sábado, 31 de maio de 2014

O POETA E O JUIZ

O Silva foi meu colega no ginásio e no científico quando o ensino secundário e médio assim se dividiam. Sete anos na mesma turma. Era o Silva, filho de influente político, o colega mais feio e burro que eu tinha. Procurava sentar no meu lado e cansei de lhe dar “cola” nas provas mensais. Redação, ele praticamente copiava as minhas por inteiro.

Quando digo feio, era porque o coitado era feiíssimo. Não só o mais feio da sala como do colégio inteiro. Orelhas de abano e narigudo, cabeça pequena e pescoço longo meio torto para um lado, pernas em forma de tesoura aberta e pés enormes, desproporcionais, virados para dentro; quase fanho e estrábico, com os olhos cravados no nariz. E os braços quando caídos, passavam as mãos para um pouco abaixo dos joelhos. Comprido e desajeitado; parecia uma girafa atrapalhada com o próprio corpo.

Apesar da ajuda de alguns colegas, ninguém compreendia como ele passava de ano. Por exemplo: nunca conseguiu, nas aulas de geografia, decorar as capitais do Brasil, das Américas, da Ásia e da Europa. Em história, datas e nomes de personagens importantes jamais gravou na memória. Em português não aprendia os tempos verbais. Esportes, dessas atividades, por motivos óbvios, fora dispensado. Apenas para ficar nessas dificuldades. Mas o fato é que, dando um jeito daqui, outro dali, como por um mistério, o Silva sempre passou de ano acompanhando a turma até o final.

Ah, não posso esquecer de dizer, que ele me pedia emprestadas as poesias de amor que eu fazia. Mais tarde descobri que passava todas elas a limpo e as oferecia para a Berenice, quando surgia uma oportunidade de ficar a sós com ela, que estava uma serie mais adiantada que nós.

Depois me formei em direito, mas me dedicava mesmo era com as amadas e com os versos e os textos que precisava escrever. E da nossa turma do colégio cada um tomou o seu rumo, e nunca mais reencontrei ninguém.

Aconteceu que em dias recentes compareci em juízo como testemunha de um acidente de trânsito, quando certa noite, um amigo que estava comigo, ao atravessar a rua fora atropelado por um automóvel.

Iniciada a audiência, fui chamado a depor. Olhei aquele juiz careca, pescoçudo, orelhudo, narigudo, cabeça pequena, quase fanhoso e braços gigantescos sobre a mesa e não acreditei no que vi: ali estava o Silva de meritíssimo juiz, sentado naquela cadeira com espaldar alto, com a cruz de Jesus pregada na parede, acima da sua cabeça com os olhos ainda vesgos, presidindo os trabalhos.

Falei o que havia visto e o que sabia sobre o caso. Respondi perguntas, tais como se chovia ou não na hora do acidente, se o calçamento da rua era de asfalto ou de paralelepípedos, se a iluminação era adequada ou insuficiente, se o condutor do carro aparentava sinais de embriaguez, e mais outras perguntas tolas que já esqueci.

Terminado meu interrogatório, dispensadas as partes, fui até ele, e disse: “ – há quanto tempo, Silva! Fico contente que tenhas te tornado juiz de direito!”

Ele me reconheceu, me abraçou um tanto comovido, e de primeira comentou sobre as “colas” que eu lhe passava. A seguir, me agradeceu os poemas de amor que eu emprestava para ele copiar.

Me falou que estava casado, aliás, muito bem casado com a Berenice, aquela nossa colega do colégio, que deve ter cedido aos encantos dos versos de amor que o Silva lhe dedicava, dos quais, desconfio, que ela jamais imaginou que fosse eu o autor daquelas peças de puro romantismo. Me disse que a Berenice também se fizera juíza e que tinham quatro filhos e que era vovô de três netinhas lindas e que nada lhe faltava e que era o homem mais feliz do mundo.

Falou e sorriu com aqueles dentes curtinhos e espaçados e perguntou sobre a minha vida e como eu estava. Perplexo com o êxito daquele que parecia ter tudo para não dar certo, senti um amargo na boca e menti. Olhei firme dentro dos seus olhos e menti. Menti com todas as forças de convencimento que o mentiroso consegue arrancar das entranhas da alma; menti, que eu também era o homem mais feliz do mundo. Ele sorriu novamente um sorriso sincero e afetuoso; me abraçou mais forte desta vez dizendo, que o abraço de dois homens felizes é o melhor abraço do mundo. Mais um pouco e nos despedimos. Saí e fechei a porta da sala de audiências. Sentei num banco no corredor com o coração pegando fogo e um nó preso na garganta, e chorei as lágrimas dos meus desencontros e das certezas que eu tinha, que de certo quase nada possuíam.

E eu, o inteligente, o poeta dos versos de amor, agora aqui escrevendo sobre a feiúra e a burrice do Silva. Me olho no espelho, dou um grito e um beliscão no pescoço. Preciso saber se não estou delirando.

Vai ver que esta é a sina que eu carrego: de escrever sobre a vida e o comportamento dos outros, das dores dos amores perdidos e do que espio por aí. Mais os meus fantasmas e essa imaginação sempre fervendo, que não me deixa dormir.

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