sábado, 10 de maio de 2014

A MORTE DE UM SORRISO

Eu era muito jovem, dezessete anos, se tanto, quando conheci a Vera num baile no Libanesa. Fiquei encantado com ela toda, que tinha sempre um sorriso pronto, fácil e bonito no rosto. Estávamos bem no início dos anos setenta, e ela, além de cursar filosofia, militava contra a ditadura militar como membro de uma organização de esquerda. Tinha quatro ou cinco anos mais do que eu, que na época ainda não compreendia bem o que estava acontecendo.

Saíamos com certa frequência durante coisa de seis meses. Bebíamos cerveja, fumávamos e fazíamos amo não menos que duas vezes por semana. E ela sempre sorrindo para mim. Sorria com os olhos também. Quando sorria todo seu corpo junto. E eu gostava tanto de vê-la sorrir. Aquela alegria me atingia, me iluminava por inteiro. Seu sorriso era uma luz que acendia sua fisionomia.

E falava que a situação do país precisava mudar. E que se fosse necessário pegar em armas, não relutaria em fazê-lo. Que o seu grupo estava preparado para tudo, inclusive para o pior. Morreria pelos seus ideais. E tinha um porte, uma dignidade, uma energia, um destemor que me fascinava. Possuía uma força no olhar que parecia dardos apontados quando revoltada, falava sobre perseguições, prisões, torturas, desaparecimentos, mortes, praticadas pelos órgãos de repreensão, mais a falta de liberdade e a censura instauradas com o golpe militar de 1964. Nesses momentos, brotava da sua alma toda a indignação que sentia. Seu coração batia mais forte, seus gestos se alargavam, sua voz saia clara e decidida; renascia a guerreira. Após ia se acalmando, se acalmando, se tornando delicada outra vez. A seguir, segurava as minhas mãos e voltava a sorrir. Então eu beijava seus lábios macios ainda quentes, que junto com seus dentes perfeitos, desenhavam a boca que todo homem gostaria de beijar.

Depois nunca mais me encontrei com a Vera. Sumiu. Dela, ninguém sabia. Passou o tempo e fui esquecendo dos nossos encontros. Vez por outra me vinha na lembrança o seu corpo, seu cheiro de flor recém-desbrochada, das nossas tardes dedicadas ao amor, dos seus discursos políticos e me lembrava do sorriso mais lindo da cidade.

Tarde de um dia nublado e frio, encontro com um amigo numa esquina da Rua da Praia. Estamos conversando quando alguém bate no meu ombro e diz com uma vozinha adoecida: “ - Juca, me paga um café que eu estou morrendo de fome!” olhei para trás e custei a perceber que quem falava comigo, ali, magra, esquelética, suja, maltrapilha, enrolada nuns panos velhos era a Vera. Por instantes pensei que estava delirando. Não estava.

Deixei o amigo e fui com ela até uma lanchonete. Ela caminhava com muita dificuldade, puxando uma das pernas e tossia sem parar. Mal conseguia trazer a xícara e o pão até a boia de tanto que tremia. Ela tentou disfarçar com um sorriso. Não conseguiu. Apenas lhe veio uma lágrima pesada que se espatifou no balcão.

“ - Que te aconteceu menina?”, perguntei. Faltando os dentes superiores, respondeu: “ - Joca, eles me quebraram toda. Fui estuprada, levei choques elétricos na cabeça e na genitália, batiam sem parar; me torturam tanto que nem sei como estou viva. Fiquei um ano presa. Saí ontem da cadeia!”

“ - Eles quem?” Quis saber.

“ - Os milicos”, me disse. “ - Mas não contei nada. Não falei quem eram os meus camaradas de militância!”

Apesar do estado lastimável, a Vera ainda mantinha inteira toda a sua dignidade. Menos o seu encantador sorriso que desapareceu. Esse, eles mataram dentro dela.

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