quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

COVARDIA

Cresceu dando murro em ponta de faca. Que a vida nunca lhe deu moleza, nem um copo de água fresca. Filho de prostituta de rua e de incerto pai viciado em baralho, cachaça e mulher de zona, vivia solto nas ruas e praças feito cachorro sem dono, esmolando, implorando, furtando ninharia. E dormia nas calçadas porque no casebre o que precisava não havia.

Mais taludo, até que deu para andar na linha. Foi trabalhar em obra, misturando cimento, padiolando tijolo, empurrando carrinho de mão. E por lá pernoitava de favor. O vigia se fazia que não enxergava. Foi duas vezes na igreja, se confessou com o padre, tentou aprender a rezar. Deu de costas para o altar: foi embora por falta de milagre.

Virou homem de rosto duro, corpo forte, atarracado. De poucas palavras e nenhum sorriso. Ganhou a alcunha de Bruto, único orgulho que sentia. Ignoravam seu nome, José, nas obras em que trabalhava. Valia o apelido, e pronto. Nem sequer sabia se possuía sobrenome e data de nascimento, muito menos quantos dentes inteiros sobrara na boca; pior ainda, se era alma aquela coisa que lhe batia por dentro. No abandono, via-se como se fosse apenas um bicho peludo que ainda se mexia, tal um cão, um gato, um morcego, um rato. Machucava a convicção que gente jamais seria.

De fato, muito bruto tornou-se o Bruto. Cresceu descrente, desconfiado, estúpido. Quase uma fera de tão valente. Revolta das brabas fervendo nos intestinos. Olhar arisco, enviesado, saindo espremido pelo rabo do olho. Para cometer um crime dos graúdos faltava pouco, que dos pequenos e médios fazia coleção. Prometia, por um desagrado qualquer, puxar a peixeira, mestre nesta arma que era. Na verdade devolvia para o mundo a amargura que o mundo lhe presenteou. Olho por olho, dente por dente da lei de Talião que nunca ouvira falar; único idioma que muito bem entendia. Rudeza viva atrás de vingança.

Certa feita, domingo de tarde, acordou revoltado porque lembrou não ter pai nem mãe que prestasse, nem mulher para se deitar, filho nenhum para acariciar. Derrotado, pensou em suicídio. Faltou coragem. Covardia nojenta. Ressaca do inferno.

Anoiteceu, saiu para encher a cara, desta vez precisando arrumar encrenca. Alguém seria escolhido para aplacar aquela agonia sem fim. Ajeitou a carneadeira na cintura por baixo da camisa e se mandou para a espelunca fedorenta do boteco do Ananias. Só ralé bebendo cachaça, discutindo porcaria de assunto.

Lá pelo quinto ou sexto liso de pura encasquetou com um mulato com talho de meio palmo na cara. Disse, com a faca presa na mão, assim do nada para o negro: “ - vou te cortar no outro lado. Assim tu fica parelho!” O crioulo, forte como um búfalo, que para flor também não servia, respeitada autoridade no uso do ferro branco, deu passo e meio para trás, puxou da adaga que brilhou na fraca luz enuviada de fumaça e partiu para cima do Bruto. A assistência abriu um clarão. Afastaram mesas e cadeiras e apostaram forte no Bruto.

Foi mais fácil do que imaginava. O negro, num rápido movimento, ameaçou atacar por baixo, o Bruto se abaixou para defender as partes e levou bem no meio do peito, de baixo para cima, um pouquinho para a esquerda, a punhalada fatal.

Caiu no chão amolecido. Antes do último suspiro, com uma ruguinha de sorriso no canto da boca, olhou sereno no rumo do mulato e disse com a voz pastosa: “ - obrigado, negro velho. Tinha que ser hoje. Eu não aguentava mais esta vida desgraçada!” 

De posse do bilhete de volta, deu um estirão na perna, fechou os olhos e viajou.

O CONSENTIMENTO

O Tarcísio cismou que tinha que casar. Era uma tradição na sua família os homens casarem cedo. Com vinte e oito anos se achava um solitário. Um sofredor. Comparecia nas festas e não aproveitava, não se divertia, não dançava, não sorria. Só bebia. Até cair. Só havia uma solução: casar.

Um dia perguntou para a Núbia, sua antiga colega de escola se ela queria casar com ele. Ela, primeiro levou um susto, depois ficou pensativa. E nesse emaranhado de pensamentos enxergou uma vida melhor, afinal os negócios do Tarcísio andavam de vento em popa. Então, devolveu o copo de guaraná sobre a mesa da lanchonete, olhou firme os olhos do Tarcísio, deu um beijo no seu rosto suado e disse: “ - quando?”

Dois meses depois estavam casados. Aparentemente felizes. Passeavam, se divertiam, dançavam, enfim, andavam sempre juntos, para cima e para baixo. A felicidade que havia escapado feito um pássaro arisco que que havia voado pra longe, voltou para o Tarcísio. A sua vida agora era só alegria. Os amigos até estranharam que por dentro daquele sujeito invocado, casmurro, houvesse, escondido, uma alma tão expansiva, doce e festiva.

A Núbia continuou do mesmo jeito: quieta, com um ar de mistério. Parecia estar sempre atirando, para quem a olhasse, uma espécie de indecifráveis mensagens. Mas isso ninguém estranhava, afinal, desde de pequena ela foi assim; econômica nos gestos, comedida nos sorrisos, discreta nas atitudes, parcimoniosa nos gastos, contida no vestuário e moderada com as palavras. Se tornara aos olhos de todos um exemplo de mulher, de esposa e de dona de casa. E por ser de pouca conversa ninguém sabia nada a respeito dos seus pensamentos. Nada, nada. Era um túmulo hermeticamente lacrado, a Núbia.

Antes de casarem, ela estava fazendo uma segunda faculdade: psicologia. E todas as noites o Tarcísio a levava até o portão da universidade, para depois, no final do turno ir buscá-la. 

Assim iam levando a vida. O Tarcísio durante o dia na sua loja de autopeças, a Núbia cuidando da casa, dormindo as manhãs inteiras e assistindo na tv, toda a programação da tarde. De noite a faculdade, e passeios no fim de semana nos parques da cidade e jantando fora, no mesmo restaurante, aos sábados a noite. Sempre.

O Valdo que era amigo do peito, de toda a vida chegou para o Tarcísio e disse, direto, seco: “ - A Núbia está te traindo:”

“ - Tá louco, amigo! Que bobagem é essa?”

“ - Está sim. Eu estudo na mesma universidade que ela, e três vezes por semana, nas segundas, quartas e quintas, assim que tu vais embora, após deixá-la no portão, ela anda um pouco pátio adentro, dá meia-volta e entra num carrão preto e só retorna meia hora antes de encerrar o turno. Entra novamente para o pátio, e quando chega a hora, ela sai, casta e pura, para ir embora contigo. Antes de te falar, observei por longo tempo essa rotina. Podes averiguar. Concluiu o Valdo.

Na outra noite, após a Núbia descer do carro e entrar no Campus, o Tarcísio estacionou o carro mais adiante, desceu, atravessou a rua e ficou observando.

Não deu outra. Aconteceu exatamente como o Valdo lhe contara. Esperou outro longo tempo, até que meia hora antes do término das aulas ela desembarcou do carrão preto.

E para ter bastante certeza, o Tarcísio repetiu a rotina de observação dos passos da Núbia naquelas noites marcadas, sem nunca lhe falar nada, sobre as suas repetidas e rotineiras traições. Continuava o mesmo, como se nada soubesse, até que um dia desistiu daquela dedicada, cansativa e já neurótica vigília.

Uma noite de sábado, final de semestre, após o jantar no restaurante de sempre, o Tarcísio diz:

“ - Como é o nome dele?” 

“ - Fábio.”

“ - Posso conhecer, o Fábio?” Perguntou o Tarcísio.

“ - Não. Vai perder a graça!” Respondeu a Núbia.

O Tarcísio chamou o garçom e pediu duas taças de ambrosia.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O PACTO

Era uma mulher formosa a Alberta. Farta de corpo, com um traseiro generoso, seios graúdos e uma boca apetitosa, úmida, sugerindo secretas tentações. Pele morena, corpo esguio e um par de coxas que eram um convite ao pecado. E os pés com tornozelos afinados e os dedinhos que pareciam frutinhas retiradas de um desconhecido pomar. Quando passava, deixava solto no ar o rastro de um perfume, que outra coisa não era, senão o cheiro de um cio acumulado; detalhe soberbo que a fez colecionar paixões devastadoras dos incontáveis e desesperados pretendentes, alguns capazes de abandonarem as suas ilibadas reputações, para terem o indizível prazer de poderem desfrutar, uma só vez que fosse, das carnes de tão exuberante mulher.

Lá pelos quarenta anos, com um passado desregrado e com um filha com quinze anos, conheceu o Jorge, e viu ali a escapatória de uma vida de dificuldade.

Casou com o Dr. Jorge, médico de bom nome, zeloso do seu ofício; cuidava com abnegação, quase como um sacerdócio, das doenças do corpo e da mente da sua imensa clientela. Era um homem bondoso, sossegado, caridoso; um bom coração. Atendia a todos a qualquer hora, independente das posses que seus pacientes eram donos. Nada mais justo que fizesse fortuna, com tão extremada dedicação aos males do ser humano.

O Dr. Jorge há pouco havia rompido a barreira dos cinquenta e sentia, quando a noite chegava, uma solidão desgraçada, e enxergou na Alberta a companhia certa para aquecer aquele solitário coração.

Trocaram, com essa união, os interesses. Cada um dava para o outro, aquilo que o outro tanto necessitava. Ela lhe forneceria companhia, ele, em troca, daria a estabilidade. Fizeram, o que acontece a rodo, quando a base dos relacionamentos funciona como uma espécie de comércio. Uma loja em que as transações nada mais são do que uma busca de vantagem pessoal, onde, inevitavelmente uma das partes deve entrar com uma boa quantia em dinheiro. Afinal, tudo tem o seu preço, principalmente quando o amor também está a venda.

Negócio fechado, agora havia um problema. Aliás, um problemão. Por ser portador de uma devastadora diabetes, o Dr. era proprietário de irreversível impotência sexual.

Quando ele confessou o seu drama para a Alberta, esta sentiu-se aliviada, e aproveitou a oportunidade para atirar as suas fichas na mesa e jogar. Disse para o Jorge que há anos tinha um namorado, o Pedro Galo, que a partir de agora – do casamento – seria o seu amante.

O Dr. sentiu o golpe, mas em instantes se recuperou. Entretanto, nada falou. A falta de voz é a emoção ou a dor do consentir, diz o antigo adágio. O silêncio do Dr. Jorge, deixou escrito nas entrelinhas, que assim poderia ser; doravante. Ali, naquele instante, ficara rigorosamente firmada uma aliança, que através daquele indelével acordo tácito, cada um cuidaria da sua parte, zelando os devidos acordos, para que o negócio se tornasse mais próspero a cada dia.

Só impôs uma condição, o Dr. Jorge: que tudo fosse feito discretamente. O seu prestígio não poderia, de modo algum ser abalado naquela triangulação. Acordo fechado, sorriam os dois de alegria.

O Pedro Galo, um rapaz bem traquejado, da noite, dado a festas, mulheres da vida e afeiçoado as cartas do baralho, também melhorou de vida, com o apoio financeiro, que agora a Alberta lhe concedia. Adquiriu roupas novas, comprou um carrinho usado, e bem exibido, andava com os bolsos extremamente bem capitalizados.

O Dr. Jorge caiu do céu, como um diamante sem jaça, enviado sabe-se lá por que espécie de divindade, para a Alberta, para a filha e para o safado do Pedro Galo.

Depois de uma certo tempo, os quatro passeavam juntos. Viajavam até a praia mais próxima, onde almoçavam, passeavam e faziam compras. Quatro não. Cinco. Por que a filha já havia arrumado um namorado. No carrão, o Dr. na direção, a Alberta ao seu lado. No banco de trás, a filha, o Pedro Galo e o namorado sentado entre os dois. Que alegria eram aqueles momentos. Todos sorriam, cantavam, e deixavam combinado onde iriam no próximo domingo. Olhavam para o amanhã e só viam contentamento.

Uma noite em famoso restaurante, após o jantar a Alberta comunicou ao Dr. que estava grávida. A filha baixou a cabeça e ficou brincando com os anéis, o namorado olhou para o teto e começou a contar as lâmpadas, o Pedro tirou a tampa do paliteiro e ficou dissimulando também, quebrando em pequenos pedacinhos todos os palitos que tinha na sua frente. O Dr., primeiro engoliu em seco umas bolas que trancaram na sua garganta, tomou um gole d'água, levantou a cabeça, sorriu o único sorriso que encontrou para sorrir e disse: “ - Que bom, Alberta. Que notícia maravilhosa. Estamos todos de parabéns. Vamos comemorar.” Chamou o garçom e pediu duas garrafas de espumante, esquecendo da diabete.

Brindaram, apertaram as mãos, se abraçaram. O Dr. beijou a Alberta, a filha e o namorado beijaram a Alberta e o Pedro Galo também beijou a Alberta.

“ - Se for guri vai se chamar Jorge Pedro”, exigiu a Alberta.

“ - E no dia do nascimento vamos fazer uma festa. E você, Pedro Galo, desde hoje já fica convidado para padrinho”, disse feliz da vida o Dr. Jorge.

O Pedro Galo topou na hora, dando uma piscadinha de olho maliciosa para a Alberta que devolveu a mensagem, com um leve sorriso, que mal mexeu com o canto direito da boca, com a cumplicidade de quem, separado dos outros, selavam dentro do ajuste atual, um outro pacto para o futuro.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O MARIDO DOMESTICADO

Assim que voltou da farmácia onde fora comprar absorvente íntimo para a Dinorá, o Elpídio sentou no sofá, colocou o gato felpudo no colo e disse baixinho para o animal: - que saudade do meu tempo de solteiro, quando eu era livre, meu amigo. Quando eu não tinha ninguém para obedecer. Da época que eu era um aprendiz de predador, vivendo em estado selvagem. Depois de casado o homem se torna um animal doméstico, cativo da sua dona. As esposas sabem domar um homem. É um ensinamento secreto que a mãe transmite para a filha junto com o leito materno.

Primeiro, a gente é criança e vive sendo mandado pelos pais. Depois fica adulto, casa e continua acatando ordens. Só troca a chefia. Agora que me aposentei, foi então que a coisa piorou. Me transformei em secretário da Dinorá: é um tal de Elpídio sair para comprar pão, leite e margarina, levar roupa na costureira, comprar esmalte e lixa de unha e tintura de cabelo, e pintar os seus cabelos. Sim, porque sou eu quem trata as cutículas, as unhas e os cabelos da Dinorá.

Parece que ela tem prazer em mandar em mim. Não pode me ver quieto que inventa alguma coisa para eu fazer. Ultimamente, são também, tarefas exclusivamente minhas, lavar a louça, cozinhar, tirar o pó dos móveis, arrumar a cama, limpar as vidraças e varrer a casa. E a madame, lá deitada assistindo televisão, ficando mais gorda a cada dia que passa.

Isso deve ser coisa do perfil de personalidade: homens calmos e fracos são atraídos por mulheres mandonas. Se eu fosse um homem durão, nem teria conhecido a Dinorá, porque homens fortes atraem mulheres sensíveis e mulheres autoritárias atraem homens frágeis. Os casais se formam baseados na ancestral lei da atração entre os opostos, feita por dominador e dominada ou dominado e dominadora. É a influência do império da lei da selva: o mais forte sempre subjugando o mais fraco.

Agora é tarde para mudanças. Até porque já estou acostumado com essa desmoralização. No fundo aprendi a gostar de ser mandado. Aliás, nasci para receber ordens. Não possuo espírito de liderança. Nunca fui promovido na repartição, justamente por ser alguém sem iniciativa, acomodado. Se não receber ordens, fico perdido, sem saber o que fazer. Acho que fui escravo numa encarnação passada.

Nisso a Dinorá gritou lá do quarto: “ - Elpídio, me faz um chá de boldo bem forte. Ah, e cuida para não ferver a água. Ah, e serve naquela xícara que tem um galo estampado. Ah, não esquece de conferir se desligou bem o fogão. Ah, e com duas gotas de adoçante. Ah, e não esquece do pires. E ligeiro Elpídio, que estou com o estômago todo embrulhado. Aquela tua maldita macarronada está viva, corcoveando dentro da minha barriga.”

O Elpídio olhou nos olhos do gato felpudo e falou para o bichano: “ - que porcaria de vida! É nessas horas que eu tenho vergonha de ter nascido homem!”

Recolheu com a ponta da língua uma lágrima quente que caiu sobre o canto da boca, e respondeu com a voz macia dos vassalos: “ - já estou indo querida!”

E o gato felpudo miou forte, exigindo leite morno no pratinho.

O CASALZINHO

Aquela não fora a primeira vez que a Maria Celeste flagrou o Fabinho experimentando os seus vestidos. Só que desta vez a coisa piorou mesmo, atingindo níveis preocupantes.

Pois chegou em casa, a Maria Celeste, antes do horário de sempre e viu com os olhos arregalados o Fabinho todo vestido de mulher, com um pretinho básico justíssimo, maquiado, unhas vermelhas, sobrancelhas aparadas, batom e cílios postiços e brincos com pingentes de ametista, colares e pulseiras, sandálias de saltinho e sutiã meia-taça com enchimento, e todo depilado fazendo boquinha e poses femininas na frente do espelho, embaixo de uma cintilante peruca loira.

– Fabinho! O que é isso, meu filho. O que tu estás fazendo desse jeito?

– Não é nada mãe. É só uma fantasia para uma festa temática.

– Festa temática? E por que não te vestes de Zorro, Super-homem, Batman, Homem-aranha, Chaves, então? – Tem que ser de mulher? Uma perua ainda por cima! E esse jeitinho todo afrescalhado, hein, seu Fabinho?

– Que nada mãe! É legal! É diferente!

– Se o teu pai te vê assim vai te matar! Aliás, vou ter uma conversa com o Haroldo, a teu respeito.

E se foi o Fabinho noite afora, quando um carro com um rapaz buzinou na frente da casa.

– Haroldo, é o seguinte: nunca te falei, mas a situação não é mais uma brincadeira. O Fabinho se veste de mulher, se pinta, se maquia, se depila. Acho que o nosso filho é gay. Acho não, tenho certeza!

– Nem diz uma coisa dessas Celeste. Não criei um filho pra ser veado. Não, não e não! Tu estás maluca, mulher. Me nego a aceitar isso como verdade.

– Mas é a pura realidade, Haroldo! – E mostrou umas fotos tiradas com o celular quando o Fabinho estava distraído.

O Haroldo caiu enfraquecido, branco como a neve por cima do sofá: – não acredito meu Deus. Vou dar uma surra no Fabinho. Vou mandar esse piá de bosta para os confins da Amazônia. Vou mandar ele para o Alasca. Melhor, vou matar esse descarado. Canalha. Onde já se viu, sair do meu sangue uma bichona. Isso é ridículo.

– Não é o fim do mundo, homem! Pensando bem, é melhor que ele seja gay do que ladrão!

– Não, mulher! Prefiro ele ladrão, assaltante de banco, batedor de carteira, do que veado. O que os meus amigos vão dizer? Vou virar motivo de gozação no escritório, no bairro, na cidade, no país, no mundo!

– Haroldo! Menos Haroldo. Tu estás assim pelo choque inicial. Logo tu te acostumas com a idéia.

– Nem pensar – disse o Haroldão já retirando o 38 do roupeiro. – O que foi que eu fiz, meu Deus? Meu único filho, um veado. Não! Não e não! Não aceito hoje e nunca essa idéia, acho que vou me matar de tanta vergonha. – E nossa família, Celeste? Já pensou, Celeste? Vai manchar a honra do nosso nome essa bicha enlouquecida.

Já madrugada, o Haroldo sem dormir, ouviu o barulho da porta se abrindo, e de cima das escadas viu o Fabinho todo vestido de mulher, bem fêmea, abraçado com um sujeito fortão, sarado de academia, todo tatuado.

– Pai! Este aqui é o Pedrão, o meu marido!

O Haroldo rolou degraus abaixo e caiu sem vida sobre o tapete da sala. Nem a respiração boca a boca que o Pedrão fez, resolveu.

Desceu a Maria Celeste, fez um chá de camomila. Tomaram os três na mesa da cozinha, e ela disse, olhando com ternura para o Fabinho: que belo casalzinho vocês fazem, meu filho!

E ela decidiu que iria para o quarto de hóspedes, e que após o enterro, o Fabinho e o seu marido Pedrão dormiriam no quarto dela, afinal, quem está casado precisa de uma cama de casal

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A BELEZA INTERIOR

Sim, eu sei. Eu sei! As feias e os feios dizem que o que conta é a beleza interior. Que a beleza física se perde com o tempo. E o que fica de marcante, aquilo que realmente interessa, é a luz que vem de dentro da pessoa. No entanto, sabemos que esse antigo e controverso discurso até hoje não foi plenamente comprovado. Não é matéria pacífica. Basta ver a imensa procura por cirurgias plásticas, rejuvenescimentos faciais e a enorme demanda por cosméticos, pomadas, cremes e loções, com o aflito propósito por melhoria da aparência. 

A Ondina foi ficando solteirona. O tempo foi passando, passando, e ela encalhada, agora com cinquenta e cinco anos, sem jamais ter conseguido um pretendente. Também pudera, era feiíssima, a coitada. 

Abandonou a interesseira ideia da beleza interior, foi até uma clínica de cirurgia plástica, avaliou os pontos que necessitavam de correções e fez uma espécie de consórcio, ou crediário em 24 parcelas, em busca da remodelação total da sua tão prejudicada fisionomia. 

Tirou uma licença-prêmio de seis meses que estava em atraso e despediu-se do pessoal da repartição; deu um abraço especial no Louzada, prometendo para quando retornasse, uma nova Ondina. Ninguém entendeu a promessa, e continuaram a não fazer nada, que é o que sempre faziam naquele órgão público. Fingiam que trabalhavam aquelas quinze pessoas, onde duas bastavam para a realização do pouco serviço que ali havia. Cabide de emprego: sabem? Todos sabemos! Mas isso é outro assunto. Voltemos para a Ondina. 

No hospital, na véspera da cirurgia veio o cirurgião para uma avaliação final, com uma planilha e um papel com uma silhueta humana, onde, com uma caneta vermelha estavam marcados os pontos a serem corrigidos. 

Ali, junto com a Ondina, o médico repassou os procedimentos: retirar as bolsas escuras debaixo dos olhos e os pés de galinha; encurtar o nariz adunco e deixá-lo levemente arrebitado; preencher com gordura os lábios caídos e murchos; diminuir os lóbulos das orelhas que haviam despencado; dar um acabamento no queixo que parecia uma bola vermelha; retirar a papada, que de tão crescida formou um segundo queixo; esticar a pele do rosto que havia desmoronado e retirar o excesso de pele do pescoço enrugado. Ah, a testa: fazer desaparecer aquelas rugas de expressão que lhe davam um ar pesado, sisudo. 

Do pescoço para baixo, ou seja, a diminuição dos seios imensos; a lipoaspiração na barriga, nos pneus, nas costas e quadris, bem como nos culotes, panturrilhas e gorduras nos braços, ficariam para a etapa seguinte, logo após a sua recuperação da primeira intervenção. 

Não teve sorte, a Ondina. O destino não lhe deu a chance de realizar a segunda fase da cirurgia, aliás, nem a primeira. Alguma coisa complicou com a anestesia e a mulher morreu na mesa de operação, antes que a magia do bisturi entrasse em ação. Além de morrer feia, morreu virgem, a Ondina. 

No enterro, os colegas da repartição comentavam que a culpa era do Louzada. Ela que era apaixonada por ele, e precisava conquistá-lo. Pensava que com o corpo remodelado, teria alguma possibilidade. Só a beleza interior não estava sendo suficiente para realizar aquela conquista. 

Sumiu a Ondina de cima deste mundo, da cadeira onde sentava e da mesa da repartição pública. E desapareceram os olhos, que enamorados, perseguiam o Louzada durante o expediente. Ele, que também não havia sido favorecido pela natureza com beleza alguma, viúvo, sessentão, na forma de desabafo, disse para os colegas na hora do cafezinho: “ - eu já nem olhava mais para o corpo e o rosto da Ondina. Já estava encantado com a sua alma cintilante, com o brilho do seu espírito, com a força da sua aura. Agora é tarde. Eu já andava ensaiando um convite para a gente sair para jantar, quando pretendia pedi-la em casamento. Agora é tarde. Muito tarde.” 

E saudoso, suspirando fundo, o Louzada completou: “ - Que beleza interior tinha a Ondina! Que beleza! Nunca vi mulher mais linda do que ela. Uma rainha! Uma rainha!”

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

ESTA GENTE MENTIROSA

Sem vocação para ser astronauta, costureiro, vidente ou feiticeiro, gerente de banco, dono de igreja, agiota ou vereador, bem como sem nenhum pendor pelas demais profissões de relevância, me restou ser garimpeiro de palavras. Me envolvo em juntá-las com a intenção de construir frases que mereçam ser escritas. É com elas que luto, atravessando longas e indormidas madrugadas. Tornar-me escriba foi a parte que me tocou, ao invés de me esforçar em outros mais estáveis, renomados e rendosos afazeres.

Assim, desprovido de talentos, desde que sei de mim vejo-me solitário, debruçado sobre uma mesa diante de uma folha de papel em branco, com uma caneta bic entre os dedos, espremendo a cabeça no afã de escrever histórias que o leitor não abandone antes do final. Dar vida aos personagens que me imploram para nascer, e desta forma, vivos, terem a única oportunidade de falarem sobre suas existências, tornou-se uma imposição, ao contrário de um mero ofício, ou ainda, muito além de um simples convite da alma para o diletante exercício de uma atividade eventual.

Incontáveis vezes ao longo da vida pensei em abandonar esta obrigação de ter que escrever. Prometi mil vezes e não cumpri. Sempre voltei à senzala tal um arrependido escravo fugitivo.

Mais tarde percebi que aquilo que eu pretendia renunciar, seria a minha salvação. Estou salvo, pelo menos até hoje, graças à imaginação, ao sonho; essa loucura de ter que deixar no papel os casos que preciso contar. Foi a ficção, a invenção, mais a realidade que vi, que vivi e que registrei, enfim, a literatura, que deram sentido à minha vida. Tanto o que li quanto o que escrevi, trouxeram um milagre à minha existência. Se não fosse por esses meios, já teria sucumbido. É apenas escrevendo que me sinto livre, independente, com autoridade plena para dizer tudo que digo. Quando escrevo sinto as minhas asas se abrirem para o infinito em tão indispensável voo. É quando consigo ser dono absoluto de mim. Não preciso de ninguém. Sou proprietário dos pequenos mundos que construo. Coloco, quando necessário, na boca dos personagens, as falas que não diria se usasse a primeira pessoa, e que de outra maneira jamais seriam ditas.

Nos momentos que estou envolvido com uma história, quando entro no universo da fantasia, exijo de mim, inventar, usando pincéis que mergulhem suas pontas nas tintas retiradas dos dramas que vivemos. Quando falo de fatos e pessoas reais, não permito que exista um distanciamento de suas vidas; tenho que ser verdadeiro. E nas vezes que digo de mim, não tenho receio em contar das minhas fraquezas e derrotas; abro o peito, mostro o coração. Deixo que me conheçam.

Mas aqui vai uma aparente contradição: sempre que pretendo refazer a vida, recrio-a a meu modo, da maneira que eu desejo que os meus personagens vivam; do jeito que eu queria que a vida fosse. Afinal, são os personagens, tão somente criaturas, mas que até poderão, que ironia, viverem mais tempo e serem melhores e terem mais importância, consistência e renome que o seu criador. É o grito do homem ecoando além da sepultura, quando as criações se tornam mais dignas e longevas que seus criadores.

Recebo notícias que meus dizeres levam distração, inquietação, e às vezes reflexão aos estimados leitores, que me honram por demais com suas preciosas atenções. Me realizo quando o barro que sovei foi bem aceito; que não entreguei um tijolo inútil. No entanto, não escrevo especificamente para alguém. Escrevo porque escrevendo me sinto vivo. Escrevo diariamente, porque todos os dias tenho que me livrar da morte; do vazio, do tédio, da inutilidade. Preciso me salvar a cada dia que nasce, assim como um corpo enfermo que necessita da salvadora dose de sua medicação de uso continuado. Somos, eu e o doente, e perdão aos que me leem, mas todos nós, as mesmas figuras humanas: tão frágeis, tão breves, tão aflitas, tão miseráveis buscando desesperadamente uma saída para as nossas dores e angústias. 

Finalmente terminei o texto acima. Disse algumas verdades minhas do ato de escrever. Porém me restou uma sensação estranha, melhor, uma evidente certeza, de que fui mentiroso quando pretendi ser sincero. Porque como bem disse Fernando Pessoa, que “o poeta é um fingidor...”, uma vez que é através da criatividade e da imaginação que ele se escapa; que sobrevive. E como é notório, que a literatura é o exercício da mentira, porque são os escritores, mentirosos profissionais; comigo é que não haveria de acontecer diferente.

Então, todo cuidado é pouco. Melhor não acreditar nos contadores de histórias, essas pessoas sem vocação para nada, que se utilizam da invencionice para tentarem ser alguém, enganando a pureza das boas almas dos leitores.



Para se salvarem, os escritores, nos seus romances, novelas, poesias e contos, são capazes de tudo, inclusive de inventarem as maiores mentiras já ditas sobre a terra. Gente muito falsa, os seres desta espécie. Por essas e por outras, é até aconselhável, ninguém conhecer pessoalmente os seus autores prediletos. Do contrário, vai haver decepção.