sábado, 31 de maio de 2014

SOBRANCELHAS DOURADAS

E ela que parecia uma flor aberta, solta, dançando faceira no ar, atravessou a rua sorrindo: “ – moço, sou nova neste lugar. Estou perdida. Não conheço ninguém por aqui. Nem sei o nome desta rua. Trocou de calçada de braços abertos, levantados como se fossem asas, assim, do jeito que fazem os amigos quando faz tempo que não se encontram. Veio, e veio decidida e se abraçou inteira no Joca que ficou imóvel tal um poste fincado no chão. Aquele abraço ficou durando mais tempo, do tempo que duram os abraços. Quando deu por si, o Joca também estava abraçado na guria. E era tão bonita, tão frágil, tão carente, tão cheirosa, com a pele tão macia, com os cabelos tão finos que voavam por iniciativa própria sem um vento que não existia. E possuía as sobrancelhas tão espessas e douradas e tão arqueadas que tornava exótica a sua beleza, fazendo um belo conjunto com seus lindos olhos azuis. Dois detalhes que enriqueciam mais e mais, aquele rosto de anjo despencado lá das alturas do céu.

Então ela disse com a voz fininha, aveludada: “ - sou a Sheila e estou tão sozinha que só me resta você. Me dê um tempo, porque agora só vai sair da minha boca, palavras que não vem do coração. Me leva, deixa eu dormir um pouco e logo saberás, que sou um presente enviado para alegrar a tua vida.” E continuou: “ – não me julgues por hoje. Apenas acredite em mim. É tudo que eu preciso, e você também. Nosso encontro não é uma mera obra do acaso. É o destino, o bom destino batendo em nossas almas. Vamos, me tire daqui! Necessito descansar!

Tinha a pele fina e muito clara. As veias azuis das mãos e dos braços se mostravam salientes, agitadas, denunciando a olhos vistos o sangue que por elas corria. Os cabelos louríssimos misturados com mechas quase brancas, longos, até pouco abaixo dos ombros, mais o modo de olhar, meio que com os olhos fechados, e uma tatuagem em forma de cruz ao lado do pescoço, davam-lhe um certo jeito de mistério. E a boca, que mesmo quando séria parecia estar sorrindo, trazia para os seus lábios de um tom vivo rosado, tal poderosa sensualidade, que provocou nos instintos do Joca, irresistível vontade de beija-la. Segurou a Sheila pela cintura, andaram duas quadras dentro da noite que já amadurecia, e entrou no prédio, abriu a porta do apartamento e tirou duas cervejas da geladeira e preparou um sanduíche para ela.

Depois ela tomou um banho quente e deitou nua no amplo sofá da sala. E dormiu com o corpo virado para a janela por onde brilhava a lua cheia, que passava enfeitando a escuridão. Respirava macio, tão suave que mal movimentava o peito com o ar que chegava e saía dos seus pulmões. Parecia a estátua viva da deusa da beleza dormindo. O Joca sentou sobre o tapete na frente do sofá, com as pernas dobradas em pose de meditação e pensou em voz alta: “ – Nooossa Senhora!! Isto que estou vendo é a mais pura imagem da criação de Deus. É a imagem da perfeição. Se Deus fosse mulher, esta mulher seria Deus.

Olhou os dedinhos dos pés, frutinhas que dava vontade de comer. Viu as pernas brancas tal uma nuvem recém-nascida, lisas e torneadas e quase passou as mãos. Fixou os olhos no ventre firme ainda não inaugurado e sentiu a força que vem da terra virgem. Notou os seios duros e os mamilos arrepiados e quis ser criança de colo outra vez. Por fim, não mais resistiu permanecer naquela contemplação e passou os dedos repetidas vezes na fenda sagrada que agita o mundo. Ela abriu levemente as coxas e se ajeitou inteirinha à sua disposição e ele a beijou inteirinha, desde os dedinho dos pés até o final da testa. A seguir retornou ao início, e demorou fazendo assim, agora com ela participando, se oferecendo inteira para ele. Depois ela segurou firme a cabeça do Joca, suspirou fundo e gemeu bonito de escutar. Prosseguindo, ele deitou por cima dela e se esgotaram de tanto fazer amor. No melhor momento, desta vez ela deu longo grito e mordeu, ferindo o lábio inferior do rapaz. Suados caíram em profundo sono.

Final da manhã o Joca acordou sozinho no sofá. Procurou a Sheila no quarto, no banheiro, na cozinha, na área de serviço, dentro do ropeiro, atrás das cortinas; nada da guria. Revirou os bolsos das calças atrás das carteira com o dinheiro que tinha, não estava, nem o relógio, nem a aliança de noivado que muito pouco usava, nem os dois celulares, nem o computador portátil, nem o livro do Quintana e aquele outro do Bukowski, nem o rascunho do último conto que estava escrevendo. Desaparecera também toda uma quantia de pequenos objetos de valor, mais um soldadinho de chumbo de quando era guri, e a coleção de moedas e uma fotografia na noiva.

Antes de sair para a rua, leu, no lado interno da porta escrito com lápis de sobrancelhas dourado, em letras enormes: “ – tchau, otário.”

A EXPERIÊNCIA

Ele chegou para o Joca, botou a mão no bolso e disse: “ - Pega este dinheiro e vai te divertir. Que sábado à noite todo homem precisa de uma mulher!” E o Joca ainda não tinha completado 15 anos. Ele voltou a dizer: “ - ali tem a Casa Verde. Vai lá e procura uma mulher chamada Marli. Diz que fui eu quem mandou. Ela é bonita, gostosa e sabe das coisas.

Mal caiu o sol, o Joca vestiu um roupa boa e avisou a mãe que ia na casa do Flávio, ler uns gibis da sua coleção junto com outros amigos. Foi. Mas foi para a Casa Verde. Já era noite. Envergonhado, de passo curto, chegou. Abriu a porta e levou um choque com as luzes coloridas que enfeitavam o salão. Respirou fundo e sentiu um gosto de pecado na boca. As mãos estavam frias, molhadas de suor. A música, um bolero, tocava alto, que doía nos ouvidos. Os homens bebiam, dançavam e conversavam animados com as mulheres. O ambiente estava alegre e festivo. Veio uma velha de vestido longo muito vermelho até ele e disse: “ - menino!! Aqui só entra gente maior de idade. Se a polícia aparece é incomodação na certa. Ela pode fechar a minha casa!” “ - Mas foi o Sananduva quem me mandou. Queria falar com a Marli!” - Disse o Joca.

“ - Se foi o Sananduva quem te mandou, então pode ficar. Vem comigo.” Foram até uma salinha com um sofá, mandou ele sentar e saiu. Logo entrou uma mulher alta, enorme, um mulherão de longos cabelos pretos toda sorridente. Muito jeitosa pediu para o Joca levantar. Ficou com o rosto na altura dos peitos da Marli, que o abraçou bem apertado, que lhe deu um calor estranho que vinha de dentro, como se feito na alma, que revirou seus intestinos. Depois ela falou com um sorriso sacana desenhado no rosto: “ - trouxe dinheiro, meu machinho? Que aqui o amor é pago. Vai aprendendo desde já, benzinho, que nesta vida não existe amor gratuito!”

Entraram no quarto que tinha no ar um perfume adocicado e ela tirou a roupa. Tinha a pele muito clara e uma pentelheira escura que parecia uma farta peruca crespa. Tímido, o Joca parou em pé na frente da Marli. Ela sentou na cama, segurou-lhe pela cintura e o puxou para perto de si. Desabotoou a camisa, baixou a calça, olhou admirada, de alto a baixo o corpo do menino: “ - gosto tanto quando pego um franguinho! Vou ser tua madrinha, sabe? Põe o dinheiro na mesinha!” - Falou.

Abriu as pernas e deitou o Joca sobre si, como se ele fosse uma criança. Acariciou suas costas, suas pernas e seu rosto. Passou os dedos nos seus lábios e mexeu nos seus cabelos. Com a mão direita ajeitou ele dentro daquela fenda quente e úmida. O Joca ficou com o rosto entre as tetas enormes, meio molengas da Marli.

Ela falou macio, tão bom de ouvir, pressionando e afrouxando as mãos sobre as coxas do Joca: “ - primeiro para baixo, agora para cima, para baixo, para cima. Assim! Isso! Continua! Assim, bem assim. Está aprendendo rápido meu machinho! Não para, porque está ficando bom. Aiii, como está gostoso. Vem queridinho, rápido, mais rápido, faz agora com bastante força, assim, assim, não para.” e deu um longo suspiro. Ela suspirou apertando o Joca, comprimindo ele inteiro contra o seu corpo. Imediatamente a Marli sentindo que chegava a vez dele aumentou o ritmo do vaivém, até que o Joca começou a tremer e uma espécie de arrepio, ou fosse lá o que fosse aquilo, tomou conta do seu ser. Assoprou um gemido longo e fino, e terminou.

Ela saiu da cama com uma das mãos entre as pernas, sentou numa bacia grande de alumínio com água pela metade. Lavou a parte usada que secou com um paninho branco felpudo e se vestiu. O Joca já estava arrumado. Antes de saírem ela deu um beijo demorado na boca do guri: “ - nunca beijo cliente meu. Só o meu macho. Mas tu é tão bonitinho!”

A seguir, ela pegou o dinheiro de cima da mesinha e enfiou no bolso da calça do Joca: “ - guarda, para passear com a tua namoradinha . Já tem uma menina que tu gosta, não é menino? Só vou te cobrar da próxima vez em diante. Vai lá e mostra para ela que agora tu já sabe lidar com uma mulher! Usa teu conhecimento, que experiência deste tipo, não é coisa para ficar guardada!”

A noite estava clara e a lua era a mais linda que já nasceu. O Joca chegou em casa. A mãe examinou de longe sua fisionomia: “ - estás diferente. Parece que pegaste pose de homem. Na casa do Flávio lendo gibi é que tu não estavas!”

Foi dormir com o dinheiro embaixo do travesseiro. Amanhã, domingo, convidaria a Giovana para passear no parque de diversões: andar na roda-gigante, girar com o cavalinhos do carrossel. Ia ser tão bom passear ao lado da Giovana, segurando a mão dela, comendo maçã do amor.

E, também, precisava contar tudo para o Sananduva. Sem dizer que teria que encontrar uma maneira, com urgência, de repassar toda aquela experiência para a Giovana.

O POETA E O JUIZ

O Silva foi meu colega no ginásio e no científico quando o ensino secundário e médio assim se dividiam. Sete anos na mesma turma. Era o Silva, filho de influente político, o colega mais feio e burro que eu tinha. Procurava sentar no meu lado e cansei de lhe dar “cola” nas provas mensais. Redação, ele praticamente copiava as minhas por inteiro.

Quando digo feio, era porque o coitado era feiíssimo. Não só o mais feio da sala como do colégio inteiro. Orelhas de abano e narigudo, cabeça pequena e pescoço longo meio torto para um lado, pernas em forma de tesoura aberta e pés enormes, desproporcionais, virados para dentro; quase fanho e estrábico, com os olhos cravados no nariz. E os braços quando caídos, passavam as mãos para um pouco abaixo dos joelhos. Comprido e desajeitado; parecia uma girafa atrapalhada com o próprio corpo.

Apesar da ajuda de alguns colegas, ninguém compreendia como ele passava de ano. Por exemplo: nunca conseguiu, nas aulas de geografia, decorar as capitais do Brasil, das Américas, da Ásia e da Europa. Em história, datas e nomes de personagens importantes jamais gravou na memória. Em português não aprendia os tempos verbais. Esportes, dessas atividades, por motivos óbvios, fora dispensado. Apenas para ficar nessas dificuldades. Mas o fato é que, dando um jeito daqui, outro dali, como por um mistério, o Silva sempre passou de ano acompanhando a turma até o final.

Ah, não posso esquecer de dizer, que ele me pedia emprestadas as poesias de amor que eu fazia. Mais tarde descobri que passava todas elas a limpo e as oferecia para a Berenice, quando surgia uma oportunidade de ficar a sós com ela, que estava uma serie mais adiantada que nós.

Depois me formei em direito, mas me dedicava mesmo era com as amadas e com os versos e os textos que precisava escrever. E da nossa turma do colégio cada um tomou o seu rumo, e nunca mais reencontrei ninguém.

Aconteceu que em dias recentes compareci em juízo como testemunha de um acidente de trânsito, quando certa noite, um amigo que estava comigo, ao atravessar a rua fora atropelado por um automóvel.

Iniciada a audiência, fui chamado a depor. Olhei aquele juiz careca, pescoçudo, orelhudo, narigudo, cabeça pequena, quase fanhoso e braços gigantescos sobre a mesa e não acreditei no que vi: ali estava o Silva de meritíssimo juiz, sentado naquela cadeira com espaldar alto, com a cruz de Jesus pregada na parede, acima da sua cabeça com os olhos ainda vesgos, presidindo os trabalhos.

Falei o que havia visto e o que sabia sobre o caso. Respondi perguntas, tais como se chovia ou não na hora do acidente, se o calçamento da rua era de asfalto ou de paralelepípedos, se a iluminação era adequada ou insuficiente, se o condutor do carro aparentava sinais de embriaguez, e mais outras perguntas tolas que já esqueci.

Terminado meu interrogatório, dispensadas as partes, fui até ele, e disse: “ – há quanto tempo, Silva! Fico contente que tenhas te tornado juiz de direito!”

Ele me reconheceu, me abraçou um tanto comovido, e de primeira comentou sobre as “colas” que eu lhe passava. A seguir, me agradeceu os poemas de amor que eu emprestava para ele copiar.

Me falou que estava casado, aliás, muito bem casado com a Berenice, aquela nossa colega do colégio, que deve ter cedido aos encantos dos versos de amor que o Silva lhe dedicava, dos quais, desconfio, que ela jamais imaginou que fosse eu o autor daquelas peças de puro romantismo. Me disse que a Berenice também se fizera juíza e que tinham quatro filhos e que era vovô de três netinhas lindas e que nada lhe faltava e que era o homem mais feliz do mundo.

Falou e sorriu com aqueles dentes curtinhos e espaçados e perguntou sobre a minha vida e como eu estava. Perplexo com o êxito daquele que parecia ter tudo para não dar certo, senti um amargo na boca e menti. Olhei firme dentro dos seus olhos e menti. Menti com todas as forças de convencimento que o mentiroso consegue arrancar das entranhas da alma; menti, que eu também era o homem mais feliz do mundo. Ele sorriu novamente um sorriso sincero e afetuoso; me abraçou mais forte desta vez dizendo, que o abraço de dois homens felizes é o melhor abraço do mundo. Mais um pouco e nos despedimos. Saí e fechei a porta da sala de audiências. Sentei num banco no corredor com o coração pegando fogo e um nó preso na garganta, e chorei as lágrimas dos meus desencontros e das certezas que eu tinha, que de certo quase nada possuíam.

E eu, o inteligente, o poeta dos versos de amor, agora aqui escrevendo sobre a feiúra e a burrice do Silva. Me olho no espelho, dou um grito e um beliscão no pescoço. Preciso saber se não estou delirando.

Vai ver que esta é a sina que eu carrego: de escrever sobre a vida e o comportamento dos outros, das dores dos amores perdidos e do que espio por aí. Mais os meus fantasmas e essa imaginação sempre fervendo, que não me deixa dormir.

sábado, 10 de maio de 2014

AS MOCINHAS DOS ARRABALDES

Por ser um incorrigível observador e um tanto piegas diante dos padecimentos humanos, me dá uma dor nas segundas-feiras, dessas mocinhas pobres dos arrabaldes. Sinto uma angústia ao vê-las fazendo fila para preencher uma vaga de balconista, nessas lojinhas de quinquilharias do centro da cidade. Fico com medo que elas não consigam o emprego. E experimento um sentimento ruim, tanto pela escolhida quanto pelas rejeitadas.

Paro e olho pobrezas e me vem um nó na garganta. Seus vestidinhos desbotados bem passadinhos. Seus sapatinhos esfregados na última hora com água e sabão. Suas blusinhas emprestadas da vizinha. Suas pinturinhas no rosto de uma maquiagem barata e um batom que não reforça contentamento nenhum. Seus cabelos ainda úmidos penteados com pente grosso. E umas pulseirinhas e uns aneizinhos e uns brinquinhos com umas pedrinhas antigas, sem brilho. Disfarces miseráveis que não escondem a origem e o despreparo de todas elas.

Noto que seus semblantes são parecidos. Filhos da mesma penúria. Desmaiados do mesmo mal. Vítimas da mesma dor. E, na fila, na calçada, olham para cima, para o nada; nem notam a criança suja que passa pedindo uns trocados. Parecem até vazias, sem esperança; que tudo nesta vida, tanto faz. Se perderem o empreguinho, não perderam nada, porque tudo já está perdido. Estarem ali, é como se esperassem, indolentes, uma esmola, um prato frio de uma comida qualquer.

Uma delas que demonstra vergonha por ter nascido, olha fixo para os pés, com os ombros curvados e os braços presos nas costas. Essa, já perdeu a coragem de olhar o mundo e as outras pessoas. Não mais se encanta com o milagre da flor que nasce. Nem sequer se interessa com suas concorrentes ao empreguinho.

Continuo fixado nela. É bonitinha, até. Vinte anos, se tanto, e já tão derrotada, tão morta, tão desesperançada; tão assim, indiferente com sua causa pessoal, prestes a desistir totalmente de si. Está naquela fila, só por estar, cumprindo uma obrigação ou uma ordem. Decerto, em casa, sua mãe lhe disse: “ - Põe uma roupinha, te arruma guria, e vai ser balconista de lojinha nesta vida. Vai, guria!”

Prefiro ver revolta e indignação ou alegria na atitude das pessoas. Mas quando elas, dizendo melhor, essas mocinhas, escandalosamente jovens, se mostram resignadas com a falta de sorte, renunciando os belos sonhos, apáticas, adoecidas, com a desilusão marcando forte suas expressões, quase morro junto com elas.

Eu, ali, como um espião da vida alheia, amargurado mais do que devia, senti uma vontade de gritar, de discursar para elas todas: “ - olhem gurias, olhem a vida em volta. Olhem as outras moças que passam e fiquem com inveja delas. E busquem nessa inveja a força para saírem de onde estão. Ou fiquem, se agarrem neste empreguinho, porém, não para sempre. Trabalhem durante o dia, e estudem à noite. Cansem, chorem de cansaço, mas não desistam jamais. Ah, e não sejam mães antes do tempo. Porque depois vem a recompensa; se vai embora a longa noite e o sol volta a brilhar.”

pensei e não disse nada, e me fui rua fora. Desiludido, sentindo que a minha alma estava igual a delas, derrota. Porque sei, que aquelas mocinhas, em todas as demais segundas-feiras de suas vidas, cada vez, mais e mais, vão estar sempre numa fila, esperando, como se fosse, um pratinho de sopa fria.

Sempre foi assim, desde o início dos tempos. No entanto, não podemos esquecer, que o ser humano ás vezes é maravilhoso e também, surpreendente. De vez em quando, uma mocinha dessas que está numa fila, sai do buraco, e dá um pulo para cima. Mais uma estrela no céu!

A MORTE DE UM SORRISO

Eu era muito jovem, dezessete anos, se tanto, quando conheci a Vera num baile no Libanesa. Fiquei encantado com ela toda, que tinha sempre um sorriso pronto, fácil e bonito no rosto. Estávamos bem no início dos anos setenta, e ela, além de cursar filosofia, militava contra a ditadura militar como membro de uma organização de esquerda. Tinha quatro ou cinco anos mais do que eu, que na época ainda não compreendia bem o que estava acontecendo.

Saíamos com certa frequência durante coisa de seis meses. Bebíamos cerveja, fumávamos e fazíamos amo não menos que duas vezes por semana. E ela sempre sorrindo para mim. Sorria com os olhos também. Quando sorria todo seu corpo junto. E eu gostava tanto de vê-la sorrir. Aquela alegria me atingia, me iluminava por inteiro. Seu sorriso era uma luz que acendia sua fisionomia.

E falava que a situação do país precisava mudar. E que se fosse necessário pegar em armas, não relutaria em fazê-lo. Que o seu grupo estava preparado para tudo, inclusive para o pior. Morreria pelos seus ideais. E tinha um porte, uma dignidade, uma energia, um destemor que me fascinava. Possuía uma força no olhar que parecia dardos apontados quando revoltada, falava sobre perseguições, prisões, torturas, desaparecimentos, mortes, praticadas pelos órgãos de repreensão, mais a falta de liberdade e a censura instauradas com o golpe militar de 1964. Nesses momentos, brotava da sua alma toda a indignação que sentia. Seu coração batia mais forte, seus gestos se alargavam, sua voz saia clara e decidida; renascia a guerreira. Após ia se acalmando, se acalmando, se tornando delicada outra vez. A seguir, segurava as minhas mãos e voltava a sorrir. Então eu beijava seus lábios macios ainda quentes, que junto com seus dentes perfeitos, desenhavam a boca que todo homem gostaria de beijar.

Depois nunca mais me encontrei com a Vera. Sumiu. Dela, ninguém sabia. Passou o tempo e fui esquecendo dos nossos encontros. Vez por outra me vinha na lembrança o seu corpo, seu cheiro de flor recém-desbrochada, das nossas tardes dedicadas ao amor, dos seus discursos políticos e me lembrava do sorriso mais lindo da cidade.

Tarde de um dia nublado e frio, encontro com um amigo numa esquina da Rua da Praia. Estamos conversando quando alguém bate no meu ombro e diz com uma vozinha adoecida: “ - Juca, me paga um café que eu estou morrendo de fome!” olhei para trás e custei a perceber que quem falava comigo, ali, magra, esquelética, suja, maltrapilha, enrolada nuns panos velhos era a Vera. Por instantes pensei que estava delirando. Não estava.

Deixei o amigo e fui com ela até uma lanchonete. Ela caminhava com muita dificuldade, puxando uma das pernas e tossia sem parar. Mal conseguia trazer a xícara e o pão até a boia de tanto que tremia. Ela tentou disfarçar com um sorriso. Não conseguiu. Apenas lhe veio uma lágrima pesada que se espatifou no balcão.

“ - Que te aconteceu menina?”, perguntei. Faltando os dentes superiores, respondeu: “ - Joca, eles me quebraram toda. Fui estuprada, levei choques elétricos na cabeça e na genitália, batiam sem parar; me torturam tanto que nem sei como estou viva. Fiquei um ano presa. Saí ontem da cadeia!”

“ - Eles quem?” Quis saber.

“ - Os milicos”, me disse. “ - Mas não contei nada. Não falei quem eram os meus camaradas de militância!”

Apesar do estado lastimável, a Vera ainda mantinha inteira toda a sua dignidade. Menos o seu encantador sorriso que desapareceu. Esse, eles mataram dentro dela.

UMA RUGUINHA NO CANTO DA BOCA

Por conta das histórias que escrevo sobre relacionamentos, noite dessas, numa festa de aniversário de um amigo, a esposa de um dos convidados, deu um jeito, e me perguntou como eu reconhecia uma mulher que traía o marido.

Já que não esperava por tal inquietação, parei por um instante o que fazia, larguei o copo na bandeja do garçom e atirei: “ - uma ruguinha no canto da boca!” Ela, espantada, devolveu: “ - uma ruguinha?! Como pode uma simples ruguinha ser tão denunciadora?” tive que ir mais longe: “ - minha cara senhora! Claro que existem outras pistas deixadas por olhares, expressões no rosto, gestos, palavras, um certo enfado dormindo no corpo. Mas o recibo final sobre a existência de infidelidade por parte da mulher, ela assina de forma cabal e definitiva, com uma quase inexpressiva ruguinha no canto da boca, que passa despercebida para quem não é atento nesses íntimos segredos. Ah, mas não é uma ruguinha qualquer. É ela, de outra natureza, muito diferente das suas parentas, aquelas rugas de expressão.

Ela me olhou, sei lá se admirada ou surpresa e antes de voltar para junto das outras mulheres, me disse: “ - tenho medo de ti!” “ - Estou acostumado”, respondi. “ - Quer dizer então, que toda mulher que trai, tem uma ruguinha no canto da boca?”, insistiu. Dei de ombros e fiquei quieto.

Depois ficamos em grupos, bebendo e conversando. Resolvendo os problemas do mundo e falando futilidades, que é o que mais se fala nessas ocasiões. As mulheres também, logo ali falavam agitadas de filhos, maridos, profissões, academias de ginástica; das suas alegrias e aflições.

Vez por outra eu notava que a mulher aquela, olhava em minha direção, assim como quem está diante de uma perigosa cobra venenosa. Cheguei a pensar: “ - Senhor, me transformei numa ameaça para esta mulher!”

Voltei ao assunto da vez na roda que eu estava. E já impaciente eu olhava na direção que ela estava. E ela parecendo perturbada continuava me buscando, interrogativa, desconfiada. Mas havia um mistério se descortinando, um secreto entusiamo em toda a sua pessoa. Está bem, confesso: “ - ela realmente demonstrava um certo interesse. Precisava ir adiante.” Pronto! Falei o que não queria e o que muito menos devia ter falado.”

Não mais de uma hora após a primeira abordagem, ela voltou rápida para me perguntar: “ - não enxergaste nenhuma ruguinha no canto da minha boca?” Olhei para os seus olhos enigmáticos e falei: “ - só uma bem fininha, ainda recém-querendo se formar, bem no cantinho direito da boca.”

Antes de ir em direção ao toalete, ela me disse, safadinha: “ - bem que eu já estava notando. Mas vou fazer uma cirurgia plástica!”

“ - Não vai adiantar. A ruguinha volta no outro dia.”

“ - Será?”

“ - Então experimenta. Eu se fosse você, não botava dinheiro fora!”

Ela ficou coçando o canto direito da boca com a ponta do dedo indicador, toda indecisa.

Nisso se aproximou um sujeito, o marido, que quis saber sobre o que conversávamos. Ela pulou na frente e disse: “ - literatura meu bem. Estamos falando dos meus autores prediletos!”

Ele retornou para o seu grupo de amigos. E nela, a ruguinha ficou mais forte.

A PENÚTIMA VIAGEM

Meu pai estava com setenta e dois anos e um câncer vinha lhe consumindo. Três semanas antes de baixar o hospital para morrer, pediu que o levasse para um passeio de carro. Claro, na hora me prontifiquei. Ele caminhava com certa dificuldade, trôpego, mais as dores que só aliviavam abaixo de tratamento específico e forte medicação.

Nos encaminhamos até a garagem, quando ouvi dele, que havia uma condição: pois que iria dirigir, tanto na ida como na volta, daquela viagem sem tempo e destino certo.

Surpreso, quase disse que não. Então pensei que não podia lhe negar o que seria um dos seus derradeiros pedidos. Embarcou, deu partida no motor e saímos aos solavancos rua afora. Nervoso, fazia força, precisando me passar tranquilidade. Era uma tarde de domingo e a cidade estava vazia e um sol preguiçoso amornava o dia e a nossa cumplicidade estava muito bem amarrada. Que fosse feita toda a sua vontade. Assinei o recibo em branco. Afinal, só eu, seu único filho, só eu e mais ninguém, podia lhe alcançar aquele sorriso.

Então pegamos uma estrada de mão dupla que se ia rumo ao litoral. Meu pai começou a acelerar. E foi gostando da velocidade que atingia. Sorriu bonito e apertou mais o pé olhei para o velocímetro e estávamos passando dos 120 quilômetros por hora. O seu rosto estava radiante, invadindo por raro contentamento e não parava de acelerar. Sempre com mais intensidade. Dei mais um espiada e o carro atingia os 140. Logo ele que sempre foi moderado na direção cuidadoso até um excesso em tudo que fazia. Naquele instante parecia um menino fazendo sua primeira travessura.

Já havíamos andado mais de meia hora naquela velocidade. Foi quando eu disse: “ - pai, diminui, porque deste jeito vamos ser multados. E não vai ficar bem, um respeitável senhor levar uma bronca da polícia!” - Respondeu: “ - agora, como está minha vida, com esta doença desgraçada, que me importa!” E acelerou, acho que por protesto, até perto dos 150. Eu não via a hora que iria acontecer algum imprevisto. Mas tinha o dever emocional e afetivo em honrar a parceria.

A seguir, retirou o pé do acelerador. Havia um retorno logo adiante e voltamos em direção à casa. Em seguida parou no acostamento, se ajeitou melhor no banco, tomou um comprimido que tirei do bolso da camisa e perguntou se eu estava gostando da aventura. Querendo lhe agradar, disse que estava adorando. Que devíamos continuar naquele ritmo.

Tornou a acelerar com a mesma impetuosidade anterior, e eu, quieto, aflito, procurando demonstrar normalidade, ouvi meu pai dizer: “ - como é bom dirigir! Como é bom dirigir!” Antes de chegarmos, muito cansado, estacionou na frente de uma sorveteria e pediu que eu lhe trouxesse um pote com três bolas de chocolate, e ouvi ele dizer, valorizando o momento: “ - ah, como é bom um sorvete! Meu Deus, como é gostoso um sorvete! Virei o rosto. Não queria que ele visse uma lágrima minha, que junto com outras não pude evitar.

Andávamos mais cinco quadras e chegamos. Do pátio, fomos abraçados até a cama. Deitou, e antes de dormir, com um sorriso de amigo me agradeceu com os olhos molhados.

Depois de alguns dias, meu pai foi hospitalizado. Naquele lugar, dentro do prazo estipulado, embarcou nas asas da morte, para, sozinho, começar sua última viagem. E eu, nunca mais gostei de sorvete de chocolate

sábado, 3 de maio de 2014

O AMANTE DA ESPOSA DO DR. ALVARENGA


A noite vinha chegando com a lua cheia soberana no céu. E na rua o ar abafado castigava os passantes. O casal estava sentado num dos sofás do amplo living do apartamento de cobertura, enquanto aguardava a chegada do Marlon.

“ - Que rapaz decente esse teu novo amante, meu amor! Estou encantado com ele!”, Disse o Dr. Alvarenga, quase setentão, para a Nicole, sua linda e jovem esposa.

E continuou o doutor, após servir em duas taças um champanhe com legítimo sotaque francês: “ - porque aqueles outros, por favor, Nicole, eram uns animais, uns exploradores brutos e ignorantes. Não passavam de gigolôs que só queriam o nosso dinheiro. Uns pobres coitados, sem postura e educação. Eles, que não podíamos levá-los ao cinema, no teatro, nos museus, nos finos restaurantes que frequentamos; na casa dos nossos amigos, nem pensar; seria fiasco na certa. Bem sabes que o nosso grupo social não tolera grosserias!”

“ - Agora, esse teu novo amante, o Marlon, esse tem estirpe. É um homem culto, apreciador de obras de arte e da boa literatura. Imagina só, Nicole, o Marlon recita o Fernando Pessoa por inteiro, mais o Drummond e o Quintana. Sinceramente, meu bem, esse moço foi um achado.”

“ - Claro Alvarenga querido, o Marlon é realmente uma pessoa culta, sem falar que é muito bonito, um Adônis de tão belo. Tanto é que as mulheres dos nossos amigos estão todas morrendo de inveja. Lembra sábado passado na festa de aniversário da Eremita, que elas não tiravam os olhos dele? A Jacira, a mulher do general Afrânio, toda assanhada, só faltou agarrar o Marlon pelo pescoço e sumir com ele para dentro de uma das suítes da mansão”, falou a Nicole.

“ - É que elas, minha querida, só andam com esses caçadores de mulheres ricas. Esses idiotas vazios, despreparados, incultos, que não sabem sequer conversar. Então é natural que elas sintam ciúmes, porque o Marlon, além de fino e preparado, parece um galã de cinema americano”, disse o Dr Alvarenga.

Renovando a champanhe nas duas taças de cristal, continuou o Dr. Alvarenga: “ - nossa viagem para a Europa, semana que vem, será um sucesso. Vai ser a tua lua de mel com o Marlon. Estou muito feliz, Nicole, por você estar com essa jóia de rapaz!”

“ - Deixa eu falar”, aparteou a Nicole. “ - Vamos revisar os últimos amantes que tive: o Evilásio, sujeito tosco que não sabia lidar com os talheres, mas era um monstro insaciável na cama. O Jaílson, quase analfabeto, porém me satisfazia dos pés ao último fio de cabelo. O Adolfo, mais rude não podia ser, só falava palavrão, mas me matava de tanto prazer. O Isidoro era um bêbado depravado, um escravo que atendia todas as minhas vontades, se esmerava para aquietar meus mais secretos desejos. O Álvaro era viciado em baralho, um boêmio inveterado, porém conhecia os segredos do sexo para fazer tudo aquilo que uma mulher precisa. O Teotônio, um sádico profissional, o maior cafajeste do mundo, só queria saber de dinheiro, roupas caras e relógios de ouro, mas era touro insaciável quando partia para cima de mim. Todos eles imprestáveis como seres humanos, no entanto, amantes espetaculares, garanhões de primeira grandeza. Isso você sabe, porque muito disso você assistiu. Os abandonei por pura implicância tua para com eles, Alvarenga!”

“ - Mas agora temos, ou melhor, você tem o Marlon, esse homem que é um tesouro”, disse entusiasmado o doutor.

“ - Não quero mais saber de viagem à Europa e de lua de mel com Marlon nenhum, porque tem um detalhe muito importante, meu querido! Disse a Nicole.”

“ - Não vais me dizer que...”

“ - Isso mesmo. Nessas duas semanas deu para perceber que ele não é muito chegado. Parece você, Alvarenga. Não é o Marlon, um macho cumpridor.”

A Nicole levantou do sofá, bebeu com impaciência duas taças seguidas de champanhe, olhou firme para o marido e desabafou: “ - sabe de uma coisa?! Quero aqueles meus animais de volta. Estou cheia de homem frouxo, bonito, educado e culto!”

O Dr. Alvarenga atendeu o interfone. Falou para o Marlon que a Nicole tinha mudado de ideia.

A MAIS LINDA PROFISSÃO DO MUNDO

“ - Esta é a mais linda e melhor profissão do mundo!” Era o que estava dizendo, com radiante entusiasmo, a Aiá para sua filha Biná. “ - Está no nosso sangue. É uma tradição de família que ao longo do tempo foi passando de mãe para filha. E com muito orgulho, meu amor, que hoje vejo você, pronta para ingressar, tão jovem e bela, nessa nobre atividade.

“ - Veja bem, minha filha!”, falou a Aiá para a Biná, “ - tua bisavó, avó e eu, mais as tuas tias e primas, tiramos o nosso sustento, nossas boas roupas, viagens, adquirimos nossas residências e demais imóveis e pagamos nossos luxos, com o exercício honesto e honrado dessa profissão maravilhosa.”

Continuou a Aiá: “ - nesta cidade abençoada temos como clientes as pessoas mais ilustres: grandes empresários, profissionais liberais, desembargadores, políticos, pastores e padres, enfim, querida, toda a fina flor da sociedade. Nossa fama ultrapassou fronteiras. Recebemos com frequência gente do exterior, principalmente de fala espanhola.”

Ainda a Aiá: “ - escuta, amada filha minha: simpatia, charme, classe, gentileza, competência, sigilo e satisfação total aos clientes são as nossas armas. E não esqueça que reputação, credibilidade e tradição, são as nossas bandeiras. Nunca, em tempo algum, nenhuma de nós denegriu o santo nome do nosso ofício.

A Aiá tinha mais o que dizer: “ - somos um patrimônio deste lugar. Somos motivo de comentários em todas as rodas sociais. Quando alguém se refere à nossa profissão, inevitavelmente precisa lembrar que somos as melhores. Isso se chama renome, bebezinho!”

Mais alguns conselhos, Biná: “ - jamais discuta com um cliente. Mostra sempre, delicadeza, educação, alegria e toda a tua beleza. Procura encantar a todos com os teus dotes naturais. Seja cordial, porém demonstre firmeza quando necessário. Nada de palavrões e de gargalhadas ruidosas; apenas sorria. Tenha gestos comedidos, sem exageros na postura e evita anedotas vulgares. Procura andar, parar e sentar com elegância, tudo conforme ensinam os manuais de etiqueta. E nunca pergunte sobre a vida particular dos clientes. Quando eles falarem de si, demonstre atenção; olhe a pessoa nos olhos, faça ela pensar que é o ser mais importe que existe. Saber ouvir é um detalhe muito importante no nosso trabalho: valoriza quem fala, enobrece quem ouve. E seja decidida e inflexível na cobrança dos teus honorários. Se alguém pedir desconto, diga com graça, das tuas competências e habilidades, e não ceda. Terminado o teu serviço, não mais permita intimidades demasiadas; um certo distanciamento valoriza tua estrela. Ah, meu anjo, ia me esquecendo do principal: nunca, jamais, em hipótese alguma te apaixones por um cliente, pois assim acontecendo fugirás das regras da nossa cartilha comportamental e serás uma mulher comum nesta vida.

A noite estava fresca, e a claridade da lua cheia entrava através da janela de uma das suítes no andar superior da mansão, onde estavam mãe e filha. Os luxuosos automóveis já lotavam o amplo estacionamento. “ - Pronta, minha amada?” Perguntou a Aiá, ajeitando uma rosa vermelha na farta cabeleira loira da Biná: “ -vamos, descer, que as meninas não estão dando conta de tanto movimento, afinal, hoje é a noite da tua iniciação na mais linda e melhor profissão do mundo. Vamos, minha mimosa?!”

Desceram a ampla escadaria de mármore em forma de meia-lua, formada com fina tapeçaria de cor idêntica da flor presa nos cabelos da moça. No meio dos degraus foram notadas, e sob os gritos de viva, a Biná foi imensamente aplaudida. Já no salão todos queriam vê-la de perto, tocar nem que fosse nas suas mãos douradas. Estavam diante da donzela mais bonita da cidade, que até então esteve estudando em outra capital, internada num colégio de freiras.

Os destilados adultos, puros de nascença, e os champanhes com certidão de nascimento facilitavam a descontração. O conjunto tocava um convidativo bolero, música que emprestava um leve fundo romântico aquela ambientação. Na pequena pista circular alguns pares recém-formados dançavam de rosto colado. Os lustres de cristal enfeitavam o ar com lâmpadas multicoloridas. Os tapetes importados eram pisados por sapatos da melhor raça e por sandálias cravejadas com pedrarias. Os homens vestiam ternos cortados por tesouras afamadas, e as mulheres, tal madames em festa de gala, encantavam aquilo tudo. Mas a Biná era o diamante mais puro, que cintilava luz e brilho para dentro dos olhos e dos espíritos de todos os presentes.

O desembargador Noronha aproveitando um descuido da concorrência se aproximou todo galante, ficou na ponta dos pés e disse baixinho no ouvido da Biná, que lhe daria um cheque assinado em branco; que ela preenchesse com a quantia que quisesse. E lhe forneceu tentador e irrecusável parâmetro: que podia ter o valor de um novo e bom carro importado, ou mais; que ele seria liberal e compreensivo quanto ao preenchimento.

Subiram os dois a escadaria atingidos pelos olhares ciumentos dos que ficaram lá embaixo. A suíte da Biná estava perfumada com o suave aroma que exalava de um vaso repleto de rosas brancas que adornava o toucador.

“ - Toda importância recebida é pouca. Que não existe preço caro; e em circunstância nenhuma o pagamento é muito para quem reluz no seu ofício!” - Falou a Aiá na tarde do dia seguinte, sentada ao lado da cama da filha, com o cheque do desembargar fixo entre os dedos.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

MULHER

Sou um observador atento do ser humano e me interesso pelas pessoas. Inquietações, sorrisos, alegrias e tristezas, o que vai pelas almas é coisa que prende minha atenção. Mais das mulheres que dos homens; que nós homens somos previsíveis e simplórios, não fugimos do padrão.

Sei o que quer dizer um sorriso forçado da esposa ao lado de seu companheiro. Leio com precisão a expressão de enfado no rosto de uma mulher. Basta o jeito com um dos dedos da mão, um menear de cabeça, uma palavra fora de ordem, uma maneira de fazer com os lábios, uma discreta ruguinha feita às pressas no canto da boca, uma falta de luz no olhar, e sei dizer a quantas anda o casamento. Posso falar do seu passado. Geralmente, relacionamento com mais de dez anos é um livro aberto que mostra o grau da rotina, o tamanho do desgaste, o nível de frustração dos envolvidos.

Mas quem é feliz no casamento? Depois de um certo tempo de união, quando os filhos já estão crescidos, quem não está frustrado dentro desta antiga instituição? Quantos projetos pessoais foram abortados em nome da vida a dois? Quantas viagens não foram feitas? Quantas amizades importantes deixaram de acontecer? Quantas realizações profissionais não aconteceram? Quantas mulheres inteligentes deixaram de brilhar, para serem apenas esposas nesta vida?

Quando vejo uma mulher infeliz, sei que o peso do longo e desgastado relacionamento está pesando e ferindo como uma canga, que pesa e fere o pescoço do escravo que a carrega. Sei que não está realizada; que lhe falta o prazer de estar lutando. Lhe dói a renúncia por não estar afiando seus talentos. Está achando muito pouco ser reconhecida apenas por sujeitar-se obediente ao jugo e as exigências rotineiras do contrato matrimonial.

Buscar a independência pessoal, intelectual e profissional, mais que um direito, é um dever de todos nós. Então, com é que deve sentir-se, nos dias atuais, uma mulher de forno e fogão, envolvida tão somente pelos afazeres do lar? Que passa pela cabeça daquela mulher que se deixou transformar numa bonequinha de luxo, exibida como um troféu pelo maridão, bem-vestida e bem-comportada, em festas e coquetéis? Com certeza, se não for uma aventureira, da vida, ela quer e espera muito mais?

Após mais de uma década metida num casamento enfadonho, a mulher dá mostras de fastio. Está se travando no seu íntimo uma batalha em busca da sua realização. Realização esta que o casamento já não mais lhe fornece, apenas lhe empresta um retalho de satisfação por um prazo determinado. Daí, que basta ver as estatísticas de separações e divórcios vindos por iniciativa feminina. E outra: estão casando mais tarde, as mulheres. As casadoiras agora, primeiro estudam, se qualificam, colocam-se bem na vida, para só então abrir a possibilidade de enfrentar uma vida conjugal. Entretanto, o homem escolhido por esta mulher não pode ser um qualquer. Ele não estará casando com uma simples dona de casa, e sim, com uma pessoa igual ou melhor do que ele, com um nível de exigência, muito acima daquilo que o homem antigo está acostumado.

Claro que existe alguma exceção, mas tenho notado que mulheres mais felizes são as solteiras, as divorciadas e as viúvas. E estas, estão correndo atrás dos seus sonhos, dos seus ideias ainda não conquistados, e quando sorriem, brota uma claridade verdadeira de dentro das suas pessoas. Estão livres. Estão indo em frente. Não devem satisfação para nenhum chefe fantasiado de marido.

Em geral andam muito tristes e queixosas as mulheres casadas. Existe uma falta, uma frustração nos seus olhares que em silêncio dizem tudo. Por conta disso está havendo um redesenho nas novas uniões e uma reluzente mudança no conceito sólido que se tem a respeito da família, consequência direta dos desafios que a mulher moderna resolveu enfrentar, agravado pelo encolhimento do homem, que assustado, sentou num canto qualquer, perplexo, sem entender o que está acontecendo. Aquela típica, tradicional, resignada, dócil e antiga esposa está desaparecendo, para dar lugar a esta outra que grita por liberdade, e como uma leoa vem abrindo passagem.

Todas as mulheres que foram à luta, estão tirando os lugares dos homens, na política, no jornalismo, nos tribunais, na área da saúde, nos altos cargos das grandes empresas e como dona dos seus próprios negócios. Merecem. Aliás merecemos, ou melhor, precisamos que elas todas cheguem lá nas alturas de todas as atividade humanas, afinal são elas, as mulheres, mais competentes, mais sensíveis, mais dinâmicas, mais compenetradas, e quiçá, mais honestas que esse macharedo que anda por aí, mandando e demandando neste vasto mundão.

Senhoras, libertai-vos. Ainda é tempo. Moças: namorem e estudem e conquistem seus ideias. Vocês que são os únicos doces, as mais lindas flores da criação, não podem, nenhuma, aceitar ser somente um colorido pássaro de cativeiro.

sábado, 19 de abril de 2014

O NEGRINHO DE ESTIMAÇÃO

Naquelas estâncias de antigamente imperava o machismo, a autoridade do patriarca e demonstrações de força, poder e valentia. A voz do estancieiro era um trovão divino; uma ordem poderosa, inquestionável, emanada de todos os céus. E as mulheres submissas, a não ser parir e cuidar da casa, quase mais nada podiam. Mas vez que outra se ouvia um grito de liberdade.

Eulália foi obrigada a casar, ainda uma menina, com um fazendeiro já meio passado nos anos. Para ela, um velho. Porque as moças naqueles tempos eram atiradas pelos pais, no colo de um ricaço qualquer. Ele, um sujeito relaxado que andava sujo de poeira e fedendo a fumaça de cigarro fechado em palha de milho. E como macho raramente cumpria sua missão; que para essas lidas do sexo, não era homem muito afeiçoado. A Eulália, coitadinha, estava seca, uma flor murcha por falta de homem. Nem para fazer um filho o velho Amâncio prestava.

Uma mulher numa situação dessas, faz de conta que baixa a cabeça, estuda o campo em volta, se decide e vai à luta. Quem está insatisfeito, de uma maneira ou de outra, sempre dá um jeito de buscar o que precisa. E agora Dona Eulália, ainda jovem, recém-chegada nos 20 anos, já estava cansada de se virar sozinha.

Nessa época não mais havia escravidão. Oficialmente. Mas as estâncias estavam cheias de negros e negras trabalhando por um trapo de roupa, por um colchão duro, por um prato de comida. Na verdade, tudo continuava como antes; o canetaço da Princesa Isabel, na prática, nada transformara.

Tinha o Amâncio mais de vinte negros sob a sua tutela, e entre eles o Pirilo, um negrinho esguio, bem formado de corpo, dentes brancos e faceiro, com pouco mais que 16 anos. Prestativo, cuidava do serviço da casa. Buscar água na cacimba, abastecer de lenha a cozinha, varrer o terreiro, e sorrateiro, espiar os tornozelos brancos e delicados da Dona Eulália, eram suas ocupações. Tornou-se protegido da estancieira, e nele ninguém encostava um dedo que fosse.

Ela não resistiu. Seria desumano exigir que resistisse. Mandava o negrinho para o mato, depois alegando um passeio, descia, e por lá, se satisfazia nas carnes do Pirilo. E gostava do negrinho. Como gostava dele. Pensava que até amor podia ser aquilo.

O coronel Amâncio ficava trocando orelha com aquela, digamos, íntima aproximação. Se queixou, e ela, dissimulada, disse: “ – que bobagem, homem! É meu negrinho de estimação!”

Passa o tempo, ela mantem o hábito de passear de charrete com o Pirilo. Visitavam o fundo dos campos, o rio, as prainhas de água doce. Apreciavam o canto dos passarinhos, o movimento das nuvens, a dança graciosa das borboletas que faziam desenhos coloridos no ar e a liberdade dos animais. E ela apareceu grávida. E nasceu um mulatinho; a cara do negrinho de estimação.

Foi um escândalo na família, na redondeza. A notícia chegou na cidade, virou assunto nos bolichos e barbearias. Até o chinaredo comentava. Não havia quem não soubesse daquele insólito acontecimento.

Um dia ela escutou o velho Amâncio tramando com um negro da sua confiança, que deviam matar o Pirilo e a criança. Que preparasse uma emboscada.

Esperta, ela, a Dona Eulália pulou na frente. Combinou com o Pirilo, que levassem, já no outro dia, para um passeio de charrete até o fundo do campo, no meio do matagal, o coronel Amâncio, alegando uma grande descoberta: o achado de algo que poderia ser, o local onde estaria enterrada uma tal panela de ouro, lendária no lugar.

Foram: o Pirilo, ela e o velho. Lá, por perto da beira do rio, longe de todos, onde só se ouvia o pio das aves, as folhas das árvores farfalhando ao vento e o som das ondinhas da água batendo suave nas pedras. Desceram. Um estampido cortou o silêncio, em seguida mais outro, e mais outro. Os dois primeiros atingiram mortalmente o velho, com um revólver que ela escondia embaixo da saia. O terceiro foi feito também por ela em direção às nuvens, com a própria arma do Amâncio. Não houve quem a quilômetros de distância, não tivesse escutado os três disparos. Pronto, estava construída a tese da legítima defesa.

A Eulália disse para o negrinho: “ – coloca o corpo na charrete. Vamos dizer que ele atirou primeiro e errou. Que eu atirei para salvar nossas vidas. Era ele ou nós!”

Depois a Eulália teve mais cinco ou seis mulatinhos. Um mais bonitinho que o outro, os filhos do Pirilo, que de negrinho de estimação, por essas voltas da carência de uma mulher, se tornou exemplar pai de família e em respeitável fazendeiro.

E amoroso que foi até morrer de velho, com os cabelos branquinhos de anjo. Porque a vida só existe, quando a gente tem um amor inteiro; só nosso.

sábado, 12 de abril de 2014

A CHUVA

Da janela olho esta chuva antiga, imemorial. Saio para me molhar. Tomar banho de chuva quando guri era um prazer que eu tinha. É uma alegria que não perdi.

Chuva que cai nos campos, nas florestas, nas lavouras, nos jardins. Que transborda os rios, que inunda as várzeas, que enlouquece os mares. Chuva que oferece o paraíso, chuva que traz a vida e a morte. Chuva que molha a terra que rega a árvore que brota a folha nova que nasce. Chuva que germina a semente, que sacia a sede. Chuva que revigora o verde; que mata a criança e o velho. Chuva que acende e apaga o milagre da vida.

Chuva que purifica nossas peles e almas, que lava nossos pecados imundos. Chuva que limpa as calçadas e ruas podres de urina e fezes dos animais e dos mendigos e dos bêbados e de todos os miseráveis do mundo, que sujam nossos olhos de uma culpa de todos nós.

Chuva que cai de um céu que nem é céu, que é um rio de nuvem de uma água suja que subiu. De uma água que subiu com as nossas impurezas, com nossos fluídos, com nossos vícios, com os nossos nojos; que subiu com nossas dores e mágoas, incertezas e frustrações, e todas as nossas lágrimas. Água que subiu com um punhado de nossas alegrias, gozos e comemorações.

Chuva de um ciclo que leva e traz, para cima e para baixo, nossas desesperanças, nossas melancolias, nossos vivas e o resto da festa que acabou; que leva e traz, incessante, nossos sonhos que teimam em não acontecer, que apenas mudam de lugar, acompanhando as águas da chuva.

Chuva que cai forte e desmancha os catarros verdes com frisos de sangue grudento; fétidos, depositados no chão, escarrados por bocas adoecidas, e mistura essas porcarias com outras águas, com aquelas que vamos beber. Chuva que se junta à toda espécie de imundície, expelida de gente e dos ratos e dos cachorros e dos pombos e dos morcegos e das baratas, que faz um caldo contaminado da água em que vamos nos banhar.

Ainda chove pesado. Por favor não para de chover, chuva forte. Só assim, com tuas águas misturadas com todas as podridões e azedumes da humanidade, nos lavamos uns nos outros e bebemos os licores orgânicos vertidos por todos nós. Somos iguais nesta hora: na hora do banho e da nossa sede. Todos os dias ingerimos e esfregamos em nossos corpos, os líquidos, o pus, os vômitos, os excrementos, as sobras, de bicho e de gente, de cada um que ainda vive. E depois, engolimos o chorume dos cadáveres apodrecidos de todos os seres vivos que já morreram. E ainda nos pesteamos mais e mais com as fumaças e partículas venenosas geradas da combustão no ventre das fornalhas, lançadas ao espaço pelas poderosas chaminés deste tão insano progresso. Poluição esta que o ar recolhe, armazena e nos devolve, toda vez que a chuva cai.

Que fazer? Não temos como escapar. Somos criaturas acostumadas com água escura clareada e até perfumada artificialmente. Ou modificada no interior da pessoa, da mulher, já no leite materno, da nossa sede inaugural.

Não existe uma só gota de água nova sobre a terra. Todo líquido impuro que existe já passou por dentro de nós, menos para o primeiro homem, o fraco do Adão, que bebia água santa e cristalina nas cachoeiras e rios do Éden, aquele ingrato. Porém, desde a povoação até o último recém-nascido, menino vigoroso que tem no sangue a responsabilidade da perpetuação da nossa raça, vai também ele cumprir a missão, de sujar a água que vai subir e depois voltar para banhar o mundo; sempre assim, até o final dos tempos.

E que cresça animado e mais tarde seja um adulto alegre, este guri que chega. Que ao ver cair os pingos mais fortes, abra a porta da casa e saia em direção à rua, para brincar e fazer festa, com o corpo todo molhado, recebendo prazeroso as delícias das águas da chuva. Enquanto é tempo. Notícias dizem que vai piorar.

O SALVADOR

Após o clarão quente que veio dos lados do inferno, a terra secou, o ar empestou, a água azedou, as doenças contaminaram todos os cantos da cidade e muita gente morreu. Os aleijados, os cegos, os leprosos gritavam por socorro estirados nas calçadas sujas de cinza. Aqueles que ainda possuíam forças vagavam famintos e sedentos sem saber para onde ir. O rio virou um lodaçal. Uma fumaça escura e fedorenta invadiu o firmamento.

As mães abraçadas em suas crias corriam desesperadas a procura de um abrigo. As crianças choravam sufocadas. A fuligem redemoinhava com o vento. O dia acabou. Veio uma noite para ficar. A multidão se transformou em fera atrás de comida que logo acabou. Os depósitos de mantimentos, os armazéns, os açougues e as fruteiras foram saqueadas. A fome e a sede se intensificaram. Os cadáveres jaziam embaixo das marquises.

Vieram os milagreiros. No salão paroquial se reuniram, sacerdotes, feiticeiros, bruxos, pais de santo, pastores, magos, benzedores, xamãs, pajés e curandeiros; eles, os oficiantes do sobrenatural, que juntaram suas forças e invocaram seus poderes. Nada conseguiram. Não foram ouvidas suas preces e promessas. Pela ineficácia, seus rituais milenares pareceram brincadeiras infantis. Porém, no lado de fora da porta, sozinha, com as mãos estendidas para o alto, uma senhora que tinha um brilho poderoso no olhar, clamou: “- vem Jesus! Vem Jesus! Vem Jesus!”

A escuridão desnorteou a população, que atônita apenas pensava em fugir. Andavam em círculos, perdidos. Tudo era uma sujeira só: as ruas, as roupas, as peles, as almas, o ar. Depois, já estavam conformados. De repente uma prostração tomou conta de todos, que sentaram e deitaram no chão esperando pelo fim. Não havia mais desespero nem sequer esperança no rosto de cada um. Simplesmente deixaram de ser as pessoas que eram. É quando se morre antes de morrer.

Mas a força das duas palavras três vezes repetidas, daquele pedido, ecoou irrecusável na imensidão das alturas. Então surgiu uma luz no céu, vinda de uma estrela que iluminou o caminho de um homem que chegou, puxando um burrico montado por uma mulher. Este homem trazia nos olhos a energia dominante, o vigor inesgotável de um Deus. Ele parou no meio do povo, fez um gesto com os braços que provocou indomável ventania que varreu para longe aquela poeira venenosa. Uma chuva torrencial, tal uma pancada passageira lavou a imundície que havia tomado conta do lugar.

Os doentes, os apáticos e os que haviam desistido se reergueram. As crianças pararam de chorar. As mães soluçavam emocionadas. Ele, com outro gesto de mãos fez curas e milagres e purificou as águas do rio que forneceu os peixes que saciou a fome e a sede daquele povo. De um pedaço de pão queimado que parecia um carvão, fez milhares de outros prontos para servirem de alimento. Os mortos acordaram da morte e agradecidos retomaram suas vidas, e junto com os demais beberam vinho do muito bom, que jorrava pelas torneiras.

Todos se curvaram diante daquele desconhecido. Tudo voltou ao ritmo anterior. Um habitante gritou, perguntando o seu nome. Ele que já estava se retirando com a mulher sobre o burrico, não respondeu. Apenas disse, voltando-se para ela: “ - vamos, Maria Madalena!”

A senhora, aquela que tinha um brilho poderoso no olhar, olhou em direção aos dois que se afastavam, abriu levemente os lábios, o suficiente para dizer baixinho: “ - obrigado, meu filho!”

sábado, 5 de abril de 2014

A CASTRAÇÃO

O fato aconteceu próximo a possessão dos Linhares, no Arroio do Divisa, região central da província, quando os gaúchos andavam armados com lanças, espadas, adagas, garruchas, boleadeiras, mosquetões e revólveres contrabandeados, e a vida humana era coisa sem valor.

As guerras andavam soltas, e a valentia era produto de ostentação. Toda família era dona de um defunto feito pelo ideal de uma causa, ou por um ato de covardia, ou por não aceitar um desaforo, ou por alguma vingança qualquer. Assim, também era comum na sala das casas das fazendas, o retrato na parede de um bravo e heróico parente para reverenciar. Época de numerosa população de viúvas e uma imensidade de crianças sem pai.

Diversão era tomar canha nos bolichos, puxar carta de baralho, tentar a sorte na volta e meia do jogo de osso, atar carreiras de improviso, farrear com as mulheres da vida e pelear por qualquer motivo. E os desafios eram resolvidos no aço branco, porque durava mais tempo o bailado, feito de idas e vindas, avanços e recuos, giros de corpo, estudo do oponente, gritos de agora te pego; cortes, lanhaços, pontaços, antes da sangria final.

Duelo com arma de fogo era luta sem prazer. Essa modalidade, que ficasse para os fracos, já que bastava um disparo e pronto, sem o necessário preparo do ofício do duelo, da arte que avança aos poucos, lentamente, golpe por golpe, rumo ao desfecho fatal. Até porque matar a bala com arma de fogo, com um tiro à distância, isso qualquer guri recém-saído dos cueiros era capaz. Homem valente, respeitador desses velhos ritos campeiros, matava ou morria no relampeio da lâmina do ferro branco, olho no olho, coração corcoveando, corpo molhado com o suor escorrendo pelos cotovelos, sentindo o cheiro do outro, tendo o dever de matar para não morrer.

Mas o boato já estava feito, até que chegou nos ouvidos do Juvenal Linhares, que a china Laurinda, a sua predileta, andava se deitando com um forasteiro de sobrenome Cardozo de tal, com forte sotaque da banda oriental. Que a Laurinda descia para uns matos próximos do casebre e que por lá aconteciam os desabonos.

Bem que o Juvenal vinha notando que ela já não prestava atenção nas visitas que fazia. Ficava cismado, trocando orelha, depois que ela passou a lhe servir mate com água fervendo. Mau sinal! Mau sinal, matutava o estancieiro.

E o rumor pegava força. Porque os boatos voam com o vento e se espalham aos quatro cantos feito peste. Sobem coxilhas, descem nas canhadas, caem para os varzedos, invadem os matagais, atravessam rios e açudes, vão até as nuvens, ficam mais sujos no banhadal, pegam estradas longas e viajam rumo ao inferno, se amasiam com os demônios e entram pelas janelas, portas e frestas dos ranchos e dos galpões e das casas dos pobres e dos ricos, se esfregam nas camas das prostitutas, entopem os ouvidos dos mexeriqueiros e tomam conta do mundo. E fazem um homem passar vergonha.

Certa feita, o Juvenal com meia dúzia de capangas, encontrou nas barrancas do arroio, o Cardozo, bem faceiro, gabola, cantando uma espécie de letra de milonga ou de um tango, com a alma e as carnes satisfeitas, recém-chegado dos lados da morada da Laurinda. Que um homem nessas horas, ri à toa e canta sem saber por quê.

Cercaram o estrangeiro, manearam o paisano do jeito que se ata um animal. Desmancharam as voltas do chiripá, e o Juvenal com a velha adaga companheira, cortou fora os bagos do castelhano, com talo e tudo. Depois, colocaram o vivente sobre o seu cavalo e ordenaram que se escapasse, que sumisse daquele rincão, daquele sol, daquela lua, daquele céu. Que se escondesse para lá do horizonte.

O Juvenal embrulhou num pedaço de pelego as honras do Aguirre e mandou um peão entregar para a Laurinda com a recomendação que ela se mudasse para bem longe, logo cedo no outro dia, do contrário ela também conheceria o poderio do ferro branco.

Logo que amanheceu, viram a china montada no zaino magro, ao lado de uma carroça que conduzia sua velha mãe, um casal de irmãos menores, mais uns escassos utensílios caseiros, na direção da fronteira com o Uruguai.

O Cardozo, encontraram logo mais adiante, caído ao lado do cavalo com a carneadeira enfiada no peito, na altura do coração.

Que um gaudério que aprecia uma chinoca não pode sofrer a desonra de pagar preço tão caro. Não pode se ver transformado repentinamente, de um esquentado touro femeeiro, em um miserável e inofensivo boi.

Mais um para virar comida de vermes, se os urubus e os cachorros-do-mato não raspassem tudo, até branquear os ossos.

sábado, 29 de março de 2014

SALIVA QUENTE

Este caso aconteceu numa fazenda lá no interior profundo do município de Margarida do Sul, na época que as mulheres não sabiam o que era orgasmo. Elas que se ocupavam apenas nas lidas da casa, dos filhos, dos maridos, do pátio, das costuras e dos bordados, da horta, das panelas, de vassouras e antigas renúncias. Para si quase nada restava. Elas que nunca sentiram na boca o gosto de um beijo molhado; seus lábios que viviam secos de amor; suas línguas que jamais se encontraram com outra; seus corpos que desconheciam um abraço carinhoso; seus ouvidos que não ouviam palavras doces de afeto. E não faz tanto tempo assim. Ainda ontem aquelas mulheres se anulavam submissas. Só emprestavam suas vidas para os outros usufruírem. Carregavam elas, todas as cruzes do mundo, e sexo servia apenas para reprodução. Prazer, era um bicho do outro mundo.

E se por descuido, uma daquelas esposas antigas deixasse escapar um gemido de satisfação durante o ato sexual, recebia como prêmio uma forte reprimenda do marido: que isso era coisa de mulher da vida. Que uma mãe de família que se desse ao respeito não podia sentir esses contentamentos mundanos. E se repetissem a exteriorização de estarem gostando da conjunção carnal, não raro, eram abandonadas, expulsas do matrimônio. Aqueles homens, de mulheres nada entendiam. Aquelas mulheres, pobres pássaros sem asas. Tempos difíceis, aqueles, lá em Margarida do Sul.

Ai de uma delas que se encostasse sedenta por amor no corpo do marido. Ai de uma delas que demonstrasse uma ponta de carência sexual. Ai de uma delas que implorasse para ele fazer com mais força e que não terminasse tão logo assim que começasse. Ai de uma delas que pedisse que ele lhe satisfizesse. Seria taxada de depravada e conheceria o desprezo social por ser uma mulher separada, largada pelo marido. Se por acaso uma delas sentisse suas entranhas ferver de excitação, teria que engolir sufocada aquela gloriosa e proibida manifestação que lhe vinha. Eram muito tristes as mulheres de Margarida da Sul.

Pois aconteceu da Quitéria ter cansado de fingir desinteresse quando se deitava com o Raimundo. Também já não mais se contentava em ter que se desapertar sozinha. Aquela energia de mulher fogosa precisava ser extravasada, do contrário enlouqueceria. Foi atrás de uma solução para acalmar sua natureza.

Tinha um rapazinho de todo bem formado, o Adalberto, que trabalhava na fazenda. Pegava firme na lida de campo. Bom laçador, campeiro e ginete nas horas vagas, e interessado por mulher.

Certo início de tarde, a Quitéria incendiada por tantos desejos guardados, deixando de lado a compostura, o recato e as aparências, deu um jeito de atrair o rapaz para perto de si. Dentro da cozinha esfregou a boca no rosto do Adalberto, lambeu o seu pescoço suado. Abraçou, agarrando-o pelos ombros e atirou seus lábios com violência sobre os dele. Baixou a mão direita e apertou as partes já em prontidão de macho, de um homem moço ainda não inaugurado nesses entreveros sexuais. Era tudo o que a Quitéria precisava. Repentinamente ela deu um salto, quase um pulo e tremeu com a coisa que sentiu. Como estavam sós em casa, foram para o quarto destinado aos hóspedes.

Ali ela gemeu, arranhou as costas e beijou desesperada, além da boca, todo o corpo do Adalberto, e gritou, e gemia e gritava e pedia mais e mais. Por fim, teve o seu primeiro orgasmo declarado, que terminou com um berro longo e profundo, que alertou quem andava ou descansava nas cercanias. Maldito grito de tanta fome acumulada.

Veio apressado o Floriano, capataz antigo e de confiança. O patrão, o Raimundo, estava na cidade acertando negócio de gado. Bateu na porta do quarto e a Quitéria baixou a saia assustada, e mandou com um gesto que o peão arrumasse as calças no lugar. Então, já em pé, fez cena de nervosa, expressão de assustada, e tal uma atriz incorporou ares de vítima. Abriu uma folha da porta, e num tiro de raciocínio, falou alto, esbaforida para o capataz: “ – fui desonrada. Entra e mata este tarado que me atacou furioso enquanto eu sesteava!”

O Floriano passou a mão no 38 e disparou cinco vezes na cabeça do Valdemar. Mais tarde, o defunto foi atirado numa cova rasa, aberta às pressas no lado de lá do campo, depois da cerca, no costado da estrada. Lugar de todos e ao mesmo tempo de ninguém.

O Raimundo retornou logo após o acontecido. O sangue do morto ainda escorria sobre o assoalho, o rosto da mulher ainda estava quente e corado. O patrão agradeceu o capataz pela atitude tomada e falou orgulhoso na frente da Quitéria: “ – família se faz é com mulher honesta, seu Floriano! O resto é tudo conversa fiada! Agora, enterrem o corpo deste desgraçado e voltem para o que estavam fazendo! “ – ordenou. Só a Quitéria não pode.

A seguir ela parou diante do quadro com sua fotografia de casamento. Colocou a mão em forma de concha entre as pernas por baixo da saia. Apertou forte como se estivesse se esmagando e sentiu seu sexo ainda molhado, que vivo continuava latejante. Cuspiu uma saliva quente que escorreu pelo vidro da moldura.

sábado, 15 de março de 2014

OS ALCES DO PIAUÍ

São de todas as idades, e andam em bandos os homens traídos. Que ser corno está na índole, na genética desse tipo de pessoa. É uma espécie de vocação. São tantos – uma multidão, que deveriam criar uma associação, ou um sindicato, ou um partido político, ou uma seita; no mínimo, uma confraria. Porém, não é tarefa das mais fáceis identificá-los exibindo suas fartas galhadas, quando estão desacompanhados, nas ruas, nos bares, nas igrejas, nos gabinetes. Solitários se camuflam muito bem. Mas quando estão acompanhados de suas respectivas traidoras, embora em silêncio, elas nos dizem tudo.

São eles, aqueles que não possuem tempo para as suas mulheres. Que apenas as exibem como um troféu, uma justificativa social. Os cornos apenas enxergam nas suas esposas, meras afirmações de suas virilidades, e nos filhos, um atestado de suas fertilidades. No mais, elas são mais uma de suas coisas materiais. Um brinquedo de carne e osso. Um cartãozinho de visita. Uma referência. Uma carta de apresentação.

Não demoram elas a perceberem essas desconsiderações. Logo, compreendem a armadilha. E partem discretas e silenciosas para a reação. Que mulher nem sempre protesta! Sorrateiras, adoecidas pela carência, buscam, não necessariamente uma vingança, mas a satisfação de suas necessidades carnais e afetivas. Precisam ser queridas, desejadas e amadas para se completarem como fêmeas, porque é pecado ser infeliz; aceitar como destino, que a vida se torne um episódio medíocre. E como quem procura sempre encontra o que deseja, então, outro corno a mais na praça.

E quando estão com os seus amigos, os traídos mentem; criam a ilusão de uma felicidade que não conhecem. Falam em amantes que não possuem, inventam aventuras amorosas que não aconteceram, gabam-se de performances sexuais que não são capazes. Enfim, vangloriam-se de conquistas e desempenhos fabulosos que jamais experimentaram.

Depois, essas mulheres que foram obrigadas a viver casos fora deste tipo de relação conjugal, reaparecem radiantes, sorrindo por tão secreta alegria. Melhoram suas peles que voltam a cintilar; os cabelos, antes secos e quebradiços, retornam com viço e sedosos; retorna em suas fisionomias a vivacidade que havia sumido. É como se uma lâmpada se acendesse em suas almas, atirando luz, brilho e vida através dos seus olhos, que antes estavam desfalecidos.

Quem já viu essa transformação acontecer com uma ou mais mulheres, presenciou o milagre do renascimento. Enquanto isso, os cornos continuam gabolas, falastrões e mentirosos, tentando enganar não apenas seus conhecidos, mas, principalmente a si próprios: tecendo lentamente, dia após dia, os fios das fibras que engrossam os chifres que enfeitam suas cabeças.

Dizem eles, que basta alguém subir na vida para ser alvo dessas acusações difamatórias nascidas da inveja. Assim, negam suas condições. Querem os cornos nos impressionar que eles nem existem. Que é tudo invenção, tal como os alces do Piauí.

DUAS LÁGRIMAS

Nada havia mudado na margem de cá do rio. Menos o Joca Linhares que estava cincoenta anos mais velho. Sentado na grande pedra moura deixou seus pensamentos correrem junto com a suave correnteza. Aquelas águas eram como se fossem os primeiros capítulos do livro da sua vida. Afinal, fora ali que plantara os melhores sonhos da sua existência. Naquele lugar tecera com fios de ouro os dias do seu futuro, quando era apenas um menino. Ali, ainda rapazinho, concretava seus ideais.

Bem antes de atingir a maioridade saiu da fazenda. Veio para a capital, depois para as principais cidades do mundo. Aprendeu a conhecer as pessoas e teve amores. Sorriu e chorou. Venceu e perdeu. Venceu e perdeu tantas vezes que retirou com as lições das perdas, a suficiente experiência para logo vencer outra vez. Agora, já além dos sessenta anos voltara para fechar o círculo: morrer onde havia nascido.

O dia estava quente e o céu azul. As árvores com seus vários tons de verde cobriam os dois lados do rio. As borboletas multicoloridas enfeitavam o ar. O silêncio só era quebrado pela cantoria das grandes aves e dos passarinhos. E os lambaris pulavam ágeis para fora d’água para apanhar algum inseto. Um martim pescador se atirou certeiro de um galho de Sarandi, para mergulhar e trazer vitorioso, atravessado no bico, um peixinho qualquer. As saracuras corriam ariscas pelo mato. As caturritas e os periquitos e os papagaios em bando gritavam numa algazarra enlouquecida. Os beija-flores zuniam suas asinhas atrás de uma flor. O João de barro, o mais livre dos construtores, firme no chão, batia as asas com energia e cantava forte o seu canto. A pedra moura era a mesma. A mesma da sua infância. Tudo estava igual, bem do jeito que o Joca Linhares havia deixado há cinco décadas passadas. A natureza ainda estava intocada. Aquele recanto preservado, lembrava um retalho do paraíso.

Ainda sentado na grande pedra moura se reduziu em pensamentos: quanto da vida havia retirado nesse meio século, que passou tão rápido como a duração de um fósforo aceso. Conforme ia pensando, fazia que sim com a cabeça, aprovando o que havia vivido. Lembrou de todos os amores, dos negócios, das viagens, das pessoas; dos amigos, das mulheres, dos prazeres. Também recordou das dores, das vitórias e das derrotas.

Caía a tarde. O sol já se escondia por trás de um majestoso Angico que se destacava na mata, quando, de repente, sentiu uma fisgada na alma, uma ponta de dor no coração, uma frustração, uma saudade. Um vazio azedo lhe estufou por dentro.

De que lhe adiantava, pensou, ter vivido o que viveu, ter conquistado o que conquistou, se com ele não mais estava o seu grande amor. Se a Ana Maria desaparecera para sempre, voando nos braços de uma aventura que apareceu. De que lhe adiantava estar ali, naquele lugar sagrado da sua infância, se todas as pessoas daquela época estavam longe ou já haviam morrido. Ali não havia mais ninguém. E na vida o que importa são as pessoas. A paisagem, embora bela, é apenas um complemento; nada além de um cenário para a vida acontecer.

O Joca Linhares olhou um canto do céu tomado por uma revoada de garças muito brancas, que começavam a retornar para pernoitarem no seu eterno dormitório, e perguntou para si mesmo: “ – o que faria uma dessas garças se não tivesse as outras ao seu lado? Sou uma garça solitária!!”

Sentado na beira da grande pedra moura, com os pés submersos revistou toda a sua trajetória, assim como quem assiste um filme. E concluiu: “ – agora, de nada me vale a vida sem a Ana Maria, e sem minha gente por perto!”

Baixou a cabeça que viu refletida no espelho d’água. Seus olhos se afogaram. Duas lágrimas salgaram o rio.



O POBRE POETA RICO

Já conhecia de ouvir falar no pobre poeta rico, Walter C.. Fiquei sabendo que ele queria me conhecer pessoalmente. Uma amiga tanto dele quanto minha tratou do encontro. Início de uma noite quente de verão estávamos no nosso bar de sempre quando ele chegou. 

Pedimos uísque e cerveja. Olhei aquele homem de aspecto comum, estatura mediana e muito magro. Loiro, cabelos despenteados, aparentando trinta e cinco anos. Rosto redondo, entristecido, pálido, com olheiras profundas de uma antiga e sofrida melancolia. E vi nele um guri mimado, um cachorrinho de madame com gestos educados e modos quase efeminados. De família abastada fora criado numa redoma de vidro, como se fosse uma criatura prestes a se desmanchar. Se formara em letras e se tornara poeta, por onde lhe escapava, não suas inquietações, ideais e fantasmas, mas apenas os aspectos de uma vida falsa, grosseiramente idealizada. Todos os seus poemas até então, eram vagos, artificiais, vazios de conteúdo humano. Fazia versos para pessoas que ainda não existiam. 

Pensei: “ - tenho que fazer este sujeito beber uísque, do contrário ele não vai falar.” No terceiro copo o Walter disse: “ - tudo que escrevo vem da teoria. Não tenho coragem de me abrir e falar das carências da minha alma. Não vivi uma só palavra do que já escrevi!” 

“ - Que pena! Ainda dá tempo!” Respondi. 

“ - Você, ao contrário, se mostra de peito aberto, cheio de experiências, de onde saem as histórias que escreves. Parece que viveste tudo aquilo! Grande parte dos teus contos são tão reais, que não podem ser apenas produto da imaginação!” Disse o Walter C. com uma certa admiração. 

“ - Invento muito também. Sou um grande mentiroso!” Falei. 

“ - Mas tem vida vivida nos teus textos!” 

“ - Claro!” Mandei de volta. 

“ - Queria tanto viver. Preciso participar da vida!” Falou o Walter com um jeito tão carente, frágil, com uma vozinha fina, chorosa, que deu pena de ouvir, já no quarto ou quinto uísque. 

Assim andou a conversa, quando perguntei o que ele gostaria de fazer naquela noite. O Walter C., poeta, nos disse que gostaria de ir num cabaré. Que apesar da idade, confessou envergonhado, baixando a cabeça, que ainda permanecia virgem. 

Pensei onde levar o rapaz. Ali perto havia uma casa com fama de regular para baixo, uma vez que as mulheres que lá trabalhavam já estavam um pouco desgastadas. 

Passei os olhos pelo salão entre aquelas putas em declínio, com bocas pintadas de um vermelho escandaloso, com as coxas de fora; que disfarçavam os defeitos com umas meias arrastão. Até que avistei uma com aparência acima da média, que ainda não havia se estragado por inteiro. Passaria por interessante se estivesse num lugar, desde que não fosse aquele. 

Fui até onde ela estava. Expliquei a situação e pedi que fosse o suficiente séria, já que o meu amigo, além de virgem era uma pessoa muito sensível. Ela disse que sim com a cabeça. Fiz as apresentações. 

Subiram para o quarto. Eu e a minha amiga ficamos bebendo cerveja, porque o uísque era terrivelmente falsificado. As mulheres do cabaré olhavam com inveja a minha acompanhante: moça bonita, delicada e culta, com dignidade no porte e no olhar. 

Mais tarde, aquela que estava com o Walter, desceu avisando, que o poeta mandou dizer que pousaria com ela. E que bebêssemos o quanto precisássemos e que poderíamos ir embora sem ele e que agradecia por tudo e que nossa despesa correria por sua conta. 

Penso que fiz bem em levar o Walter para aquela espelunca melhorada. O fato é que ele tirou a mulher daquela vida. Vive com ela há três anos, e quem olha, jura estar diante do casal mais feliz do mundo. Ela é sua guia nos segredos desta existência. 

Minha amiga sempre diz não entender como funciona esta vida. “ - Nem eu”, lhe respondo. Só sei que é imprevisível. Um mistério. Por vezes, é a vida, tão grotesca, tão selvagem, tão bruta, tão impossível, que dá até uma vergonha de viver. Outras vezes, a vida é tão doce, tão meiga, tão leve, tão suave, tão amável com seus filhos, que dá vontade de nunca morrer. 

E o poeta Walter C. agora só faz versos de amor. Devo dizer que se não são ótimos no geral, para péssimos é que não servem. Razoáveis é o que são, a maioria. Mas aqueles poemas seus que falam do imponderável desta vida, daqueles que dizem que existem tesouros enterrados no lixo, ah, esses são imperdíveis. 



A DISRITMIA

Normal, normal, isso a Edilaine nunca foi. Desde pequena procurava ficar afastada das pessoas, brincando com os dedos dos pés e falando sozinha. Seus pais, gente simples, diziam que ela tinha era disritmia cerebral, que nem sabiam o que aquilo significava. Ouviram certa vez alguém falar, acharam as palavras bonitas, e afirmavam com solenidade sempre que alguém mostrava um comportamento diferente: é disritmia.

A dona Firoca quando explicava o suposto problema da filha fazia pose de sabichona. Espichava o pescoço, arregalava os olhos, dilatava as narinas, levantava a cabeça, meio que enrugava os lábios e dizia com autoridade: “ - a Edilaine tem é disritmia cerebral!” E acrescentava com certa pompa: “ – só que essa que ela pegou é daquele tipo que só ataca no cérebro!” Falava e ficava encantada com o que havia dito. E o seu Lindor sentado ao seu lado, afirmava que sim, bem sério com a cabeça, demonstrando uma ponta de orgulho por a filha ser portadora de uma doença com nome tão bonito, tanto de pronunciar, como de ouvir. E não cansavam de repetir: disritmia! Disritmia! Ora, vejam só, a nossa filha com disritmia!

Moravam numa chacrinha, longe da cidade, e era muito bonita a Edilaine depois que cresceu. Mas sempre solitária; vivia sentada no chão com o queixo apoiado nos joelhos brincando com os dedos dos pés. Aliás, cada dedo tinha um nome e eram todos os seus únicos amiguinhos. E conversava durante os dias inteiros com eles.

Um dia discutiu feio com o dedão do pé direito, que ela chamava de Carlito, que era o seu confidente. Discutiu aos gritos, brigou; ficou transtornada com aquela desavença. Correu até o galpão, pegou um facão e cortou fora o Carlito, melhor, o dedão do pé direito. E assim, sucessivamente foi arrumando briga com todos os outros dedos, que se transformaram em inimigos ferozes após a morte do Carlito. Antes de decepá-los, xingava com palavrões aquele próximo que iria ser trucidado. E no fim da discussão dizia para a vítima: “ - te odeio! Por isso vai morrer!” Depois enrolava o dedinho morto num pedaço de pano, fazia velório com encomendação do corpo, melhor, do dedo, para a seguir realizar o enterro propriamente dito, com muito choro e gemidos da parte dela.

A Edilaine fez até um cemiteriozinho particular muito bonito de se ver. Cercou com pedras retiradas do rio um quadradinho de terra, plantou na volta flores colhidas no campo, e ali jaziam todos os seus antigos amiguinhos, melhor, seus dedinhos. Todos os dez. Do dedão ao minguinho de ambos os pés. Ficou solitária, sem amiguinhos para conversar.

Com o fim dos seus parceiros baixou sobre a Edilaine uma grande tristeza. Passou a andar chorosa, desencantada com a vida. Sentada no chão, olhava os pés sem dedos, e via-se desamparada sem ter com quem desabafar. Um dia chegou para a dona Firoca e disse: “ – mãe, posso ficar amiga dos teus dedinhos?”

A dona Firoca entrou assustada para dentro de casa, e contou para o seu Lindor: “ – ela agora vai cortar todos os dedos dos meus pés!”

O seu Lindor falou com muita convicção: “ Deixa! Afinal ninguém morre pela falta de uns dedinhos. O que conta é a felicidade da guria!”

Logo o cemiteriozinho ficou pequeno. Teve que aumentá-lo, para poder receber mais os dez dedinhos da dona Firoca.

Após sepultar o último dedo da mãe, a Edilaine chegou para o seu Lindor: “ – pai, posso ficar amiga dos teus dedinhos?”

“ – Claro, filha. São todos teus. Mas antes fica amiguinha dos dedinhos das tuas mãos!” Ela ficou.

Certa manhã chegou de visita um irmão do seu Lindor que lidava como peão numa fazenda da região. E ao ver aqueles aleijumes na Edilaine e na dona Firoca, perguntou: “ mas o que foi que aconteceu com os dedos dessas duas?”

O seu Lindor olhou sério para o irmão, tossiu forte para limpar um pigarro na garganta, se ajeitou no banco, organizou as letras na boca e disse, bem devagarinho, quase sem abrir os dentes, com cuidado para não tropeçar nas palavras: “ – disritmia, mano velho! Disritmia cerebral!” Fez uma pausa, trocou o ar dos pulmões e completou: “ – eta doencinha braba, esta! Ataca só o cérebro e depois nos dedos das pessoas. Mas fica tranquilo, que pelo jeito, este mal gosta mesmo é de mulher!”

DOMINGO

Verão. Jorge Luiz acordou cedo disposto a aproveitar o domingo. Uma namorada talvez. Ele estava alegre e o dia ensolarado. Tinha 39 anos. Vestiu uma camisa estampada, bermuda, chinelos, óculos e o chapéu panamá. Entrou no carro, botou a tocar o CD preferido, pegou a estrada e foi à praia.

Andou rápido os cincoenta quilômetros. Estacionou na avenida beira-mar e foi caminhar no calçadão. Muita moça bonita. Sentou ao lado do quiosque, pediu uma caipirinha. A brisa estava boa, o mar calmo, o sol cumpria seu dever. Olhava interessado as mulheres que não notaram sua presença.

Recém passava do meio dia, entrou num restaurante e pediu arroz, peixe e molho de camarão, e uma cerveja. Pagou, saiu e continuou a olhar as moças que não olhavam para ele.

Voltou ao quiosque, pediu outra caipirinha, só por pedir. Puxou conversa com uma mulher de meia-idade. Ela se levantou e foi embora.

Pegou o carro e foi até o shopping. Caminhou, olhou vitrines, comprou um sorvete na praça de alimentação. Elas passavam reto, e aquelas que estavam sentadas nem se deram conta que ele existia.

Saiu e foi passear no seu Camaro amarelo na avenida principal. Com o carro quem sabe tivesse mais sorte. Nada. Continuou invisível.

Estacionou na frente de um bar movimentado. Pediu uma cerveja e logo mais outra; olhou em volta. Gente só e acompanhada. Todos sorriam contentes com o dia bonito e comemoravam a vida. Menos o Jorge Luiz, que tinha agora uma expressão amarga no rosto. Ninguém percebeu que ele estava ali com seu carrão. Chamou o garçom que custou a lhe atender. Pagou o que devia e entrou no carro. Resolveu voltar para casa.

Passava pouco do meio da tarde. Antes de pegar a estrada, viu atravessando uma rua, uma menina, 13 anos, que empurrava um pequeno carrinho de picolé. Exagerada falta de sorte. Com sua estrela apagada, não era ela para estar ali naquele dia. Adoecera seu irmão, o titular daquele miserável comércio, que muito ajudava no sustento da casa.

O Jorge Luiz olhou firme, mordeu o lábio inferior e decidiu. Acelerou com força. O carro cantou os pneus, com a dianteira empinada atirou fumaça e poeira no ar. A menina estava no meio da pista. Ele precisava acertar os dois: a menina e o carrinho. Um estrondo e um grito infantil que ninguém ouviu. Pegou em cheio.

Ficou para trás a menina morta com o sangue se misturando no corante dos picolés de framboesa, uva e morango que se derretiam no asfalto que fervia de tão quente.

Chegou em casa, tomou um banho, abriu uma cerveja, sentou esparramado no sofá, ligou a televisão, e ficou sorrindo com um ar de satisfação. Que não tinha sido de todo ruim, o domingo. Depois dormiu e sonhou com o sol, com as areias brancas e as verdes ondas do mar.

O ENCONTRO

A Leonor traz manchas roxas, que desde menina ela mesma produziu no seu corpo. Escondia da família, os vestígios nos braços e coxas, dos beliscões e fundas mordidas que em si própria desferia.

Depois, quase moça, mutilava-se com mais requinte. Usava pontas de tesoura, agulhas, alfinetes e alicates de unha para perfurar suas carnes. Convivia com cicatrizes ocultas, antigas e recentes, secas ou sangrentas, encobertas sob blusas de mangas longas e calças compridas. Forte do verão, lá estava a Leonor vestida com roupas inadequadas para a estação.

Mais tarde descobriu que só teria prazer, se as relações sexuais fossem acompanhadas de rituais que lhe causassem sofrimento físico. Obrigava seus parceiros a lhe aplicarem fortes tapas no rosto; que fosse estrangulada até o último limite suportável; que derramassem cera de vela quente sobre sua pele; que queimassem com pontas de cigarro os bicos dos seus mamilos e lhe aplicassem surras com relhos específicos para este fim, que ela portava consigo, junto com outros equipamentos propícios ao flagelo que precisava submeter-se.

As palavras fortes ou doces, os toques carinhosos, as preliminares convencionais, e a própria conjunção carnal; esses procedimentos não interessavam. O que contava era a obrigação de ter que tornar-se vítima de humilhação e padecimentos corporais. Em casa era capaz de acender a chama do fogão e deixar a palma da mão exposta ao fogo até o máximo que pudesse resistir.

E era bonita a Leonor. Mulher de pele macia, cheirosa por onde se passasse o nariz. Atraia com facilidade o macharedo, que deles queria apenas uma sessão daquela forma estranha de satisfação. Após, dispensava o parceiro para nunca mais querer vê-lo por perto. Enjoava do escolhido, do qual só exigia tornar-se escrava pelo tempo do encontro.

Dessa forma, já com trinta anos continuava solteirona, nada de relacionamentos fixos. Também, não existia homem que suportasse por longo tempo aquela tara, ou fosse lá o que fosse aquilo.

Trabalhava a Leonor, como vendedora de cosméticos, perfumes, roupas íntimas, acessórios eróticos, pomadas e comprimidos milagrosos – utensílios sensuais –, como apregoava, nos escritórios e empresas comercias. Artigos oferecidos para homens somente, tudo feito dentro do maior sigilo e discrição.

Certa tarde, final de expediente, estava demonstrando seus produtos para o prefeito da cidade, em seu gabinete. Só os dois na sala. De repente ouvem estalos que se transformaram em faíscas. Explode uma lâmpada, e cai por acidente, uma placa de gesso do forro do teto sobre a cabeça da Leonor.

Bateu de quina, cortou e sangrou um sangue que fez fio grosso na testa que desceu rosto abaixo. O impacto derrubou-a da cadeira sobre o carpete. O prefeito foi até ela e se ajoelhou diante da mulher estirada no chão. A Leonor retorceu as pernas e comprimiu uma coxa na outra, balançou os pés, espichou o pescoço, apertou um seio com a mão esquerda e com a direita esfregou o seu sexo que latejava. Respirou fundo e gemeu um gemido gostoso de se ouvir, lambeu a boca e mordeu os lábios e a língua com fúria e desejo. E gritou a plenos pulmões palavras obscenas, aquelas que algumas mulheres, nesses momentos, não conseguem evitar. Depois se acalmou, fechou os olhos, relaxou o corpo, estendeu os braços junto ao chão e desenhou no rosto um sorriso de satisfação, de pura realização.

Extasiado, o prefeito perguntou: “ – estás bem?”

“ – Só com dor é que bom!” Respondeu.

Ele encostou o rosto no dela, levantou um pouco o queixo e lambeu todo o sangue que escorria. Bebeu o líquido com emoção radiosa nos olhos. Se ajeitou em pose de macho sobre a fêmea e disse feliz, com a boca lambuzada no seu ouvido: “ – pensei que não existisse neste mundo, a mulher que eu tanto precisava!”

sábado, 8 de março de 2014

GINETEANDO JACARÉ

O fato aconteceu na região da fronteira; no Bororé, na época, segundo distrito de Itaqui. Por lá vivia o Ciro Tertuliano da Costa, gaudério criado na lida de campo, exímio domador de mula. Não havia potro xucro que não se amansasse debaixo do seu comando. Guasca destemido, valente uma barbaridade, que em dia de marcação se botava a agarrar touro à unha só para mostrar toda sua qualidade. Índio acostumado com cheiro do suor de sovaco de china e respeitado no manejo do ferro branco. Bom de copo que só não engolia desaforo; dava um olho por um entrevero. Por conta da grande habilidade com a adaga, por desavenças nos puteiros, já havia despachado dois ou três para o mundo dos defuntos; que nesses duelos sempre vence o melhor ou o menos embriagado.

Pois sucedeu que no meio de uma tarde de domingo do mês de maio, flor de primavera, voltava o Ciro do bolicho do Pedro Gringo, onde rolava carteado de truco e jogo de tava. Foi quando avistou no capinzal, na beira do açude, um jacaré, que dormia embaixo do sol. Era um bicho com coisa de dois metros de comprimento, daqueles bem nutridos de-papo-amarelo. Já meio levantado pelo efeito de quase uma garrafa de ‘3 fazendas’, velha cachaça companheira, pilchado de bota, espora e bombacha e camisa arremangada nas juntas dos cotovelos e o inseparável lenço chimango, olhou mais de perto o animal e não pensou duas vezes.

Apeou do Zaino, foi se chegando macio por trás de umas moitas de alecrim e de umas macegas de carqueja e saltou, caindo sentado sobre o lombo do jacaré. De pronto, com a mão direita que era uma garra poderosa segurou forte na goela do animal, que assustado se mandou para dentro d’água. Se chacoalhava atirando o corpo para os lados, se retorcia com agilidade e vigor. E o Ciro acavalado, com o chapéu quebrado na testa continuava firme com as pernas se fechando em arco; as esporas tramadas uma na outra por baixo da barriga de escamas brancas do jacaré. O bicho feito uma fera se foi para a parte mais funda do açude, fazendo de tudo para se livrar daquele peso. Mergulhava e permanecia uma eternidade lá por baixo, voltava à tona quando o Ciro respirava. De volta na superfície fazia giros completos com o corpo, verdadeiras acrobacias áreas. Dava violentos laçaços com o rabo, sacudia desesperado com a cabeça, abria a bocarra enfurecido, mostrando a ameaçadora dentadura assassina. E o Ciro gineteando com maestria, gritando para o jacaré continuar com aqueles bruscos movimentos. Continuava com as pernas trançadas em volta e a mão direita ainda bem presa onde devia ser a garganta do animal. O Zaino relinchava impaciente, o cusco latia nervoso nadando ali por perto, o gado mais arisco se mandou a campo fora, os quero-queros revoavam em bando numa gritaria desenfreada. Quem tinha pata disparava, quem tinha asa voava. Deu uma desordem no lugar. Uma tremenda confusão, daquelas, que igual nunca se teve notícia.

O tal do jacaré corcoveava com valentia; caborteiro, velhacava por demais, pior que cavalo aporreado. Quando voltava do fundo das águas parecia que ia voar. Se sacudia com toda a energia da sua musculatura, para em seguida mergulhar outra vez. O Ciro já sem chapéu estava cada vez mais decidido a não perder aquela luta. Não era homem com o feitio de comprar briga para perder.

Já durava mais de meia hora aquela peleia. Por fim, o jacaré foi esmorecendo, perdendo as forças, se entregando, se entregando. A cauda ficou estendida, sem movimento. A bocarra não mais mostrava perigo. Finalmente, cansado, veio para a superfície. Se entregou ao domínio do seu domador.

O Ciro também exausto, retirou a guaiaca da cintura, passou ao redor do pescoço do bicho e arrastou aquele corpo sem reação até uma das pontas da taipa do açude. Sentou ao lado do jacaré que respirava ofegante, recuperando as energias perdidas. Depois abriu os olhos e não tentou escapar. Ficou imóvel ao lado do homem que lhe dominou, bem assim como fica um cão junto ao seu dono, ou uma mulher apaixonada.

Quando refeito, o Ciro levantou da grama e gritou: “ – vem, bicho!” E o bicho veio. Percorreram lado a lado, com o Zaino e o cusco com cruza de ovelheiro que vinham atrás no passito, até a outra extremidade da taipa do açude. Então subiram um pequeno cerro e chegaram no rancho. E gostou de ver, o jacaré, uma pequena lagoa no lado da moradia que escolheu para fazer residência.

Pois não é que o animal deu para conviver ali pelo terreiro, misturado com as galinhas, patos, gansos e marrecos, cachorros e gatos, mais dois cordeiros guachos, um graxaim, um urubu e um zorrilho de estimação. Era o “Bicho”, que era como o jacaré atendia, o melhor amigo do Ciro. Nas andanças pelos arredores da habitação, lá estava o animal, acompanhando atento aos passos do seu dono; e além do mais, cuidava de toda a criação. E ai de que um estranho tentasse se achegar. Bastava mostrar os dentes, sacudir o rabo e pronto, estava desfeita a aproximação. Até que um dia, o bicho morreu de velho. Foi a primeira e última vez que o Ciro chorou naquela vida feita só para os homens construídos com corpo de ferro e recheados com alma de aço.

E o Ciro sempre diz, agora já veterano: “ – difícil mesmo de domar é o danado do bicho homem. Raça muito dura dos queixos. No mais, não há fera que não se entregue!”

Então, senta num cepo na sombra de um cinamomo no oitão do rancho, enrola um palheiro, aprecia um bando de marrecas piadeiras, e outro de colhereiros e outro de maçaricos que revoam rumo ao açude, e completa orgulhoso, com um sorriso de boca inteira: ” – que tudo que é vivo, a gente doma nesta vida; inclusive china de zona.” E dá um grito em direção à cozinha: “ – mas quanta embromação, mulher! É pra hoje ou pra amanhã este chimarrão?!”