto e deixar na ponta da agulha as tuas músicas prediletas.

Vou trocar os lençóis e as fronhas dos travesseiros e colocar toalhas novas no banheiro. Ah, não posso esquecer de comprar flores para te receber e um ramo de orquídea para enfeitar a mesa de jantar. E que seja lilás, tua cor preferida.

E vou escrever um poema com dedicatória para você ter na carteira, junto com aquele outro bem antigo, que sei que ainda guardas, e que o visitas de vez em quando, nos dias que precisas recordar da parte boa da minha alma.

Antes que anoiteça, vou também atrás dos ingredientes para preparar aquela comidinha que tanto gostas. E vou colocar, distraidamente, sobre a mesinha de centro as nossas fotografias. Haverão elas de nos lembrar, com mais força, do quanto já fomos felizes. E vou apagar as luzes e ascender duas velas; e assim, na penumbra jantaremos. Hei de conseguir ser romântico desta vez.

Eu que fui ficando descuidado com nós dois, e deixei que a rotina tomasse conta. Eu que parei de te surpreender. Eu que não reguei o nosso jardim. Eu que permiti que o cansaço nos atingisse. Eu que um dia me acomodei e nunca mais fiz versos para você. Eu que te traí. Eu que matei o nosso amor. Eu que machuquei para sempre o teu rico coração. Eu que nunca soube amar para sempre. Eu, que agora preciso tanto te rever, nem que seja apenas para te pedir perdão.

Não sei se acreditarás em mim, já que muito te enganei, mas necessito tanto que você me ouça. E quando estivermos jantando e bebendo vinho, olharei dentro dos teus lindos olhos verdes e te pedirei, se necessário, implorarei, que fiques esta noite comigo. Porque hoje fiquei pequeno demais e este céu pesado está quase me sufocando.

É muito importante que venhas, minha querida. Nem que sirva, tão somente esta tua visita, para eu olhar o teu rosto, a tua pele, o teu corpo; escutar a tua voz, respirar o teu cheiro, assistir o teu sorriso, e poder segurar as tuas mãos, acariciar os teus dedos bonitos. E se possível for, encostar meus lábios nos teus, e ainda, seria o paraíso, se eu pudesse te abraçar bem forte para sentir todo o teu corpo no meu. E poderia morrer depois, se fizesse amor contigo.

Anoiteceu rápido demais e a chuva bate forte lá fora. Já passou a hora do jantar e nada de você chegar. Enfim, toca o telefone e você me diz que pensou muito, e que é melhor que não; que a gente não se reveja. Que devemos continuar assim, separados; por longe um do outro.

Abro uma garrafa de vinho. Olho as flores entristecidas, porque são tristes as flores quando estão distantes de uma mulher, e bebo meia garrafa com a sede dos desiludidos. Guardo a comida na geladeira, sento no sofá pronto para pagar mais esta promissória, das tantas que já paguei, escutando a música, aquela, que desde o começo, você elegeu como nossa. Agora, tudo é só castigo.

Amanhã, esta chuva vai passar!