sábado, 10 de maio de 2014

A PENÚTIMA VIAGEM

Meu pai estava com setenta e dois anos e um câncer vinha lhe consumindo. Três semanas antes de baixar o hospital para morrer, pediu que o levasse para um passeio de carro. Claro, na hora me prontifiquei. Ele caminhava com certa dificuldade, trôpego, mais as dores que só aliviavam abaixo de tratamento específico e forte medicação.

Nos encaminhamos até a garagem, quando ouvi dele, que havia uma condição: pois que iria dirigir, tanto na ida como na volta, daquela viagem sem tempo e destino certo.

Surpreso, quase disse que não. Então pensei que não podia lhe negar o que seria um dos seus derradeiros pedidos. Embarcou, deu partida no motor e saímos aos solavancos rua afora. Nervoso, fazia força, precisando me passar tranquilidade. Era uma tarde de domingo e a cidade estava vazia e um sol preguiçoso amornava o dia e a nossa cumplicidade estava muito bem amarrada. Que fosse feita toda a sua vontade. Assinei o recibo em branco. Afinal, só eu, seu único filho, só eu e mais ninguém, podia lhe alcançar aquele sorriso.

Então pegamos uma estrada de mão dupla que se ia rumo ao litoral. Meu pai começou a acelerar. E foi gostando da velocidade que atingia. Sorriu bonito e apertou mais o pé olhei para o velocímetro e estávamos passando dos 120 quilômetros por hora. O seu rosto estava radiante, invadindo por raro contentamento e não parava de acelerar. Sempre com mais intensidade. Dei mais um espiada e o carro atingia os 140. Logo ele que sempre foi moderado na direção cuidadoso até um excesso em tudo que fazia. Naquele instante parecia um menino fazendo sua primeira travessura.

Já havíamos andado mais de meia hora naquela velocidade. Foi quando eu disse: “ - pai, diminui, porque deste jeito vamos ser multados. E não vai ficar bem, um respeitável senhor levar uma bronca da polícia!” - Respondeu: “ - agora, como está minha vida, com esta doença desgraçada, que me importa!” E acelerou, acho que por protesto, até perto dos 150. Eu não via a hora que iria acontecer algum imprevisto. Mas tinha o dever emocional e afetivo em honrar a parceria.

A seguir, retirou o pé do acelerador. Havia um retorno logo adiante e voltamos em direção à casa. Em seguida parou no acostamento, se ajeitou melhor no banco, tomou um comprimido que tirei do bolso da camisa e perguntou se eu estava gostando da aventura. Querendo lhe agradar, disse que estava adorando. Que devíamos continuar naquele ritmo.

Tornou a acelerar com a mesma impetuosidade anterior, e eu, quieto, aflito, procurando demonstrar normalidade, ouvi meu pai dizer: “ - como é bom dirigir! Como é bom dirigir!” Antes de chegarmos, muito cansado, estacionou na frente de uma sorveteria e pediu que eu lhe trouxesse um pote com três bolas de chocolate, e ouvi ele dizer, valorizando o momento: “ - ah, como é bom um sorvete! Meu Deus, como é gostoso um sorvete! Virei o rosto. Não queria que ele visse uma lágrima minha, que junto com outras não pude evitar.

Andávamos mais cinco quadras e chegamos. Do pátio, fomos abraçados até a cama. Deitou, e antes de dormir, com um sorriso de amigo me agradeceu com os olhos molhados.

Depois de alguns dias, meu pai foi hospitalizado. Naquele lugar, dentro do prazo estipulado, embarcou nas asas da morte, para, sozinho, começar sua última viagem. E eu, nunca mais gostei de sorvete de chocolate

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