sábado, 29 de março de 2014

SALIVA QUENTE

Este caso aconteceu numa fazenda lá no interior profundo do município de Margarida do Sul, na época que as mulheres não sabiam o que era orgasmo. Elas que se ocupavam apenas nas lidas da casa, dos filhos, dos maridos, do pátio, das costuras e dos bordados, da horta, das panelas, de vassouras e antigas renúncias. Para si quase nada restava. Elas que nunca sentiram na boca o gosto de um beijo molhado; seus lábios que viviam secos de amor; suas línguas que jamais se encontraram com outra; seus corpos que desconheciam um abraço carinhoso; seus ouvidos que não ouviam palavras doces de afeto. E não faz tanto tempo assim. Ainda ontem aquelas mulheres se anulavam submissas. Só emprestavam suas vidas para os outros usufruírem. Carregavam elas, todas as cruzes do mundo, e sexo servia apenas para reprodução. Prazer, era um bicho do outro mundo.

E se por descuido, uma daquelas esposas antigas deixasse escapar um gemido de satisfação durante o ato sexual, recebia como prêmio uma forte reprimenda do marido: que isso era coisa de mulher da vida. Que uma mãe de família que se desse ao respeito não podia sentir esses contentamentos mundanos. E se repetissem a exteriorização de estarem gostando da conjunção carnal, não raro, eram abandonadas, expulsas do matrimônio. Aqueles homens, de mulheres nada entendiam. Aquelas mulheres, pobres pássaros sem asas. Tempos difíceis, aqueles, lá em Margarida do Sul.

Ai de uma delas que se encostasse sedenta por amor no corpo do marido. Ai de uma delas que demonstrasse uma ponta de carência sexual. Ai de uma delas que implorasse para ele fazer com mais força e que não terminasse tão logo assim que começasse. Ai de uma delas que pedisse que ele lhe satisfizesse. Seria taxada de depravada e conheceria o desprezo social por ser uma mulher separada, largada pelo marido. Se por acaso uma delas sentisse suas entranhas ferver de excitação, teria que engolir sufocada aquela gloriosa e proibida manifestação que lhe vinha. Eram muito tristes as mulheres de Margarida da Sul.

Pois aconteceu da Quitéria ter cansado de fingir desinteresse quando se deitava com o Raimundo. Também já não mais se contentava em ter que se desapertar sozinha. Aquela energia de mulher fogosa precisava ser extravasada, do contrário enlouqueceria. Foi atrás de uma solução para acalmar sua natureza.

Tinha um rapazinho de todo bem formado, o Adalberto, que trabalhava na fazenda. Pegava firme na lida de campo. Bom laçador, campeiro e ginete nas horas vagas, e interessado por mulher.

Certo início de tarde, a Quitéria incendiada por tantos desejos guardados, deixando de lado a compostura, o recato e as aparências, deu um jeito de atrair o rapaz para perto de si. Dentro da cozinha esfregou a boca no rosto do Adalberto, lambeu o seu pescoço suado. Abraçou, agarrando-o pelos ombros e atirou seus lábios com violência sobre os dele. Baixou a mão direita e apertou as partes já em prontidão de macho, de um homem moço ainda não inaugurado nesses entreveros sexuais. Era tudo o que a Quitéria precisava. Repentinamente ela deu um salto, quase um pulo e tremeu com a coisa que sentiu. Como estavam sós em casa, foram para o quarto destinado aos hóspedes.

Ali ela gemeu, arranhou as costas e beijou desesperada, além da boca, todo o corpo do Adalberto, e gritou, e gemia e gritava e pedia mais e mais. Por fim, teve o seu primeiro orgasmo declarado, que terminou com um berro longo e profundo, que alertou quem andava ou descansava nas cercanias. Maldito grito de tanta fome acumulada.

Veio apressado o Floriano, capataz antigo e de confiança. O patrão, o Raimundo, estava na cidade acertando negócio de gado. Bateu na porta do quarto e a Quitéria baixou a saia assustada, e mandou com um gesto que o peão arrumasse as calças no lugar. Então, já em pé, fez cena de nervosa, expressão de assustada, e tal uma atriz incorporou ares de vítima. Abriu uma folha da porta, e num tiro de raciocínio, falou alto, esbaforida para o capataz: “ – fui desonrada. Entra e mata este tarado que me atacou furioso enquanto eu sesteava!”

O Floriano passou a mão no 38 e disparou cinco vezes na cabeça do Valdemar. Mais tarde, o defunto foi atirado numa cova rasa, aberta às pressas no lado de lá do campo, depois da cerca, no costado da estrada. Lugar de todos e ao mesmo tempo de ninguém.

O Raimundo retornou logo após o acontecido. O sangue do morto ainda escorria sobre o assoalho, o rosto da mulher ainda estava quente e corado. O patrão agradeceu o capataz pela atitude tomada e falou orgulhoso na frente da Quitéria: “ – família se faz é com mulher honesta, seu Floriano! O resto é tudo conversa fiada! Agora, enterrem o corpo deste desgraçado e voltem para o que estavam fazendo! “ – ordenou. Só a Quitéria não pode.

A seguir ela parou diante do quadro com sua fotografia de casamento. Colocou a mão em forma de concha entre as pernas por baixo da saia. Apertou forte como se estivesse se esmagando e sentiu seu sexo ainda molhado, que vivo continuava latejante. Cuspiu uma saliva quente que escorreu pelo vidro da moldura.

sábado, 15 de março de 2014

OS ALCES DO PIAUÍ

São de todas as idades, e andam em bandos os homens traídos. Que ser corno está na índole, na genética desse tipo de pessoa. É uma espécie de vocação. São tantos – uma multidão, que deveriam criar uma associação, ou um sindicato, ou um partido político, ou uma seita; no mínimo, uma confraria. Porém, não é tarefa das mais fáceis identificá-los exibindo suas fartas galhadas, quando estão desacompanhados, nas ruas, nos bares, nas igrejas, nos gabinetes. Solitários se camuflam muito bem. Mas quando estão acompanhados de suas respectivas traidoras, embora em silêncio, elas nos dizem tudo.

São eles, aqueles que não possuem tempo para as suas mulheres. Que apenas as exibem como um troféu, uma justificativa social. Os cornos apenas enxergam nas suas esposas, meras afirmações de suas virilidades, e nos filhos, um atestado de suas fertilidades. No mais, elas são mais uma de suas coisas materiais. Um brinquedo de carne e osso. Um cartãozinho de visita. Uma referência. Uma carta de apresentação.

Não demoram elas a perceberem essas desconsiderações. Logo, compreendem a armadilha. E partem discretas e silenciosas para a reação. Que mulher nem sempre protesta! Sorrateiras, adoecidas pela carência, buscam, não necessariamente uma vingança, mas a satisfação de suas necessidades carnais e afetivas. Precisam ser queridas, desejadas e amadas para se completarem como fêmeas, porque é pecado ser infeliz; aceitar como destino, que a vida se torne um episódio medíocre. E como quem procura sempre encontra o que deseja, então, outro corno a mais na praça.

E quando estão com os seus amigos, os traídos mentem; criam a ilusão de uma felicidade que não conhecem. Falam em amantes que não possuem, inventam aventuras amorosas que não aconteceram, gabam-se de performances sexuais que não são capazes. Enfim, vangloriam-se de conquistas e desempenhos fabulosos que jamais experimentaram.

Depois, essas mulheres que foram obrigadas a viver casos fora deste tipo de relação conjugal, reaparecem radiantes, sorrindo por tão secreta alegria. Melhoram suas peles que voltam a cintilar; os cabelos, antes secos e quebradiços, retornam com viço e sedosos; retorna em suas fisionomias a vivacidade que havia sumido. É como se uma lâmpada se acendesse em suas almas, atirando luz, brilho e vida através dos seus olhos, que antes estavam desfalecidos.

Quem já viu essa transformação acontecer com uma ou mais mulheres, presenciou o milagre do renascimento. Enquanto isso, os cornos continuam gabolas, falastrões e mentirosos, tentando enganar não apenas seus conhecidos, mas, principalmente a si próprios: tecendo lentamente, dia após dia, os fios das fibras que engrossam os chifres que enfeitam suas cabeças.

Dizem eles, que basta alguém subir na vida para ser alvo dessas acusações difamatórias nascidas da inveja. Assim, negam suas condições. Querem os cornos nos impressionar que eles nem existem. Que é tudo invenção, tal como os alces do Piauí.

DUAS LÁGRIMAS

Nada havia mudado na margem de cá do rio. Menos o Joca Linhares que estava cincoenta anos mais velho. Sentado na grande pedra moura deixou seus pensamentos correrem junto com a suave correnteza. Aquelas águas eram como se fossem os primeiros capítulos do livro da sua vida. Afinal, fora ali que plantara os melhores sonhos da sua existência. Naquele lugar tecera com fios de ouro os dias do seu futuro, quando era apenas um menino. Ali, ainda rapazinho, concretava seus ideais.

Bem antes de atingir a maioridade saiu da fazenda. Veio para a capital, depois para as principais cidades do mundo. Aprendeu a conhecer as pessoas e teve amores. Sorriu e chorou. Venceu e perdeu. Venceu e perdeu tantas vezes que retirou com as lições das perdas, a suficiente experiência para logo vencer outra vez. Agora, já além dos sessenta anos voltara para fechar o círculo: morrer onde havia nascido.

O dia estava quente e o céu azul. As árvores com seus vários tons de verde cobriam os dois lados do rio. As borboletas multicoloridas enfeitavam o ar. O silêncio só era quebrado pela cantoria das grandes aves e dos passarinhos. E os lambaris pulavam ágeis para fora d’água para apanhar algum inseto. Um martim pescador se atirou certeiro de um galho de Sarandi, para mergulhar e trazer vitorioso, atravessado no bico, um peixinho qualquer. As saracuras corriam ariscas pelo mato. As caturritas e os periquitos e os papagaios em bando gritavam numa algazarra enlouquecida. Os beija-flores zuniam suas asinhas atrás de uma flor. O João de barro, o mais livre dos construtores, firme no chão, batia as asas com energia e cantava forte o seu canto. A pedra moura era a mesma. A mesma da sua infância. Tudo estava igual, bem do jeito que o Joca Linhares havia deixado há cinco décadas passadas. A natureza ainda estava intocada. Aquele recanto preservado, lembrava um retalho do paraíso.

Ainda sentado na grande pedra moura se reduziu em pensamentos: quanto da vida havia retirado nesse meio século, que passou tão rápido como a duração de um fósforo aceso. Conforme ia pensando, fazia que sim com a cabeça, aprovando o que havia vivido. Lembrou de todos os amores, dos negócios, das viagens, das pessoas; dos amigos, das mulheres, dos prazeres. Também recordou das dores, das vitórias e das derrotas.

Caía a tarde. O sol já se escondia por trás de um majestoso Angico que se destacava na mata, quando, de repente, sentiu uma fisgada na alma, uma ponta de dor no coração, uma frustração, uma saudade. Um vazio azedo lhe estufou por dentro.

De que lhe adiantava, pensou, ter vivido o que viveu, ter conquistado o que conquistou, se com ele não mais estava o seu grande amor. Se a Ana Maria desaparecera para sempre, voando nos braços de uma aventura que apareceu. De que lhe adiantava estar ali, naquele lugar sagrado da sua infância, se todas as pessoas daquela época estavam longe ou já haviam morrido. Ali não havia mais ninguém. E na vida o que importa são as pessoas. A paisagem, embora bela, é apenas um complemento; nada além de um cenário para a vida acontecer.

O Joca Linhares olhou um canto do céu tomado por uma revoada de garças muito brancas, que começavam a retornar para pernoitarem no seu eterno dormitório, e perguntou para si mesmo: “ – o que faria uma dessas garças se não tivesse as outras ao seu lado? Sou uma garça solitária!!”

Sentado na beira da grande pedra moura, com os pés submersos revistou toda a sua trajetória, assim como quem assiste um filme. E concluiu: “ – agora, de nada me vale a vida sem a Ana Maria, e sem minha gente por perto!”

Baixou a cabeça que viu refletida no espelho d’água. Seus olhos se afogaram. Duas lágrimas salgaram o rio.



O POBRE POETA RICO

Já conhecia de ouvir falar no pobre poeta rico, Walter C.. Fiquei sabendo que ele queria me conhecer pessoalmente. Uma amiga tanto dele quanto minha tratou do encontro. Início de uma noite quente de verão estávamos no nosso bar de sempre quando ele chegou. 

Pedimos uísque e cerveja. Olhei aquele homem de aspecto comum, estatura mediana e muito magro. Loiro, cabelos despenteados, aparentando trinta e cinco anos. Rosto redondo, entristecido, pálido, com olheiras profundas de uma antiga e sofrida melancolia. E vi nele um guri mimado, um cachorrinho de madame com gestos educados e modos quase efeminados. De família abastada fora criado numa redoma de vidro, como se fosse uma criatura prestes a se desmanchar. Se formara em letras e se tornara poeta, por onde lhe escapava, não suas inquietações, ideais e fantasmas, mas apenas os aspectos de uma vida falsa, grosseiramente idealizada. Todos os seus poemas até então, eram vagos, artificiais, vazios de conteúdo humano. Fazia versos para pessoas que ainda não existiam. 

Pensei: “ - tenho que fazer este sujeito beber uísque, do contrário ele não vai falar.” No terceiro copo o Walter disse: “ - tudo que escrevo vem da teoria. Não tenho coragem de me abrir e falar das carências da minha alma. Não vivi uma só palavra do que já escrevi!” 

“ - Que pena! Ainda dá tempo!” Respondi. 

“ - Você, ao contrário, se mostra de peito aberto, cheio de experiências, de onde saem as histórias que escreves. Parece que viveste tudo aquilo! Grande parte dos teus contos são tão reais, que não podem ser apenas produto da imaginação!” Disse o Walter C. com uma certa admiração. 

“ - Invento muito também. Sou um grande mentiroso!” Falei. 

“ - Mas tem vida vivida nos teus textos!” 

“ - Claro!” Mandei de volta. 

“ - Queria tanto viver. Preciso participar da vida!” Falou o Walter com um jeito tão carente, frágil, com uma vozinha fina, chorosa, que deu pena de ouvir, já no quarto ou quinto uísque. 

Assim andou a conversa, quando perguntei o que ele gostaria de fazer naquela noite. O Walter C., poeta, nos disse que gostaria de ir num cabaré. Que apesar da idade, confessou envergonhado, baixando a cabeça, que ainda permanecia virgem. 

Pensei onde levar o rapaz. Ali perto havia uma casa com fama de regular para baixo, uma vez que as mulheres que lá trabalhavam já estavam um pouco desgastadas. 

Passei os olhos pelo salão entre aquelas putas em declínio, com bocas pintadas de um vermelho escandaloso, com as coxas de fora; que disfarçavam os defeitos com umas meias arrastão. Até que avistei uma com aparência acima da média, que ainda não havia se estragado por inteiro. Passaria por interessante se estivesse num lugar, desde que não fosse aquele. 

Fui até onde ela estava. Expliquei a situação e pedi que fosse o suficiente séria, já que o meu amigo, além de virgem era uma pessoa muito sensível. Ela disse que sim com a cabeça. Fiz as apresentações. 

Subiram para o quarto. Eu e a minha amiga ficamos bebendo cerveja, porque o uísque era terrivelmente falsificado. As mulheres do cabaré olhavam com inveja a minha acompanhante: moça bonita, delicada e culta, com dignidade no porte e no olhar. 

Mais tarde, aquela que estava com o Walter, desceu avisando, que o poeta mandou dizer que pousaria com ela. E que bebêssemos o quanto precisássemos e que poderíamos ir embora sem ele e que agradecia por tudo e que nossa despesa correria por sua conta. 

Penso que fiz bem em levar o Walter para aquela espelunca melhorada. O fato é que ele tirou a mulher daquela vida. Vive com ela há três anos, e quem olha, jura estar diante do casal mais feliz do mundo. Ela é sua guia nos segredos desta existência. 

Minha amiga sempre diz não entender como funciona esta vida. “ - Nem eu”, lhe respondo. Só sei que é imprevisível. Um mistério. Por vezes, é a vida, tão grotesca, tão selvagem, tão bruta, tão impossível, que dá até uma vergonha de viver. Outras vezes, a vida é tão doce, tão meiga, tão leve, tão suave, tão amável com seus filhos, que dá vontade de nunca morrer. 

E o poeta Walter C. agora só faz versos de amor. Devo dizer que se não são ótimos no geral, para péssimos é que não servem. Razoáveis é o que são, a maioria. Mas aqueles poemas seus que falam do imponderável desta vida, daqueles que dizem que existem tesouros enterrados no lixo, ah, esses são imperdíveis. 



A DISRITMIA

Normal, normal, isso a Edilaine nunca foi. Desde pequena procurava ficar afastada das pessoas, brincando com os dedos dos pés e falando sozinha. Seus pais, gente simples, diziam que ela tinha era disritmia cerebral, que nem sabiam o que aquilo significava. Ouviram certa vez alguém falar, acharam as palavras bonitas, e afirmavam com solenidade sempre que alguém mostrava um comportamento diferente: é disritmia.

A dona Firoca quando explicava o suposto problema da filha fazia pose de sabichona. Espichava o pescoço, arregalava os olhos, dilatava as narinas, levantava a cabeça, meio que enrugava os lábios e dizia com autoridade: “ - a Edilaine tem é disritmia cerebral!” E acrescentava com certa pompa: “ – só que essa que ela pegou é daquele tipo que só ataca no cérebro!” Falava e ficava encantada com o que havia dito. E o seu Lindor sentado ao seu lado, afirmava que sim, bem sério com a cabeça, demonstrando uma ponta de orgulho por a filha ser portadora de uma doença com nome tão bonito, tanto de pronunciar, como de ouvir. E não cansavam de repetir: disritmia! Disritmia! Ora, vejam só, a nossa filha com disritmia!

Moravam numa chacrinha, longe da cidade, e era muito bonita a Edilaine depois que cresceu. Mas sempre solitária; vivia sentada no chão com o queixo apoiado nos joelhos brincando com os dedos dos pés. Aliás, cada dedo tinha um nome e eram todos os seus únicos amiguinhos. E conversava durante os dias inteiros com eles.

Um dia discutiu feio com o dedão do pé direito, que ela chamava de Carlito, que era o seu confidente. Discutiu aos gritos, brigou; ficou transtornada com aquela desavença. Correu até o galpão, pegou um facão e cortou fora o Carlito, melhor, o dedão do pé direito. E assim, sucessivamente foi arrumando briga com todos os outros dedos, que se transformaram em inimigos ferozes após a morte do Carlito. Antes de decepá-los, xingava com palavrões aquele próximo que iria ser trucidado. E no fim da discussão dizia para a vítima: “ - te odeio! Por isso vai morrer!” Depois enrolava o dedinho morto num pedaço de pano, fazia velório com encomendação do corpo, melhor, do dedo, para a seguir realizar o enterro propriamente dito, com muito choro e gemidos da parte dela.

A Edilaine fez até um cemiteriozinho particular muito bonito de se ver. Cercou com pedras retiradas do rio um quadradinho de terra, plantou na volta flores colhidas no campo, e ali jaziam todos os seus antigos amiguinhos, melhor, seus dedinhos. Todos os dez. Do dedão ao minguinho de ambos os pés. Ficou solitária, sem amiguinhos para conversar.

Com o fim dos seus parceiros baixou sobre a Edilaine uma grande tristeza. Passou a andar chorosa, desencantada com a vida. Sentada no chão, olhava os pés sem dedos, e via-se desamparada sem ter com quem desabafar. Um dia chegou para a dona Firoca e disse: “ – mãe, posso ficar amiga dos teus dedinhos?”

A dona Firoca entrou assustada para dentro de casa, e contou para o seu Lindor: “ – ela agora vai cortar todos os dedos dos meus pés!”

O seu Lindor falou com muita convicção: “ Deixa! Afinal ninguém morre pela falta de uns dedinhos. O que conta é a felicidade da guria!”

Logo o cemiteriozinho ficou pequeno. Teve que aumentá-lo, para poder receber mais os dez dedinhos da dona Firoca.

Após sepultar o último dedo da mãe, a Edilaine chegou para o seu Lindor: “ – pai, posso ficar amiga dos teus dedinhos?”

“ – Claro, filha. São todos teus. Mas antes fica amiguinha dos dedinhos das tuas mãos!” Ela ficou.

Certa manhã chegou de visita um irmão do seu Lindor que lidava como peão numa fazenda da região. E ao ver aqueles aleijumes na Edilaine e na dona Firoca, perguntou: “ mas o que foi que aconteceu com os dedos dessas duas?”

O seu Lindor olhou sério para o irmão, tossiu forte para limpar um pigarro na garganta, se ajeitou no banco, organizou as letras na boca e disse, bem devagarinho, quase sem abrir os dentes, com cuidado para não tropeçar nas palavras: “ – disritmia, mano velho! Disritmia cerebral!” Fez uma pausa, trocou o ar dos pulmões e completou: “ – eta doencinha braba, esta! Ataca só o cérebro e depois nos dedos das pessoas. Mas fica tranquilo, que pelo jeito, este mal gosta mesmo é de mulher!”

DOMINGO

Verão. Jorge Luiz acordou cedo disposto a aproveitar o domingo. Uma namorada talvez. Ele estava alegre e o dia ensolarado. Tinha 39 anos. Vestiu uma camisa estampada, bermuda, chinelos, óculos e o chapéu panamá. Entrou no carro, botou a tocar o CD preferido, pegou a estrada e foi à praia.

Andou rápido os cincoenta quilômetros. Estacionou na avenida beira-mar e foi caminhar no calçadão. Muita moça bonita. Sentou ao lado do quiosque, pediu uma caipirinha. A brisa estava boa, o mar calmo, o sol cumpria seu dever. Olhava interessado as mulheres que não notaram sua presença.

Recém passava do meio dia, entrou num restaurante e pediu arroz, peixe e molho de camarão, e uma cerveja. Pagou, saiu e continuou a olhar as moças que não olhavam para ele.

Voltou ao quiosque, pediu outra caipirinha, só por pedir. Puxou conversa com uma mulher de meia-idade. Ela se levantou e foi embora.

Pegou o carro e foi até o shopping. Caminhou, olhou vitrines, comprou um sorvete na praça de alimentação. Elas passavam reto, e aquelas que estavam sentadas nem se deram conta que ele existia.

Saiu e foi passear no seu Camaro amarelo na avenida principal. Com o carro quem sabe tivesse mais sorte. Nada. Continuou invisível.

Estacionou na frente de um bar movimentado. Pediu uma cerveja e logo mais outra; olhou em volta. Gente só e acompanhada. Todos sorriam contentes com o dia bonito e comemoravam a vida. Menos o Jorge Luiz, que tinha agora uma expressão amarga no rosto. Ninguém percebeu que ele estava ali com seu carrão. Chamou o garçom que custou a lhe atender. Pagou o que devia e entrou no carro. Resolveu voltar para casa.

Passava pouco do meio da tarde. Antes de pegar a estrada, viu atravessando uma rua, uma menina, 13 anos, que empurrava um pequeno carrinho de picolé. Exagerada falta de sorte. Com sua estrela apagada, não era ela para estar ali naquele dia. Adoecera seu irmão, o titular daquele miserável comércio, que muito ajudava no sustento da casa.

O Jorge Luiz olhou firme, mordeu o lábio inferior e decidiu. Acelerou com força. O carro cantou os pneus, com a dianteira empinada atirou fumaça e poeira no ar. A menina estava no meio da pista. Ele precisava acertar os dois: a menina e o carrinho. Um estrondo e um grito infantil que ninguém ouviu. Pegou em cheio.

Ficou para trás a menina morta com o sangue se misturando no corante dos picolés de framboesa, uva e morango que se derretiam no asfalto que fervia de tão quente.

Chegou em casa, tomou um banho, abriu uma cerveja, sentou esparramado no sofá, ligou a televisão, e ficou sorrindo com um ar de satisfação. Que não tinha sido de todo ruim, o domingo. Depois dormiu e sonhou com o sol, com as areias brancas e as verdes ondas do mar.

O ENCONTRO

A Leonor traz manchas roxas, que desde menina ela mesma produziu no seu corpo. Escondia da família, os vestígios nos braços e coxas, dos beliscões e fundas mordidas que em si própria desferia.

Depois, quase moça, mutilava-se com mais requinte. Usava pontas de tesoura, agulhas, alfinetes e alicates de unha para perfurar suas carnes. Convivia com cicatrizes ocultas, antigas e recentes, secas ou sangrentas, encobertas sob blusas de mangas longas e calças compridas. Forte do verão, lá estava a Leonor vestida com roupas inadequadas para a estação.

Mais tarde descobriu que só teria prazer, se as relações sexuais fossem acompanhadas de rituais que lhe causassem sofrimento físico. Obrigava seus parceiros a lhe aplicarem fortes tapas no rosto; que fosse estrangulada até o último limite suportável; que derramassem cera de vela quente sobre sua pele; que queimassem com pontas de cigarro os bicos dos seus mamilos e lhe aplicassem surras com relhos específicos para este fim, que ela portava consigo, junto com outros equipamentos propícios ao flagelo que precisava submeter-se.

As palavras fortes ou doces, os toques carinhosos, as preliminares convencionais, e a própria conjunção carnal; esses procedimentos não interessavam. O que contava era a obrigação de ter que tornar-se vítima de humilhação e padecimentos corporais. Em casa era capaz de acender a chama do fogão e deixar a palma da mão exposta ao fogo até o máximo que pudesse resistir.

E era bonita a Leonor. Mulher de pele macia, cheirosa por onde se passasse o nariz. Atraia com facilidade o macharedo, que deles queria apenas uma sessão daquela forma estranha de satisfação. Após, dispensava o parceiro para nunca mais querer vê-lo por perto. Enjoava do escolhido, do qual só exigia tornar-se escrava pelo tempo do encontro.

Dessa forma, já com trinta anos continuava solteirona, nada de relacionamentos fixos. Também, não existia homem que suportasse por longo tempo aquela tara, ou fosse lá o que fosse aquilo.

Trabalhava a Leonor, como vendedora de cosméticos, perfumes, roupas íntimas, acessórios eróticos, pomadas e comprimidos milagrosos – utensílios sensuais –, como apregoava, nos escritórios e empresas comercias. Artigos oferecidos para homens somente, tudo feito dentro do maior sigilo e discrição.

Certa tarde, final de expediente, estava demonstrando seus produtos para o prefeito da cidade, em seu gabinete. Só os dois na sala. De repente ouvem estalos que se transformaram em faíscas. Explode uma lâmpada, e cai por acidente, uma placa de gesso do forro do teto sobre a cabeça da Leonor.

Bateu de quina, cortou e sangrou um sangue que fez fio grosso na testa que desceu rosto abaixo. O impacto derrubou-a da cadeira sobre o carpete. O prefeito foi até ela e se ajoelhou diante da mulher estirada no chão. A Leonor retorceu as pernas e comprimiu uma coxa na outra, balançou os pés, espichou o pescoço, apertou um seio com a mão esquerda e com a direita esfregou o seu sexo que latejava. Respirou fundo e gemeu um gemido gostoso de se ouvir, lambeu a boca e mordeu os lábios e a língua com fúria e desejo. E gritou a plenos pulmões palavras obscenas, aquelas que algumas mulheres, nesses momentos, não conseguem evitar. Depois se acalmou, fechou os olhos, relaxou o corpo, estendeu os braços junto ao chão e desenhou no rosto um sorriso de satisfação, de pura realização.

Extasiado, o prefeito perguntou: “ – estás bem?”

“ – Só com dor é que bom!” Respondeu.

Ele encostou o rosto no dela, levantou um pouco o queixo e lambeu todo o sangue que escorria. Bebeu o líquido com emoção radiosa nos olhos. Se ajeitou em pose de macho sobre a fêmea e disse feliz, com a boca lambuzada no seu ouvido: “ – pensei que não existisse neste mundo, a mulher que eu tanto precisava!”

sábado, 8 de março de 2014

GINETEANDO JACARÉ

O fato aconteceu na região da fronteira; no Bororé, na época, segundo distrito de Itaqui. Por lá vivia o Ciro Tertuliano da Costa, gaudério criado na lida de campo, exímio domador de mula. Não havia potro xucro que não se amansasse debaixo do seu comando. Guasca destemido, valente uma barbaridade, que em dia de marcação se botava a agarrar touro à unha só para mostrar toda sua qualidade. Índio acostumado com cheiro do suor de sovaco de china e respeitado no manejo do ferro branco. Bom de copo que só não engolia desaforo; dava um olho por um entrevero. Por conta da grande habilidade com a adaga, por desavenças nos puteiros, já havia despachado dois ou três para o mundo dos defuntos; que nesses duelos sempre vence o melhor ou o menos embriagado.

Pois sucedeu que no meio de uma tarde de domingo do mês de maio, flor de primavera, voltava o Ciro do bolicho do Pedro Gringo, onde rolava carteado de truco e jogo de tava. Foi quando avistou no capinzal, na beira do açude, um jacaré, que dormia embaixo do sol. Era um bicho com coisa de dois metros de comprimento, daqueles bem nutridos de-papo-amarelo. Já meio levantado pelo efeito de quase uma garrafa de ‘3 fazendas’, velha cachaça companheira, pilchado de bota, espora e bombacha e camisa arremangada nas juntas dos cotovelos e o inseparável lenço chimango, olhou mais de perto o animal e não pensou duas vezes.

Apeou do Zaino, foi se chegando macio por trás de umas moitas de alecrim e de umas macegas de carqueja e saltou, caindo sentado sobre o lombo do jacaré. De pronto, com a mão direita que era uma garra poderosa segurou forte na goela do animal, que assustado se mandou para dentro d’água. Se chacoalhava atirando o corpo para os lados, se retorcia com agilidade e vigor. E o Ciro acavalado, com o chapéu quebrado na testa continuava firme com as pernas se fechando em arco; as esporas tramadas uma na outra por baixo da barriga de escamas brancas do jacaré. O bicho feito uma fera se foi para a parte mais funda do açude, fazendo de tudo para se livrar daquele peso. Mergulhava e permanecia uma eternidade lá por baixo, voltava à tona quando o Ciro respirava. De volta na superfície fazia giros completos com o corpo, verdadeiras acrobacias áreas. Dava violentos laçaços com o rabo, sacudia desesperado com a cabeça, abria a bocarra enfurecido, mostrando a ameaçadora dentadura assassina. E o Ciro gineteando com maestria, gritando para o jacaré continuar com aqueles bruscos movimentos. Continuava com as pernas trançadas em volta e a mão direita ainda bem presa onde devia ser a garganta do animal. O Zaino relinchava impaciente, o cusco latia nervoso nadando ali por perto, o gado mais arisco se mandou a campo fora, os quero-queros revoavam em bando numa gritaria desenfreada. Quem tinha pata disparava, quem tinha asa voava. Deu uma desordem no lugar. Uma tremenda confusão, daquelas, que igual nunca se teve notícia.

O tal do jacaré corcoveava com valentia; caborteiro, velhacava por demais, pior que cavalo aporreado. Quando voltava do fundo das águas parecia que ia voar. Se sacudia com toda a energia da sua musculatura, para em seguida mergulhar outra vez. O Ciro já sem chapéu estava cada vez mais decidido a não perder aquela luta. Não era homem com o feitio de comprar briga para perder.

Já durava mais de meia hora aquela peleia. Por fim, o jacaré foi esmorecendo, perdendo as forças, se entregando, se entregando. A cauda ficou estendida, sem movimento. A bocarra não mais mostrava perigo. Finalmente, cansado, veio para a superfície. Se entregou ao domínio do seu domador.

O Ciro também exausto, retirou a guaiaca da cintura, passou ao redor do pescoço do bicho e arrastou aquele corpo sem reação até uma das pontas da taipa do açude. Sentou ao lado do jacaré que respirava ofegante, recuperando as energias perdidas. Depois abriu os olhos e não tentou escapar. Ficou imóvel ao lado do homem que lhe dominou, bem assim como fica um cão junto ao seu dono, ou uma mulher apaixonada.

Quando refeito, o Ciro levantou da grama e gritou: “ – vem, bicho!” E o bicho veio. Percorreram lado a lado, com o Zaino e o cusco com cruza de ovelheiro que vinham atrás no passito, até a outra extremidade da taipa do açude. Então subiram um pequeno cerro e chegaram no rancho. E gostou de ver, o jacaré, uma pequena lagoa no lado da moradia que escolheu para fazer residência.

Pois não é que o animal deu para conviver ali pelo terreiro, misturado com as galinhas, patos, gansos e marrecos, cachorros e gatos, mais dois cordeiros guachos, um graxaim, um urubu e um zorrilho de estimação. Era o “Bicho”, que era como o jacaré atendia, o melhor amigo do Ciro. Nas andanças pelos arredores da habitação, lá estava o animal, acompanhando atento aos passos do seu dono; e além do mais, cuidava de toda a criação. E ai de que um estranho tentasse se achegar. Bastava mostrar os dentes, sacudir o rabo e pronto, estava desfeita a aproximação. Até que um dia, o bicho morreu de velho. Foi a primeira e última vez que o Ciro chorou naquela vida feita só para os homens construídos com corpo de ferro e recheados com alma de aço.

E o Ciro sempre diz, agora já veterano: “ – difícil mesmo de domar é o danado do bicho homem. Raça muito dura dos queixos. No mais, não há fera que não se entregue!”

Então, senta num cepo na sombra de um cinamomo no oitão do rancho, enrola um palheiro, aprecia um bando de marrecas piadeiras, e outro de colhereiros e outro de maçaricos que revoam rumo ao açude, e completa orgulhoso, com um sorriso de boca inteira: ” – que tudo que é vivo, a gente doma nesta vida; inclusive china de zona.” E dá um grito em direção à cozinha: “ – mas quanta embromação, mulher! É pra hoje ou pra amanhã este chimarrão?!”

segunda-feira, 3 de março de 2014

REJEITADA

Amorelina, criada solta pelos campos. Negra parideira de filhos vindos de pais sem nome, dava de presente as crias para quem quisesse. Mais de meia dúzia foram distribuídos nas estâncias da região. E nunca mais os procurava. Eram coisas que não eram mais dela. Sequer sentia saudade pela separação. Parecia até que não eram filhos nascidos de gente. Um negócio frio sem sentimento.

Os machinhos cresciam na volta das casas cumprindo ordens para se acostumar logo com o freio, fazendo serviços dos seus tamanhos. E as femeazinhas tratavam de varrer terreiro e buscar os pedidos da patroa. Depois de grandes se tornavam escravos, de uma escravidão que no papel não mais existia.

Mas tinha uma filha dela, a mais velha, mestiça de cara melada e cabelo duro meio arruivado, que esta ninguém queria. A Amorelina enaltecia as virtudes da crioulinha, diminuía os defeitos da guria e ninguém dava ouvidos para aquela apregoação, porque mancava forte de uma perna, ruim de serviço que era a coitadinha. Foi crescendo emprestada a mulatinha. Ficava uns dias lavando louça na casa de um, outra semana na fazenda de outro, em troca de um prato de comida e um canto para se deitar. Mas sempre de favor, sem compromisso. E desse jeito iam levando aquela rejeição.

Um dia deu na cabeça da Amorelina chegar para o Fidélis, um fazendeiro já veterano, que muito se aproveitou nas suas carnes, e falou decidida, em tom de ameaça: “ – não sei quem é o pai dos outros meus filhos. Mas a mulatinha renga é filha do senhor, e de mais ninguém. Fica com ela senão eu bato com a língua nos dentes!”

Pois não é que a criaturinha era a cara do Fidélis. Quanto mais crescia, mais parecida ficava. Era o comentário na redondeza.

“ – Deixa ela, então, por aqui. Fica sossegada, que eu vou dar um jeito nessa situação! – Respondeu o fazendeiro.

Deram falta da miúda, mas como coisa sem valor ninguém procura, esqueceram o extravio.

Menos de uma semana depois começou um cheiro de carniça que vinha do mato perto das casas.

Num galho de aroeira, olharam para o alto, e viram o corpo da negrinha pendurado pelo pescoço.

Daí explicaram o bando de urubus que há dias voava baixo rente a copa das árvores.

Quando a Amorelina soube do enforcamento, dizem que, sem mover um único músculo da face, só olhou para cima, na direção de uma pequena nuvem andarilha que se escapava para as bandas do horizonte, e disse: “ – melhor assim!”

O RIVAL

Gente criada feito bicho na beira do mato, com a pele encardida, tisnada de um pó fino antigo que não saía. João Zebu tirava sustento queimando lenha para fazer carvão que vinham da cidade comprar. No mais iam levando aquela miséria, se segurando com carne de caça e peixes tirados do rio ali ao lado. O João, conhecido por Zebu, João Zebu, porque tinha uma corcova, um enorme caroço roxo e peludo, um tumor, ou fosse lá o que fosse aquilo, grudado em cima da nuca.

Da mulher velha moída no serviço bruto, o João Zebu nem olhava. Tocar muito menos. Tirando o trabalho, era como se ela não existisse. Gostava mesmo era da filha, a Moa, que para feia não servia. Recém com 17 anos, que desde os 10 se deitava com o pai. Decerto não podia ter filho, porque filho também nasce deste tipo de relação, quando não vem aleijado ou fraco das ideias.

Esta não lidava no forno de carvão. Que a preferida havia que ficar em casa apenas cozinhando para quem trabalhava. Até pintava as unhas com um esmalte barato, e nos lábios uma pinturinha vermelha como se fosse pitanga madura, e uma alfazema no pescoço, só para agradar o pai. E quando se atirava para bandas da vila para renovar o estoque de cachaça, o João Zebu não esquecia de trazer um presentinho para a Moa; às vezes um vestidinho, que devia ficar bonita a guria, e uns tabletes de mariola e uns caramelos coloridos, que também, a boca de uma mulher, além de pintada, precisava ter o gosto doce de fruta madura.

Nas noitinhas o velho fazia um sinal, descia para o rio e esperava a Moa que logo aparecia de cabelos penteados, numa roupinha de chita. Nas carnes da filha o João Zebu se amortecia. Terminado o encontro ela voltava sozinha para dormir. Ele ficava até mais tarde, alegando pescaria.

Um dia, só os dois, numa clareira do mato, o Zebuzinho, irmão mais velho da Moa, que lidava forte na carvoaria, disse sério para a guria: “ – se tu te deita com o nosso pai, vai ter que te deitar comigo também!”

Acostumada a não questionar, a aceitar passiva o que viesse pela frente, boca que nunca aprendeu a dizer não, topou, e ali mesmo se entregou para o irmão. E gostou, e gemeu pela primeira vez na vida. Até beijou na boca do Zebuzinho.

Depois já não era mais a mesma com o pai, que desconfiou, e seguiu matreiro os passos da Moa e do Zebuzinho, que assim por nada se ausentava do eito. Notava que a filha repunava os encontros, virava a cara para o lado, fazia expressão de nojo e não mais abria direito as pernas. Sentiu cheiro de traição no ar, o João Zebu.

Certa tarde o velho saiu sorrateiro atrás do rapaz, perseguindo à distância os seus passos pelo mato. No remanso de uma prainha de areia grossa, com a água batendo suave nas pedrinhas coloridas, com as borboletas enfeitando o ar e os passarinhos cantando em volta, assistiu a cena que suspeitava: o Zebuzinho por cima da Moa nua.

Puxou do trabuco, se aproximou macio como um caçador cercando a presa. Disparou certeiro na cabeça do rival. O tiro mortal, na saída estraçalhou o queixo do Zebuzinho. Mandou a Moa sair debaixo e se lavar no rio, e se recolher de castigo no rancho, que mais tarde se acertaria com ela.

Bufando tal uma fera, colocou a arma na cintura, olhou uma cascavel que se arrastava e disse para si mesmo: “ – em mulher minha homem nenhum bota a mão. Nem filho meu!”